17 Julho 2023
"A 'visão da grande selva', em apenas cinco anos, foi 'banida a dois ou três quilômetros das margens da estrada', onde 'ainda se ergue, fechada e difícil'. Mas não por muito tempo. Nem na Belém-Brasília nem na Transamazônica e nas demais estradas ditas de integração nacional, mas, na verdade, de submissão regional", escreve Lúcio Flávio Pinto, em artigo publicado por Amazônia Real, 13-07-2023.
Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014.
“O Pará tem nas suas produções botânicas tesouros mais ricos do que áureas minas; assim essa sua riqueza e seu próprio valor fossem mais bem reconhecidos”.
A frase foi publicada em 1839, escrita por Antônio Ladislau Monteiro Baena no Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará. Baena costuma ser execrado como um defensor e executor da política colonialista de Portugal, mesmo depois da proclamação do império brasileiro. Daí ostentar os títulos de Cavaleiro da Ordem Militar de São Bento de Aviz, moço fidalgo da Casa Imperial e sargento-mor de artilharia.
Mas fora também antigo professor da aula militar no Pará e sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, fundado pelo imperador Pedro II. Juntava a essas qualificações a de ser um pesquisador meticuloso sobre todas as informações referentes à Amazônia, que tornam o seu livro uma preciosa fonte de consulta, e um apaixonado pela região.
Era do tipo de intelectual ilustrado que até mesmo os governos mais autoritários e ditatoriais às vezes criam e preservam. Esses intelectuais, presos por compromisso político com os dominadores, possuem um grau de mentalidade esclarecida que impede os despotismos de serem apenas brutais.
Baena não só chama a atenção para o valor supremo da floresta na Amazônia, até hoje não reconhecido. Critica os métodos de limpeza da área a ser ocupada (que exige a derrubada ou a queima das árvores) e de plantio, com mira certeira para práticas que ainda se mantêm dois séculos depois.
Como na sua época, os lavradores “nunca se descartaram pernicioso método dos derribamentos, e dos incêndios das matas debaixo do pretexto de estarem as terras cansadas”. Adotando os mesmos métodos, seus descendentes “fazem derramar suor no agricultamento das terras, sem que a bondade delas lhes possa fazer conhecer a precisão de um novo cultivo, e de uma nova agricultura”.
A revolta de Baena diante das práticas destrutivas adotadas pelos novos donos da terra nos sensibiliza porque continua a ter fundamento, mas não a ser considerada na devida atenção. Diz ele:
“Uma lavoura errática, que anualmente arrotea e abrasa monstruosas árvores, que são a aristocracia da vegetação, exige um proporcionado número de mãos derrubadoras. (…) não obstante esta deficiência tão essencial permanece a lavoura com o seu caráter de parasita de natureza, pois o agricultor não quer empregar diligência alguma, nem ligar a indústria humana com a natureza para aumentar e melhorar as plantas, adaptando os novos métodos, que a civilização vai introduzindo em outros países: métodos, que não podem deixar de produzir exuberantes vantagens em terras como as do Pará, refrigeradas e umedecidas por infindos rios”.
Em 1965, viajando pela rodovia Belém-Brasília, a primeira ligação por terra do Brasil com a Amazônia, inaugurada cinco anos antes, mas ainda com tráfego pequeno e inconstante, o jornalista Roberto Menna Barreto observou que a descrição da estrada varando a selva já não era verdadeira em boa parte do seu traçado, de 2.164 quilômetros, equivalente à distância entre Paris e Moscou.
“Tal cenário, tão famoso pelas fotografias dos primeiros repórteres e viajantes, não mais existe ao longo dos 600 quilômetros em que ela atravessa região ocupada há 4 anos atrás, pela mata virgem. Esta mata foi expulsa a uma distância de 3 a 4 quilômetros das margens da rodovia pelas queimadas dos milhares de habitantes que já se distribuem ao longo das margens. O viajante de hoje roda por um descampado surpreendentemente povoado, e só vê a Amazônia de longe…”.
Percorrendo as ocupações, o jornalista diz ter percebido “a alegria desses caboclos ao verem surgir, próxima de suas terras tão isoladas, a avalanche de abertura da Belém-Brasília”. Não surpreende que ele considere Paragominas “o exemplo mais pujante de desenvolvimento” gerado pela estrada. Lembra que em 1959, quando a estrada primária já fora aberta, “imperava ali a jângal amazônica”. A expressão em inglês negava a originalidade equatorial dessa floresta.
A “visão da grande selva”, em apenas cinco anos, foi “banida a dois ou três quilômetros das margens da estrada”, onde “ainda se ergue, fechada e difícil”. Mas não por muito tempo. Nem na Belém-Brasília nem na Transamazônica e nas demais estradas ditas de integração nacional, mas, na verdade, de submissão regional. O engenheiro Baena, mais chocado do que antes, protestaria se pudesse ver suas previsões confirmadas, apesar de toda retórica de proteção, conservação e sustentabilidade aplicada ao tratamento da Amazônia.
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Pará. A cultura da destruição. Artigo de Lúcio Flávio Pinto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU