23 Junho 2023
“Já é amplamente reconhecido que estamos enfrentando uma crise hidrossocial. São inúmeros os conflitos relacionados à água em diferentes partes do país, tanto pela sua quantidade como pela sua qualidade. As afetações têm a ver com a água para consumo humano, recreação e deterioração dos ecossistemas”. A reflexão é de María Noel González, em artigo publicado por Ctxt, 22-06-2023. A tradução é do Cepat.
María Noel González é antropóloga uruguaia especialista em questões relacionadas à água e ao meio ambiente.
A água de Montevidéu e parte de sua área metropolitana – onde vivem 1,7 milhão de pessoas, cerca de 50% da população do Uruguai – “não é potável segundo a definição perfeita de potabilidade”, mas é “potável e consumível”, declarou o ministro do Meio Ambiente no início de maio.
Com estas palavras, o ministro justificou a decisão de aumentar a salinidade permitida na água para consumo humano acima do estabelecido por lei, em resposta à escassez provocada pela seca que assola o país desde 2020. Dos 200 miligramas por litro de sódio e 250 miligramas por litro de cloretos estabelecidos pela legislação passou-se para 440 miligramas por litro de sódio e 750 miligramas por litro de cloretos.
A razão é que as vazões das represas de Paso Severino e Canelón Grande, no rio Santa Lucía, que abastecem o sistema de água potável de Montevidéu, não eram mais suficientes para abastecer a população. Por conta disso, recorreu-se à água do trecho inferior do rio, que apresenta maiores níveis de salinidade devido à sua proximidade com a foz do Rio da Prata.
A empresa pública responsável pela água no Uruguai, Obras Sanitarias del Estado (OSE), anunciou a decisão no final de abril. O problema já era conhecido há meses, mas não houve medidas explícitas de comunicação com a população ou medidas de prevenção de danos ou de preparação para o contingenciamento hídrico e social.
Após as primeiras declarações governamentais que reconheceram a situação em maio, no quadro de um discurso generalizado minimizando o problema, surgiu uma enxurrada de dúvidas e preocupações.
Diversos grupos profissionais alertaram para os efeitos na saúde, principalmente de alguns grupos, como hipertensos, pessoas com doenças renais e crianças pequenas. O consumo excessivo de sódio pode provocar problemas cardíacos e de pele, entre outros.
Assim começou o processo somatório de identificação das pessoas e das práticas afetadas: indústria, lojas, instituições de ensino e hospitais. As autoridades educativas recomendaram, por exemplo, não coar o arroz, reutilizar a água utilizada para cozinhar a massa, dar água mineral às crianças apenas em caso de necessidade, calculando um copo só durante as refeições ou aromatizar a água da torneira com hortelã, gengibre ou alecrim para torná-la mais apetecível para crianças em centros de educação infantil – embora isso tenha sido posteriormente rejeitado.
A água da OSE no Uruguai tem sido historicamente considerada segura para o consumo. Mas nos últimos anos se acumularam episódios pontuais de mau gosto ou cor na água da torneira, razão pela qual um número crescente de domicílios – dos setores alto e médio – incorporaram o uso de filtros e purificadores de água. No entanto, esses dispositivos não removem o sal; portanto, tê-los não garante o consumo de água segura ou insípida. É necessária a tecnologia de filtros de osmose reversa, o que é raro no país, embora já tenha sido implementada em alguns setores mais abastados. Mas para a maioria da população metropolitana, o acesso à água potável tornou-se outro problema a ser enfrentado no dia a dia.
As empresas fornecedoras de água mineral engarrafada viram-se sobrecarregadas na sua capacidade de produção e distribuição, razão pela qual em alguns dias e/ou locais a água mineral também é escassa. Para muitos tornou-se necessário descobrir todos os dias como ter acesso à água mineral engarrafada. Para outros, isso não é uma opção (um galão de água de seis litros custa em média 120 pesos uruguaios, cerca de três euros). Soma-se a isso, por outro lado, o enorme consumo e descarte de resíduos plásticos que esse processo provoca.
A seca não explica a situação por si só. Gerou-se também uma forte discussão político-partidária em relação às ineficiências de gestão e previsão por parte das autoridades. A coalizão de direita no poder desde 2020 havia iniciado um processo de redução de funcionários públicos que prejudicou particularmente a OSE.
A oposição critica o cancelamento de um projeto de represa que estava previsto para ser implementado no Departamento de Flórida. Em vez disso, a OSE informou em março de 2022 que havia assinado um acordo com a empresa nacional de água de Israel, Mekorot, para o desenvolvimento do projeto Neptuno, que havia sido descartado pelo governo anterior. Este projeto propõe a construção de uma estação de captação e tratamento de água no Rio da Prata (município de Arazatí, San José), que teria um potencial de abastecimento de água potável para a área metropolitana de 30% do volume total necessário.
A proposta recebeu múltiplas críticas ou pedidos de cautela de organizações como a Federação de Funcionários da OSE, Redes Amigos da Terra, diferentes grupos de cientistas e até mesmo da Prefeitura de Montevidéu. As críticas concentram-se principalmente em dois grandes campos: um, o técnico em relação aos inconvenientes da captação de água do Rio da Prata devido a problemas de salinidade, cianobactérias e efeitos ecossistêmicos que podem tornar muito complexo o processo de purificação. Outro, que o projeto Neptuno é identificado como um processo de privatização da gestão da água, o que no Uruguai é constitucionalmente proibido pelo artigo 47 (votado mediante plebiscito em 2004).
Já é amplamente reconhecido que estamos enfrentando uma crise hidrossocial. São inúmeros os conflitos relacionados à água em diferentes partes do país, tanto pela sua quantidade como pela sua qualidade. As afetações têm a ver com a água para consumo humano, recreação e deterioração dos ecossistemas. Nesse sentido, é preciso destacar que aos repetidos eventos da presença de cianobactérias tóxicas no Rio da Prata e no Rio Uruguai (em um país com grande centralidade do turismo balnear, tanto externo como interno) soma-se o preocupante estado de todas as grandes bacias do país, com altíssimos teores de fósforo e nitrogênio.
As causas, de acordo com trabalhos científicos, estão na deficiência do saneamento e tratamento do esgoto e no modelo agroprodutivo preponderante, com níveis muito elevados de uso de insumos como fertilizantes e biocidas. Neste sentido, há uma denúncia, que não é de hoje, sobre os efeitos que o modelo agroprodutivo tem produzido nos ecossistemas em que está instalado e como afeta todos os seres vivos através, entre outros elementos, da água. Desde meados da década de 1990, no Uruguai, houve uma crescente intensificação agrícola, mobilizada pelo chamado agronegócio. Trata-se de uma lógica hegemônica de produção que combina transsetorialidade, priorização do consumidor global, generalização, expansão e intensificação do papel do capital nos processos produtivos agrícolas, padronização tecnológica e grilagem de terras para produção em larga escala das grandes corporações financeiras.
No contexto do crescimento do agronegócio nas últimas duas décadas, foi apresentada em 2016 a proposta de uma nova Lei de Irrigação (Lei nº 16.858), que gerou grande preocupação nos setores acadêmicos e organizações sociais, mas que teve unanimidade parlamentar. Além das críticas relacionadas aos riscos aos ecossistemas associados à construção de grandes barragens, também aqui foi questionado o cumprimento do artigo 47 da Constituição.
Esta lei abriu a possibilidade, inédita no Uruguai, para atores do sistema financeiro ou de fora dos sistemas produtivos construir, operar, administrar e cobrar pela água de irrigação. Este é um processo substantivo de avanço na mercantilização da água, que não pode ser isolado do contexto geral (nacional e global) dos mercados de água.
Os grupos ambientalistas têm se mobilizado em defesa da água de diversas formas sob o slogan “Não é seca, é saque”. Consideram que esta situação é mais um evento em um processo cumulativo de crises hídricas em nível nacional. Uma dessas organizações, a Assembleia pela Água do Rio Santa Lucía, tem estado especialmente ativa nos últimos anos, alertando sobre a situação do rio.
Foram realizadas uma série de atividades autoconvocadas com diversas coordenações. No dia 31 de maio, houve uma passeata pelo centro de Montevidéu, neste caso convocada pela PIT-CNT (Plenária Intersindical de Trabalhadores – Convenção Nacional de Trabalhadores), organização central dos trabalhadores/as do Uruguai, convocada também pela assembleia autoconvocada e pela coordenação dos feminismos.
Em 2004, foi produzido um marco a nível nacional em torno da água, seus significados e sua gestão. Depois de uma forte mobilização social que teve como motor central a Comissão Nacional em Defesa da Água e da Vida, foi aprovada a reforma constitucional do artigo 47 – através de plebiscito – que declara a água como bem público e o acesso à água potável e ao saneamento como direitos humanos assegurados por empresas públicas, bem como que a gestão dos recursos hídricos deve ser desenvolvida por bacias hidrográficas e de forma participativa.
Nesse processo, o olhar sobre a água foi acentuadamente urbano e estatal, tendo como temas centrais a produção da água potável e sua gestão. Não se deu suficiente atenção a outras águas, ou à ligação entre diferentes águas, que institucionalmente eram tratadas separadamente (água para consumo, água para produção, água para recreação, águas para ecossistemas, entre outras).
Porém, nos últimos anos a ideia da abundância de água – muito difundida em nosso país – começou a ser questionada. Fundamentalmente, dado o surgimento de múltiplos conflitos sobre seu uso e controle, diante da crescente demanda de alguns setores econômicos, da geração de eletricidade que a utiliza em larga escala, e da consequente degradação que limita seu uso para consumo humano. Também devido à modificação dos padrões de qualidade aceitáveis ao nível estatal de água para consumo humano.
Assim, novas dimensões passaram a ser discutidas e problematizadas e, por exemplo, a água e sua disponibilidade para uso agrícola tornaram-se um tema importante, assim como os efeitos de determinadas atividades produtivas sobre as águas destinadas a outros usos.
Houve uma mobilização para revogar a nova Lei de Irrigação, que não atingiu as assinaturas necessárias para viabilizar um mecanismo de referendo, mas que conseguiu começar a colocar o debate em torno da água como um todo interligado.
Choveu um pouco esses dias e a situação poderá se aliviar um pouco. Talvez a água potável em um futuro próximo possa melhorar sua qualidade. No entanto, uma coisa é certa: o Uruguai encontra-se em um ponto de inflexão em relação à água e tudo o que ela representa para a vida.
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Uruguai. Em Montevidéu falta água potável. Artigo de María Noel González - Instituto Humanitas Unisinos - IHU