31 Mai 2023
Ao aprovar um retrocesso histórico por 283 votos a 155, a Câmara desfere um golpe contra as novas gerações e a saúde do planeta.
A reportagem é publicada por SUMAÚMA, 31-05-2023.
Os povos originários buscaram em seus ancestrais as forças para resistir ao espetáculo brutal que foi a sessão da votação do chamado marco temporal na Câmara dos Deputados. Nas 24 horas que antecederam a votação do projeto de lei, o PL 490, indígenas de todo o Brasil fizeram vigílias ao longo da madrugada, se pintaram para a guerra, invocaram espíritos nas casas de reza. Cantaram. Ao lutar por suas terras ancestrais, lutam também pelos não indígenas. Resistir é verbo que conjugam há séculos. Rexistir é o único caminho que lhes resta para evitar o colapso climático, um futuro hostil para as novas gerações de pessoas humanas e a morte completa de grande parte das pessoas não humanas. SUMAÚMA registrou essas cenas, porque é preciso documentar o colapso.
Indígenas Guarani, em São Paulo, começaram os Rituais de Rexistência na noite de segunda feira, 29 de maio. Foto: Fernando Martinho/Sumaúma
O clamor pela vida não sensibiliza, porém, a maioria do Congresso Nacional. Na Câmara, os deputados aprovaram na noite desta terça-feira, por 283 votos a 155, o texto principal do projeto, que ainda precisará ser apreciado pelo Senado. Se o projeto virar lei, o Congresso passará a dar a palavra final sobre as demarcações. Um poder absoluto que será concedido ao legislativo, hoje dominado por negacionistas, dispostos a garantir lucros imediatos para o agronegócio predatório, mesmo que à custa da qualidade de vida de suas próprias crianças.
E não é só. O texto do PL 490 aprovado pelos deputados introduziu o conceito do marco temporal. Significa que os povos indígenas só teriam direito a áreas que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Todos aqueles povos que foram expulsos de seus territórios ou tiveram que deixá-los por ameaça de extermínio perdem seu direito de reivindicar sua terra ancestral. Essa tese jurídica ignora que a ditadura empresarial-militar que oprimiu o Brasil de 1964 a 1985 matou mais de 8 mil indígenas, a maioria deles na Amazônia, para avançar com seus projetos de “desenvolvimento”, e provocou o êxodo de vários povos. Antes dela, outros projetos de colonização marcaram a migração forçada de aldeias inteiras.
O Supremo Tribunal Federal marcou a votação da tese do marco temporal para quarta-feira, 7 de junho. Ao se antecipar e aprová-la na Câmara, os parlamentares buscam tanto evitar essa análise na esfera do judiciário quanto forjar um confronto com o STF. Como a tese é explicitamente inconstitucional, há chance de ser derrotada no Supremo, que deve manter a data. Neste caso, os deputados dirão – como já dizem – que o Supremo está afrontando a democracia e repetirão o discurso da “ditadura de toga”. O truque é manjado, mas ainda funciona para a parcela da população reduzida à manada.
Em São Paulo, o principal protesto indígena foi organizado pelo povo Guarani, da aldeia Tekoa Pyau, na Rodovia dos Bandeirantes, uma das principais vias de acesso à capital da maior cidade do Brasil. Os Guarani se reuniram às 18h de segunda-feira para iniciar seus rituais de rexistência. Por volta de 5h30 de terça-feira, numa madrugada gélida, com os corpos pintados, bloquearam a rodovia com pneus e atearam fogo.
Por volta de 7h começou uma negociação com a Polícia Militar de São Paulo, estado hoje governado pelo bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP). Os indígenas concordaram em liberar uma pista para passagem de ambulâncias e casos emergenciais. Mas, às 8h30, com a chegada da Tropa de Choque da PM, o diálogo foi interrompido, sob forte tensão. Quatro indígenas restaram feridos, um por balas de borracha e três deles por bombas de gás de “efeito moral”.
Ao mesmo tempo, um helicóptero da PM perseguia num voo rasante os manifestantes que corriam de volta às aldeias, assustando crianças indígenas que estavam na escola pela manhã. Galhos caíam das árvores e colocavam em risco os manifestantes e jornalistas que acompanhavam o protesto. A PM alegou, em nota, que “após três horas de negociação, a Tropa de Choque precisou agir com técnicas de dispersão de multidões”. Na conta da polícia, “ninguém foi preso e não houve relato de feridos”.
“Não é legítimo nos subjugar, mais uma vez”, defendeu o indígena Karai Djekupe. A ideia original dos manifestantes era caminhar até a Marginal Tietê, uma das principais vias expressas de São Paulo. Os sonhos, segundo Djekupe, aconselharam seu povo a rezar para o espírito adoecido do rio Tietê, que era mãe verdadeira e se tornou um símbolo da poluição.
Em Brasília, indígenas Kaingang, Terena, Guajajara, Pankararu, Tikuna, Kayapo, Xikrin, Potiguara, Tuxá, Tukano, Pankará, Kariri-xokó, Satere-mawe e Pataxó-hã-hã-hãe caminharam da Biblioteca Nacional/Museu da República até o gramado da Alameda dos Estados, em frente ao Congresso. Eram poucos, mas estavam lá.
Enquanto os indígenas tentavam ser escutados pelo país, os parlamentares defensores do marco temporal insistiam em se apresentar como os verdadeiros protetores dos povos originários, com rajadas de estupidez: os indígenas “não vivem de comer minhoca”, “têm mais terra que o tamanho de Portugal”, “são escravizados pela esquerda”. Segurança jurídica e “respeito à propriedade” eram as duas expressões mais ouvidas nos discursos dos parlamentares que querem ter o poder de demarcar – ou não demarcar nunca mais – as terras indígenas.
A deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) pintou as mãos com a pasta vermelha de urucum, para simbolizar que o voto pelo marco temporal era o voto não dos que tinham sangue indígena nas veias, como muitos deputados alegavam, mas daqueles que tinham sangue indígena nas mãos. Também afirmou que na Câmara se “negociava a mãe”, referindo-se à mãe Terra.
Ao passar por cima dos povos indígenas, os deputados passaram mais uma vez a boiada sobre a Amazônia e todos os enclaves de natureza que ainda resistem. Os homens de terno não tratoravam apenas o futuro, mas também a inteligência. A precariedade dos discursos, o negacionismo disfarçado de informação, a ignorância esgoelada com orgulho era também apocalíptica. Onipotentes, a maioria dos deputados parece sequer perceber que cava o abismo com seus sapatos de gabinete.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), no auge de seu poder, definiu com o cinismo habitual: “A maioria sempre vence a minoria”. A deputada Érica Kokay (PT-DF) resumiu a votação: “O absurdo, definitivamente, está perdendo a modéstia no Brasil”.
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Marco temporal: os indígenas contra o fim do mundo decretado pelos bandeirantes de terno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU