20 Julho 2023
"Esperamos que o Senado tenha responsabilidade maior e realize os necessários estudos e debates, incluindo a sociedade que, no final, irá pagar a conta e arcar com as consequências do que der errado com a reforma tributária", escreve Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e membro titular da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB, em artigo publicado por Extra Classe, 19-07-2023.
O modelo tributário brasileiro é considerado caótico sob vários aspectos. Um dos mais graves é o fato de que promove a concentração de renda em vez de ser a via óbvia de distribuição, mediante a cobrança maior sobre aqueles que possuem maior capacidade contributiva, para que o Estado tivesse recursos para investir em políticas públicas que beneficiassem a parcela da sociedade de menor renda.
Aqui ocorre o contrário: os mais ricos são os que menos pagam, por causa das inúmeras benesses tributárias caracterizadas por isenções, redução de alíquota a zero ou não-incidência, como no casos de distribuição de lucros a sócios de grandes empresas e bancos; rendimentos financeiros de estrangeiros que compram títulos da dívida pública brasileira; grandes petrolíferas estrangeiras que exploram petróleo no Brasil; atividades de mineração e agronegócio voltados para exportação, ou simples falta de regulação, como no caso do imposto sobre grandes fortunas, entre vários exemplos que fazem do modelo tributário brasileiro um dos mais injustos e regressivos do mundo.
A repartição da carga tributária no Brasil está longe de qualquer parâmetro de equilíbrio, pois é altamente concentrada nos tributos indiretos (que representam praticamente a metade de todos os tributos arrecadados e não respeitam a capacidade contributiva de quem paga). Esses tributos indiretos incidem sobre o consumo, como registrei em um dos primeiros artigos para o Extra Classe, em 2018, e são pagos por toda a sociedade, inclusive os mais pobres, enquanto altas rendas, patrimônio e fortunas pouco ou nada pagam.
A PEC 45/2019, foi amplamente modificada por substitutivo apresentado pelo relator na Câmara dos Deputados, Dep. Aguinaldo Ribeiro (PP-Paraíba), que desfigurou expressivamente o texto anterior, englobou parte de outra PEC que tramita no Senado (PEC 110/2019) e fez sucessivas alterações até o momento da votação.
Nesse contexto, é de fato urgente uma revisão, porém, a reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional atende às necessidades de mudança do atual modelo?
A resposta é um flagrante não, pois além de agravar a tributação sobre o consumo, praticamente não tocar nos privilégios dos super-ricos e privilegiados, e fazer apenas alguns acenos para os mais pobres, a PEC coloca em risco o financiamento da Seguridade Social; afeta a autonomia dos Estados e Municípios, podendo inclusive prejudicar a sua manutenção, e cria uma nova instituição com cara de “agência”, o denominado “Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços”, que passará a controlar toda a arrecadação do IBS, novo imposto que reúne os atuais tributos ICMS (estadual) e ISS (municipal).
Bancos terão regime de tributação especial a ser definida posteriormente. Atividades predatórias e altamente lucrativas voltadas para exportação, como mineração e grande agronegócio continuarão não alcançadas pelo novo IBS e também não terão que pagar o novo imposto seletivo criado para tributar produtos e serviços que fazem mal à saúde e ao meio ambiente! Com relação a tributos sobre o patrimônio, a PEC apenas prevê a possibilidade, a ser regulamentada em leis estaduais futuras, de progressividade do imposto sobre heranças e doações (ITCMD) e de tributação de veículos (IPVA) de aéreos como aeronaves, jatinhos, e aquáticos, como lanchas, iates etc.
A isenção tributária de produtos da cesta básica depende de regulamentação futura que definirá quais alimentos serão incluídos nessa cesta e só será efetivada a partir de 2027, quando passarem a ser cobrados os novos tributos IBS e CBS. O cash-back, possibilidade de devolução de parte de tributos sobre consumo aos mais pobres, está completamente indefinido e depende de regulamentação futura. Com relação a tributos sobre o patrimônio, a PEC prevê a progressividade do imposto sobre heranças e doações (ITCMD) e a tributação de veículos (IPVA) de aéreos como aeronaves, jatinhos, e aquáticos, como lanchas, iates etc., porém, ainda sujeitos a regulamentação futura.
A Seguridade Social (que engloba as áreas da Saúde, Previdência e Assistência Social), hoje financiada principalmente pelas contribuições Cofins e PIS, terá essas contribuições extintas e substituídas pela nova CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços).
Não foram apresentados estudos técnicos sobre os riscos relacionados à convivência de 2 tributos (IBS e CBS) incidentes sobre o mesmo fato gerador e com o mesmo nome: tanto o novo IBS como a nova CBS incidem “sobre bens e serviços”. Será que as empresas que hoje pagam regularmente ICMS (ou ISS) e COFINS, que têm regulações distintas e fatos geradores diferenciados, concordarão em pagar os 2 novos tributos sob um mesmo fato? Quais os riscos de uma avalanche de ações judiciais? A jurisprudência sobre a nulidade do “bis in idem” (2 tributações sobre o mesmo fato gerador) é vasta. Isso foi verificado?
A pressa de votar a proposta na Câmara dos Deputados, regada à liberação de R$ 7,5 bilhões em emendas parlamentares, sendo a maioria em emendas pix (R$ 5,3 bilhões), além de promessas de cargos, impediu a realização do necessário debate sobre os novos textos apresentados a cada dia pelo relator. Não houve a necessária participação da sociedade; não houve apresentação de estudos técnicos, testes de risco, ou sequer cálculo para as alíquotas dos 2 novos tributos criados, o IBS e a CBS. Analistas do IPEA já preveem que esta pode alcançar até 28%.
O relator da PEC da reforma tributária apresentou outra versão de seu relatório substitutivo, tarde da noite do dia 05 de julho, em plenário da Câmara dos Deputados, e no início da tarde do dia 6 julho de julho já teve início a sessão para a sua votação, tendo sido incluídas novas modificações minutos antes da votação!
Qual a razão para tamanha correria e votação para aprovar uma proposta de reforma tributária se o seu texto prevê que as primeiras alterações começarão a valer somente a partir de 2026 e serão concluídas apenas em 2078, ou seja, daqui a 55 anos?!
Está em jogo, com o movimento de extinção e criação de tributos, o financiamento de todos os Estados e Municípios, assim como o financiamento da Seguridade Social, além da modificação de toda a estrutura da administração tributária dos entes federados e da criação da nova “agência” denominada “Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços”.
Este conselho terá imenso poder, com autonomia “técnica, administrativa, orçamentária e financeira”, embora não tenham sido feitos estudos sobre os riscos decorrentes da criação desse grande caixa, que poderá facilitar até a implementação de nocivos esquemas de desvios de receitas públicas, como o esquema da “Securitização” na esfera pública, o que é gravíssimo e precisa ser devidamente esclarecido, tendo em vista que tal esquema já foi implementado em diversos entes, apesar de sua flagrante inconstitucionalidade!
Os setores que estão festejando a aprovação dessa proposta na Câmara são exatamente os que estão mantendo e levando as maiores vantagens, enquanto a maior parte da sociedade corre o risco de pagar ainda mais tributos sobre o consumo e ver os serviços públicos decaírem ainda mais!
Esperamos que o Senado tenha responsabilidade maior e realize os necessários estudos e debates, incluindo a sociedade que, no final, irá pagar a conta e arcar com as consequências do que der errado com a reforma tributária.
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A reforma tributária em curso atende às necessidades de mudança? Artigo de Maria Lucia Fattorelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU