03 Julho 2023
"A periferia tornou-se, de gueto, identidade e raiva", afirma Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 02-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
2005 e 2023: parecem-lhes poucos 18 anos? No entanto, a sua história se sobrepõe, com arte. Meu bloco de notas como correspondente em Paris testemunha isso, escrito dia após dia no calor dos acontecimentos entre outubro e novembro daquele ano: rebelião nas periferias, subúrbios em chamas. Um choque profundo que veio perturbar a impressão inicial de me preparar para descrever um país em digna, mas calma, decadência. Com o pesar, portanto, de ter chegado à França no fim do banquete histórico, na hora do cafezinho.
Sobreponho aquele velho caderno de notas às notícias de hoje e me parece, com um gesto simples, de ter anulado o tempo. Tudo se passa em níveis cronologicamente diferentes que, no entanto, combinam e resultam em um único fenômeno. A comédia dos erros dos governantes torna-se evidente, pois essa desastrosa história também é uma história lúcida. Onde o cerne criativo é a obtusidade e a hipocrisia de uma classe política que faliu apoiada pela magnífica inutilidade dos chamados "maîtres à penser". As três palavras providenciais que governam a França são: "c'est son affaire", é problema dele. As dificuldades das periferias foram por 18 anos, cobertas, sufocadas pela direita e pela esquerda teologicamente inimigas, mas espiritualmente afins, quase com um jeito surdo, de gente que não quer ser incomodada. E que continuou a distribuir topograficamente a desigualdade social com a perícia de um semeador experiente.
2005, na época foi em Clichy-sous-Bois, uma farpa, como Nanterre, da outra França, aquela das periferias, econômicas, mentais e humanas. Onde antigamente viviam os trabalhadores e as secções do partido comunista canalizavam a raiva das pessoas para eleições, greves, Marianne, o sonho da nova Frente Popular. Agora as casinhas não existem mais, substituídas por imensos blocos de concreto, que na década de 1960, eram projetos reverenciados e premiados de arquitetos de vanguarda para criar cidades satélites ideais. Agora são o destino imobiliário dos imigrantes de segunda e terceira geração, negros e magrebinos, extrema onda humana do "Empire" que chegou aqui para realizar os trabalhos que os franceses não querem mais fazer. Os pais e os avós sonhavam com o dia em que lhes dariam o passaporte francês, dia da integração na République. Os netos que estudaram nas escolas da França, a quem ensinaram a Marselhesa e as delícias da "fraternité", já tinham aquele o passaporte no bolso; o problema é que eles não o queriam mais.
Eles olhavam com raiva para a outra Paris, aquela que não está a parasangas, léguas ou quilômetros de distância, mas apenas do outro lado da periferia. Um muro, simbólico, mas intransponível, separa-os dos bulevares, do centro das grandes cidades, teatro para outras igualdades mais chiques. Eles eram, e são, aqueles que moram nos bairros com o número, o "93" por exemplo, que agitam com prosa lamacenta os relatórios policiais, os alarmes da prefeitura. Quando desembarcam do metrô, como sempre, a polícia os bloqueia desconfiada, os revista rudemente, os obriga a voltar. Eles são "os marginais a serem retirados com energia", como resumia um Ministro do Interior que infelizmente fez carreira e se chamava Sarkozy.
Fomos então ver aquela "jacquerie" nos bairros iluminados por focos de incêndios, alguns de nós grotescamente vestidos como se fossem se embrenhar nas avenidas de Falluja, com coletes e capacetes.
Encontramos esses jovens que saem do berço retórico da escola no primeiro obstáculo, e depois só encontram o vazio. O desemprego nesses bairros é de 20%, o dobro daquele nacional. Então se entregam aos caids, os chefes de gangues que controlam o tráfico, que recrutam os Gavroche magrebinos para o tráfico e pagam bem. Porque o submundo preenche os vazios que deixa uma République cada vez mais mesquinha. A periferia tornou-se, de gueto, identidade e raiva.
Zaid e Bouma eram dois adolescentes que, em 25 de outubro de 2005, instintivamente tinham medo da polícia, do estado, como Nahel dezoito anos depois. Por isso, naquele dia, quando no centro da cidade encontraram os "flics" realizando uma batida, fugiram. Eles escolheram para despistar os perseguidores se esconder numa cabine de energia, onde morreram queimados vivos. Afinal, apenas uma notícia pequena, ignorada, das páginas policiais. Nos cafés da Rive gauche, continuaram as conversas endinheiradas, os teatros estavam lotados para suas oficinas de encantos, o restaurante Ducasse, como sempre, não tinha mesas livres. Foi o sinal da revolta que durou dois meses, das noites iluminadas por milhares de carros em chamas, de uma guerrilha com a polícia assumida como símbolo de uma potência estrangeira e hostil. Em suma, foi a crise do modelo francês que sempre promete e não cumpre.
Uma Intifada de jovens encapuzados, niilista e estéril, onde a religião desempenhou um papel marginal, em que eram incendiadas escolas, bibliotecas e ginásios. Não foram os reforços policiais que a apagaram, (mesmo as estratégias do Ministério do Interior não fizeram progressos), nem os milhões para o assistencialismo alocados pelo governo. Foi a consciência de que nem mesmo assim as coisas poderiam mudar. Os protagonistas daquela Intifada se encolheram sobre si mesmos, sobre a sua diversidade. Eles começaram a brigar em guerras de gangues étnicas. Incubando uma raiva ainda mais forte e sombria.
E pronto. 18 anos, de uma revolta à outra. E se quiserem acrescentar uma terrível nuance, a violência, a raiva aumentaram. Há um desejo cheio de intenções vingativas contra o estado e seus símbolos. Inevitável: porque o tempo não faz alarido mas cava nas consciências, aumenta os abismos, de um lado a outro das inúmeras periferias, das cidades da França.
Os interesses na política são cegos. A classe política francesa, tão certinha, tão professoral, os presidentes-monarcas que se sucederam nos últimos anos de direita e de esquerda certamente não são estúpidos.
Eles simplesmente foram cegos. A revolta foi respondida há 18 anos, abrindo um pouco de espaço para os jovens das periferias merecedores na "Science Po'' e nas Grandes Escolas, areópago dos poderoso. É a velha lengalenga de anexar os "evolués", como no tempo das colônias, muitas belas réplicas do bom Senghor com seus poemas inofensivos; ou a fábula da seleção nacional de futebol multicolorida. Assim o bilionário pompierismo de Mbappé pode ajudar convidando os criadores de caso a ficarem tranquilos, a voltar para casa. Também na direita se repete: na época foi Le Pen pai que se enfurecia porque se permitia àqueles "estrangeiros" agredirem a França.
O que ninguém providenciou, foi criar naqueles bairros uma mediação entre sociedade e estado para absorver a raiva e a frustração dos jovens marginalizados. Para tudo acabar se confrontando, brutalmente, com a questão social do século XXI: precariedade, insegurança, exclusão.
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Os guetos negros da França em chamas. A intifada nasce do imobilismo. Artigo de Domenico Quirico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU