22 Mai 2023
“Grandes transtornos estão chegando. Transformarão nós todos e o nosso planeta." Assim começa O século nômade (em tradução livre) de Gaia Vince. Páginas, as primeiras, em que o leitor é submetido a uma lista chocante de fatos e números, sobre o futuro e o passado recente: um bilhão e meio de pessoas que poderiam ser forçadas a se mudar nos próximos trinta anos, dois milhões de pessoas que só em 2020 foram deslocadas por causa de condições climáticas extremas nos Estados Unidos, que registram em média um desastre bilionário a cada 18 dias, a maioria dos estudos científicos que preveem 3°C ou mais de aquecimento até 2100.
O século nômade (tradução livre), livro de Gaia Vince (Foto: Divulgação)
Quase um bilhão de indianos e cerca de 500 milhões de chineses correm o risco de se tornarem deslocados climáticos, assim como as populações da América Latina e da África. A escritora científica Gaia Vince parte dessas premissas para argumentar que devemos aceitar que partes do mundo estão se tornando inabitáveis e que é nosso dever moral planejar e permitir a migração em massa para áreas mais habitáveis. Vince fala ao La Stampa em entrevista por telefone de sua casa em Londres.
A entrevista é de Francesca Mannocchi, publicada por La Stampa, 21-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Gostaria de começar pela dramática situação climática que enfrentamos na Itália.
O que está acontecendo na Itália mostra que não estamos mais falando de países tropicais, do sul do mundo, mas que já afeta a todos nós, não mais uma vez por século, mas continuamente.
A tragédia da Emilia Romagna, as inundações no norte da Itália não são uma questão isolada, mas acontecem após a terrível seca do ano passado, pela condição do rio Pó.
A Itália é o terceiro país mais afetado pela seca na Europa, três das regiões mais afetadas da Europa pela seca são encontrados na Itália, são Emilia Romagna, Veneto e Lombardia. Nós não podemos ignorá-lo porque isso terá um impacto sobre as tarifas dos seguros, os aumentos de preços, sobre os lugares onde as pessoas podem viver. Pensem no ano passado, centenas de pessoas morreram por causa dos incêndios, Itália, França, Espanha, Portugal. Inundações na Alemanha. Também neste ano, em março, já antes do início do verão, várias pessoas tiveram que ser deslocadas e evacuadas por incêndios na fronteira entre a França e a Espanha. Não podemos mais ignorá-lo.
Quando escuta as posições de quem não acredita na emergência climática, como você se posiciona?
É um período inusitado na história da humanidade. Poderíamos escolher, poderíamos planejar essa situação para torná-la menos catastrófica. Ignorar ou negar é uma forma de afastar responsabilidades e preocupações. Há uma relutância em ir além de uma extrapolação do presente para imaginar a transformação de cenários familiares. Quem nega o faz para não agir, apesar dos climatologistas nos alertarem há 40 anos. Continuar a negar, no entanto, retarda um processo inexorável ao qual estamos destinados, ou seja, a adaptação de nossas vidas ao presente e ao futuro que nos espera. Temos de descarbonizar as nossas economias, adaptar as infraestruturas que foram concebidos para um clima mediterrânico temperado e não para o clima tropical que estamos vivendo.
Você usou a palavra adaptação, que é a chave de todo o livro. Na introdução, entrega aos leitores números e dados, estudos científicos e provas e sobre tais bases convida ao pragmatismo.
Precisamos ser honestos e nos dizer: vamos alcançar 1,5 graus em alguns anos. Provavelmente não conseguiremos manter 1,5 graus até o final do século, é realmente pouco provável que conseguiremos ficar abaixo de 2 graus. O que significa? Inabitabilidade de muitas regiões em poucas décadas. A partir dessa honestidade temos que trabalhar com a realidade que temos, considerara as perdas e as compensações. Como e onde recuperar as perdas econômicas, como prevenir choques financeiros, como enfrentar os inevitáveis fluxos migratórios que nos esperam nos próximos anos". No livro você afirma "devemos parar de considerar aqueles que se deslocam como um problema, o problema são algumas das razões pelas quais fazem isso.
No entanto, na opinião pública a migração está sendo enquadrada mais como um risco para a segurança do mundo desenvolvido do que como um recurso. Como a narrativa sobre a imigração pode mudar em relação à adaptação à crise climática?
Podemos sobreviver a esta crise se começarmos a planejar agora a migração humana de milhões de pessoas por todos os continentes e para regiões com condições mais toleráveis, em especial nações em latitudes setentrionais como a nossa. Com +1,5°C por volta de 2030, os estados europeus registrarão trinta mil mortes por ano devido ao calor. Em 2010, quando a Rússia sofreu uma megaonda de calor que durou quase dois meses, os corpos se acumularam nos necrotérios das cidades. Um estudo do The Lancet calcula que um aumento de 2°C na temperatura global em 2050 levaria a uma redução na disponibilidade global de alimentos de 99 quilocalorias por pessoa por dia: um problema sério para pessoas que já estão à beira da fome. As pessoas não podem escapar da realidade física das mudanças climáticas: fogo, calor, seca e inundações, o que descrevo no livro como Os Quatro Cavaleiros do Antropoceno. Mas aquilo a que podemos escapar são as barreiras sociais inventadas que estamos construindo para tentar impedir que o façam. A mudança climática exigirá uma migração legal, segura e em larga escala e novas instituições para assumir o ônus de gerenciá-la, proponho no livro uma Organização internacional das migrações das Nações Unidas com poderes reais para gerir os refugiados.
Você basicamente diz: um número cada vez maior de regiões do mundo se tornará inabitável e para sobreviver é necessária uma migração planejada que a humanidade não nunca empreendeu antes.
Veja, a história do homem é baseada na migração, o que infelizmente fizemos nos últimos séculos é impedir esse instrumento extraordinário. Claro que não estou defendendo jogar fora o modelo do estado-nação, mas estou dizendo que chegou a hora de repensar como decidimos onde alguém pode morar tendo em mente que muitos dos lugares relativamente seguros para viver no nosso planeta, ou seja, as latitudes setentrionais, são lugares que sofrem de uma crise demográfica. Teremos uma migração em massa, podemos prever isso e, portanto, temos que gerir a situação de forma justa ou correremos o risco de uma catástrofe.
No livro você apresenta alguns exemplos de gestão da crise climática em países muito afetados como o Bangladesh ou Kiribati, um estado do Pacífico com atóis muito baixos. No início dos anos 2000 o presidente de Kiribati, Anote Tong, entendeu que a ilha corria o risco de ficar submersa e introduziu o conceito de "migração com dignidade", ou seja, incentivou os cidadãos a adquirir competências e formação para deixar o Kiribati e buscar uma nova vida no exterior. Melhor ser um migrante experiente – argumentava – do que um refugiado climático. O que esses exemplos nos ensinam?
O aumento do nível do mar, o aumento das fortes tempestades, trará um terço de Bangladesh a ser inabitável e com ele uma enorme fatia de população. Uma das coisas interessantes sobre País, em termos de adaptação, é que nas últimas décadas as mudanças climáticas cresceram de intensidade e severidade no mesmo ritmo que crescia a população e, portanto, também o número de pessoas em risco. Apesar disso, as mortes devido a eventos climáticos desastrosos diminuíram 100 vezes.
Existem muito mais sistemas de monitoramento, as comunidades de áreas de risco podem saber quando o perigo se aproxima e foram criadas comunidades de apoio, cidades nascidas para responder a esse deslocamento forçado. Bangladesh é um país que planejou áreas urbanas para responder ao problema, incentivou as pessoas a construir abrigos temporários, a não ter medo de ter que deixar – por um período – suas casas. Isso teve o efeito de fortalecer as comunidades, unidas para reduzir o número de mortos. As pessoas sabem que existem cidades satélites onde podem migram de situações de perigo, são centros temporários para deslocados forçados e aprenderam a viver de uma nova forma, com novos trabalhos, com perspectivas educativas diferentes. Eles estiveram dispostos a mudar seu estilo de vida e se adaptar.
Você escreve no livro que tem uma filha de 6 anos. Ela faz perguntas, o que lhe responde?
Quando falo com a minha filha lhe explico que estamos atravessando um grande período de transição. Da poluição que produzimos, do consumo de materiais fósseis passamos a novas formas de eletricidade. E é uma transição lenta. Conto a ela que um dia não respirará mais a poluição dos carros. Eu tento pintar um quadro de como o mundo poderá e deveria ser. Mas também lhe falo que as coisas, por agora, não vão bem porque as pessoas estão demasiado assustadas pela mudança para se darem realmente conta do que já está acontecendo à nossa volta.
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“O clima vai produzir migrações em massa, criará transtornos para nós e nosso planeta”. Entrevista com Gaia Vince - Instituto Humanitas Unisinos - IHU