25 Mai 2023
"Governo Lula libera R$ 3,8 bilhões – o maior aporte para artes na história do país. Será preciso evitar que este enorme potencial seja engolido por burocracias. A saída: simplificar a gestão dos recursos e priorizar artistas; e sobretudo os jovens", escreve Célio Turino, historiador, escritor e gestor de políticas públicas, em artigo publicado por Outras Palavras, 23-05-23.
A Lei Paulo Gustavo (LPG) é uma conquista da sociedade brasileira que vai muito além do ambiente da Cultura em sentido estrito. É o maior aporte em recursos diretos para as artes e a cultura da história do país, R$ 3,862 bilhões, e libera de uma única vez todos os recursos acumulados no Fundo Nacional de Cultura por mais de uma década de contingenciamentos. Antes, o maior aporte em uma única ação da Cultura foi a Lei Aldir Blanc (LAB), com R$ 3 bilhões, em contexto de pandemia; antes dessa, o programa Cultura Viva, com R$ 559 milhões, entre 2004 e 2010. A aplicação dos recursos da LPG é de natureza distinta da LAB, que foi emergencial. A LAB cumpriu sua função, havendo preservado entre 450 mil e 800 mil postos de trabalho na cadeia produtiva da cultura, a depender do estudo. Inegavelmente foi um êxito, que deu base à LPG, incluindo o fato de haver preservado os recursos do FNC, por utilizar o chamado “orçamento de guerra” no enfrentamento à pandemia. O Cultura Viva, que serviu de base conceitual e de método de mobilização pelo consenso progressivo para a LAB, teve natureza distinta de ambas, por mais processual e de base comunitária.
Apresento os números e conceitos anteriores para que se tenha a dimensão do processo, da relevância, potencialidades e responsabilidades agora com a Lei Paulo Gustavo. Inicialmente a LPG deveria ter a mesma característica emergencial da LAB, mas com a má vontade do governo anterior e a demora na aprovação da lei, sua execução se dará em outro contexto, não mais de emergência, mas de retomada de ações perenes.
Para além de atender situações de urgência e emergência, que a lei sirva para saltos qualitativos em política cultural, com a efetiva estruturação do Sistema Nacional de Cultura, estabilizando Conselhos democráticos nos estados e municípios, Planos de Cultura e Fundos. E que a política cultural resulte em saltos qualitativos na criação, produção e circulação artística e cultural no Brasil; que muita gente seja capacitada em artes e cultura, que muita gente crie, invente. Que o Brasil seja tomado pelo encantamento que só a Arte e a Cultura são capazes de promover!
De norte a sul, nos rincões mais esquecidos, nas temáticas mais olvidadas. Que a aplicação da lei seja inclusiva e generosa. Cabem as culturas tradicionais e as artes experimentais, as artes de rua e as de câmera, a música popular (todas elas), os slams e as óperas, a música sinfônica. Os filmes, os documentários, as ficções, os curtas, os médias, os longas, as séries, os podcasts; os produtos que estão para serem complementados e concluídos e os que estão para serem criados.
Os jovens e iniciantes e os veteranos e consagrados (importante atentar para não os colocar em uma mesma seleção, pois os critérios são diferentes). Tudo e todas, e todes, e todos, cabem. Cabem porque a Cultura cabe em tudo e em todas. A Cultura, assim como a Arte, são substantivas femininas, por isso a concordância no feminino, por inclusiva.
Passando pelo preâmbulo, vamos à operação. Aqui tomo a liberdade de apresentar algumas sugestões, exemplos e alertas. A elas:
Enfim, vamos sair desse fetiche por editais, que no final são apenas regras para concurso. Há muitos caminhos para além da via concorrencial e meritocrática, mesmo mantendo a forma Edital. Sigamos por eles!
Antes de encerrar, no entanto, não posso finalizar essa carta, sem fazer uma consideração sobre o Capítulo X, expresso na regulamentação da LPG – Dos percentuais para operacionalização dos recursos recebidos pelos Entes (estados e municípios). É absolutamente indevida a liberação de 5% do total recebido para a operacionalização das ações da LPG, observando o teto de R$ 4 milhões. O artigo 17 é flagrantemente ilegal, me espanta que a Advocacia Geral da União tenha permitido. Um decreto jamais pode autorizar despesas não previstas em Lei. Na Lei Aldir Blanc houve essa tentativa, eu, inclusive, me pronunciei nas redes e felizmente houve a compreensão de que seria um desvio de finalidade, ainda mais em se tratando de recursos emergenciais e escassos, que deveriam chegar à ponta e não nos meandros de gestão.
Agora reaparece como um jabuti. Lanço um apelo à ministra Margareth Meneses para que torne sem efeito esse artigo. Não há demérito algum em corrigir falhas a tempo, ao contrário. Essa é uma medida que pode ser tomada de imediato, por justa e necessária, evitando qualquer problema futuro, como eventual judicialização, espero que não aconteça. Mesmo que alguém encontre uma filigrana jurídica a justificar a medida, ela é errada no mérito. Revogue esse artigo, ministra. Será um bem para a Cultura.
Caso o MinC, por alguma razão, decida manter esse desvio de finalidade, apelo aos gestores e gestoras dos entes federados, não utilizem esse recurso em finalidade outra que não a aplicação direta na ponta, fortalecendo os fazedores e as fazedoras de arte e cultura. Aparentemente R$ 3,8 bilhões, apresentados no conjunto, podem parecer muito, mas não são, sobretudo pelo tamanho do Brasil. Porém, 5% desse valor total significa subtrair da ponta o equivalente a R$ 190 milhões! É muito dinheiro com o qual é possível fazer muita coisa. Só para dar um exemplo: 630 Festivais ou Mostras de Arte e Cultura pelo país, cada qual recebendo R$ 300 mil. Já imaginaram? Um a cada oito municípios do país com um Festival, ocuparíamos o país com arte e criação. Mesmo com o teto de R$ 4 milhões em determinados estados, dá para contemplar mais 200 projetos a R$ 20 mil. É justo ficarem de fora?
Isso não significa que não compreendo a necessidade de despesas operacionais, capacitação, preparação dos processos. Claro que há e claro que podem e devem ser contratadas consultorias a auxiliarem a administração pública, ações de formação dos proponentes, ainda mais quando a administração direta não disponha de meios e pessoal. É justo que aconteçam. Mas os entes federados já estão recebendo o recurso sem necessidade de contrapartida. Assumirem diretamente essa despesa é mais que razoável.
Ademais, há o princípio, Fundos tem finalidade específica e a aplicação de recursos, não só em Fundos de Cultura, mas em todos, não pode ser desviada para cobrir despesas da administração direta. Lamento ter que dizer o óbvio, mas como servidor público aposentado, com 40 anos de serviço na cultura, eu não seria honesto comigo, e com a cultura, se não fizesse esse alerta a tempo.
Em 1990 eu assumi como presidente do conselho do Fundo Municipal de Cultura em Campinas, um dos primeiros do país, quando secretário de Cultura na cidade, jamais passou por minha cabeça a ideia de utilizar recursos do FAC em atividade meio, nem dos secretários que me antecederam – espero também dos que me sucederam. Com isso foi possível criar editais como o Prêmio Estímulo, que contemplou logo na primeira edição 72 iniciativas, Recreio nas Férias com oficinas de artes para crianças e jovens, Festival Internacional de Teatro, circulação de espetáculos, tanta coisa. Quando no MinC, em 2007, eu negociei pessoalmente, com todos os secretários estaduais de cultura, mais secretários de capitais e cidades maiores, R$ 75 milhões em contrapartida. Com essa negociação foi possível investir R$ 295 milhões no programa Cultura Viva naquele ano, agregando mais 2.500 Pontos de Cultura no país, que se somaram aos 700 até então.
A contrapartida era na proporção de R$ 3 (MinC) para R$ 1 (estados e municípios). Independente de partido, todos ficaram felizes por estarem aplicando os recursos em seus territórios. Quanto a despesas operacionais de cada um, nem se cogitava que os recursos viessem dos convênios, sendo assumidos diretamente por cada secretaria. Não é possível tamanha regressão. Hoje se subtrai 5% do Fundo Nacional de Cultura, amanhã 10%, 15%. Por que não 20%? Estamos tentando implantar o Sistema Nacional de Cultura a duras penas e já o deturpamos na partida, por regulamentação do próprio Ministério da Cultura?
Concordar com esse desvio de finalidade põe em risco o dia a dia dos Fundos de Cultura em todo país. Daqui a pouco os Fundos estarão cobrindo despesas “meio”, deixando de atender a sua finalidade precípua. Essas despesas tem que ser cobertas pelo orçamento direto. Alguém já imaginou isso no Fundef ou SUS? É o que se está propondo acontecer na Cultura. Inacreditável. Por favor, não me levem a mal, mas o artigo 17 precisa ser revogado imediatamente.
É o que eu tenho a dizer. No mais, forte abraço. E viva a Cultura a reencantar o Brasil!
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Lei Paulo Gustavo: O urgente resgate da Cultura. Artigo de Célio Turino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU