08 Mai 2023
O renomado ensaísta, filósofo e professor italiano Nuccio Ordine (Diamante, Calábria, 1958), que acaba de ganhar o Prêmio Princesa das Astúrias de Humanidades, veio a Bogotá para participar da Feira Internacional do Livro, e pudemos conversar sobre a sua obra e seus postulados, que estão girando o mundo.
Nuccio Ordine acaba de publicar seu mais recente livro na Espanha, Los hombres no son islas (Acantilado, 2023), obra que por vários dias foi o livro mais vendido na categoria não ficção, na Amazon, em todo o mundo, e que chega para fechar uma esplêndida trilogia crítica e devota da cultura universal e de suas representações, que começou com A utilidade do inútil, traduzido para 24 idiomas e publicado em 33 países.
Ordine foi professor convidado de centros como Yale, Paris IV-Sorbonne e Instituto Max Planck para a História da Ciência, de Berlim. Também é membro do Centro Italiano para Estudos da Renascença Italiana, da Harvard University, e da Fundação Alexander von Humboldt.
A entrevista é de Erick C. Duncan, publicada pela revista colombiana Cambio, 04-05-2023. A tradução é do Cepat.
Chegará ou já alcançamos esse ponto da história em que a memória do passado, a arte, as disciplinas humanas e o pensamento crítico morrem?
Hoje, a tecnologia nos faz entender que o passado é obsoleto, não conta para nada. Toda a ideia da tecnologia é que o importante é o amanhã, não o dia de ontem. Essa é uma visão consumidora da vida e da cultura. Observe, por exemplo, o que acontece com o IPhone 17: consideram que os 16 modelos que o antecedem não servem para nada, pois os novos programas e aplicativos deixam de ser lidos por esses modelos. Essa é a forma como o mercado diz que você deve sempre comprar coisas novas.
A cultura da tecnologia está ligada a um consumismo permanente e eterno, cujo principal objetivo é nos tornar consumidores permanentes, quase até a morte. Temos que defender uma outra visão de mundo. Em Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez nos fala sobre o risco de perder a memória. O que significa perder a memória? Há uma frase maravilhosa de Milan Kundera que pode descrever tudo isso: “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.
Se esquecermos, se perdermos o contato com a memória, vamos criar um mundo de bárbaros, um mundo de ignorantes, um mundo de gente que não tem senso crítico para dizer não. Hoje, a tecnologia e seus dispositivos nos fecham em um cárcere que não vemos, estamos felizes em viver nesse cárcere. Por que será? Porque roubam a nossa intimidade em troca de coisas práticas muito úteis, mas o preço que estamos pagando é muito alto.
No romance de Orwell, 1984, o Grande Irmão controlava toda a sua vida, cada gesto, cada palavra, cada instante de sua vida era registrado pelos olhos do Grande Irmão, e as pessoas o odiavam. Hoje, temos os dispositivos, uns “grandes irmãozinhos” que roubam a nossa intimidade, mas que queremos, e essa é a grande invenção da tecnologia: fazer com que queiramos o cárcere. Isso não é ser contra a tecnologia, sabemos que é muito útil, mas uma coisa é usar a tecnologia e outra muito diferente é ser usado por ela.
Diderot dizia que desprezava tudo o que não é útil, porque o tempo é curto demais para perdê-lo com especulações ociosas. Quanto isso mudou, especialmente no século XX?
Diderot era um provocador, seu pensamento era contra a corrente, possui páginas muito afiadas sobre temas como o casamento, em que questiona, por exemplo, que um homem diga a uma mulher “vou te amar por toda a vida”, em um mundo no qual a eternidade não existe e a incerteza é muito forte. É claro que hoje a sociedade pensa que o útil é fundamental, no econômico e o material, mas existem outras utilidades e benefícios que são importantes, existe um pão para o corpo e outro para o espírito.
Penso que hoje não vemos a importância do pão para o espírito. Há um discurso maravilhoso que García Lorca preparou para a inauguração de uma biblioteca em sua cidade natal, Fuente Vaqueros, no qual disse: “Se eu não tivesse dinheiro e estivesse na rua, não pediria um pão, pediria meio pão e um livro”. Se ficarmos apenas com o pão que o corpo precisa, acabaremos vivendo em tempos de barbárie.
Montaigne disse algo no mesmo sentido, questionando o desejo de posse...
Claro, em seu momento, Montaigne nos disse que a coisa mais valiosa na vida do homem havia se tornado possuir, comprar, vender, ter dinheiro. Não, o mais importante na vida é aprender a desfrutar, porque quando se aprende a desfrutar, é possível ser verdadeiramente feliz, autenticamente feliz.
Tem muita gente milionária e pouco feliz. Por quê? Porque não sabem desfrutar, possuem a ideia de que é preciso ganhar dinheiro, porque esse dinheiro serve para ganhar mais dinheiro, assim, em um círculo vicioso infinito, não conseguem ver que o dinheiro é um meio, não o fim, o objetivo. Montaigne nos faz entender isso: quando se sabe desfrutar, apreciar uma sinfonia de Mozart, ler um romance como Cem anos de solidão, sabe-se curtir e aproveitar esse deleite para ser autenticamente feliz.
Por que esquecemos que escola vem do grego “scholé”, que significa “ócio, tempo livre”?
Esquecemos isso sob a crença de que a escola deve ser produtiva, mas o verdadeiro conhecimento tem suas raízes em atividades que não têm uma finalidade prática, econômica. Qual é a tendência da escola e da universidade de hoje? Estão sendo transformadas em empresas que devem produzir e os estudantes são os clientes que compram o diploma. Este comércio está corrompendo o verdadeiro objetivo da escola. A escola e a universidade não servem apenas para formar profissionais, advogados, médicos... Isso é importante, mas a principal tarefa é formar cidadãos cultos e solidários.
Além disso, um cidadão que estudou uma disciplina por amor ao conhecimento não pode exercer seu trabalho com a ideia de ganhar dinheiro. Se você influencia os estudantes com o discurso utilitarista presente em todo o mundo, hoje, como fez Boris Johnson com a ideia de que é necessário escolher as disciplinas que permitem ganhar dinheiro e tudo mais, bom, isso significa que se eu tenho que estudar uma disciplina pensando na utilidade econômica, devo deixar de lado o que amo. Se escolhi medicina ou engenharia para ganhar dinheiro, acabarei sendo um perigo para os outros, porque um médico e um engenheiro que se orientam pelo lucro, nessas disciplinas, vão causar estragos. Esse é o problema ético que enfrentamos hoje.
Claro, como a correspondência que Hipócrates mantém com Demócrito a esse respeito: o amor à vocação e ao saber.
Falo sobre isso em Clásicos para la vida, um dos livros que, junto com A utilidade do inútil e Los hombres no son islas, fecha a trilogia que escrevi. Os clássicos são sempre o guia, são as palavras dos antigos que respondem às nossas questões. Os clássicos, na realidade, são nossos contemporâneos, por isso Hipócrates nos faz compreender que um médico que busca ser médico pelo lucro não é um médico, mas outra coisa muito diferente.
Talvez seja por isso que Italo Calvino disse que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos, ao mesmo tempo em que nos previne contra essa ideia de que devemos ler os clássicos porque “servem” para algo, para concluir dizendo que ler os clássicos é melhor do que não os ler.
Como a anedota de Sócrates, que, antes de morrer, toca flauta e alguém lhe pergunta para que serve aquilo, justamente naquele instante mortal, e ele responde: “Para aprender um pouco de música antes de morrer”. É uma resposta fantástica, ajuda a compreender a ideia do prazer que vem de fazer as coisas apenas pelo próprio prazer, como o coronel Aureliano Buendía, que fabricava em sua oficina os peixinhos de ouro, vendia e derretia as moedas que obtinha para continuar fazendo mais peixinhos.
Atualmente, você é professor na Universidade da Calábria, mas antes disso já esteve em outras instituições acadêmicas (Yale, Paris, Nova York). Como é a sua aula, em que se concentra e por que você questiona o modelo atual de universidade entregue ao mercado?
Sempre digo as mesmas coisas aos meus estudantes: a ideia de que os estudos não servem para ganhar dinheiro, servem para nos permitir ser melhores, para compreender melhor o mundo que nos rodeia. Minha profissão como professor sempre esteve orientada a criticar os valores dominantes da sociedade para ensinar aos estudantes a dizer não. A escola tem que formar hereges, não soldadinhos passivos que fazem o que a sociedade lhes pede, como, por exemplo, ser consumidores passivos, soldadinhos que pensam que a verdadeira dignidade humana é somente o dinheiro.
Já sabemos que um homem endinheirado pode carecer de dignidade, enquanto aquele que não tem dinheiro, pode ser imensamente digno, como os pescadores que conheci visitando um pequeno povoado palafita em Ciénaga Grande de Santa Marta, que trabalham o dia todo para sustentar a família com muito pouco, mas com uma imensa dignidade; como o professor que sai de Barranquilla e passa duas horas em uma motocicleta e outras duas em uma lancha para chegar a esses povoados perdidos para ensinar as crianças a ler e escrever. Isso não tem preço.
Na Colômbia, hoje, paga-se melhor aos seguranças do que aos professores, e proporcionalmente há mais, mas são os professores que nos levam a sociedades mais humanas. Os filhos desses pescadores têm o direito a aprender, a estudar, a pensar em uma profissão que não seja a de pescador para toda a vida, só porque seus pais e avós são. É injusto. Por que não oferecer aos jovens a oportunidade de fazer coisas muito importantes?
Cita Abraham Flexner para dizer que criar rivalidades entre conhecimentos humanísticos e científicos só nos leva a um debate estéril. Ao contrário, sugere que, junto aos humanistas, os cientistas têm muito a nos ensinar sobre a utilidade do inútil. De fato, é assim?
Isso é muito valioso, é profético porque o utilitarismo de hoje não só ameaça as humanidades, mas também a ciência, pois por questão de rentabilidade são realizadas pesquisas a curto prazo e o imediatismo nunca produziu grandes pesquisas. As grandes revoluções na ciência foram produzidas por pessoas que não tinham pressões utilitaristas.
Se hoje temos o GPS, é porque Albert Einstein criou sua teoria da relatividade, e se um jornalista tivesse perguntado a ele para que servia sua teoria, certamente, teria dito que para conhecer o mundo, não para fazer o GPS. O GPS é uma consequência. Hoje, sempre pensamos em produzir algo no curto prazo para ganhar dinheiro, e por aí perdemos a importância da boa pesquisa que não pede rapidez, pede lentidão.
Os livros e as bibliotecas sempre sofreram a perseguição de regimes totalitários. Dos nazistas aos talibãs no século XX, a queima de livros foi habitual em certos períodos. Devemos a próxima grande proibição a essa chamada cultura do cancelamento, que você criticou veementemente?
Para mim, essa ideia de cancelar a história é uma barbaridade, porque a história não pode ser cancelada, pode ser criticada, o que é normal. A principal função da educação é aprender a criticar. A ideia de que há pessoas censurando os clássicos e dizendo: “Você tem que ler isso, mas não aquilo porque não é bom e também não leia esta página”..., essa forma de censura é terrível. Quem pode dizer que eu tenho o direito de censurar os clássicos?
Na história, são os regimes ditatoriais que sempre pensaram assim. Para mim, é regressar à barbárie. Você pode criticar algo, mas a história não pode ser reescrita, reescrever a história é como entrar no mundo de Orwell. Em 1984, já falavam de um ministério que continuamente reescrevia a história segundo os interesses que iam mudando. Isso é uma loucura. A história deve ser respeitada e os clássicos sempre nos oferecem contradições.
Por exemplo, um tolo ignorante que compra o Orlando furioso, de Ariosto, que é o clássico básico que permitirá a Cervantes escrever Dom Quixote, se esse leitor ignorante ler versos misóginos naquele texto e disser que esses versos devem ser eliminados, apagados, porque ofendem a dignidade das mulheres, cai em um grande erro porque são justamente esses versos que nos ajudam a entender a loucura da misoginia. E, além disso, porque em outras páginas de Orlando furioso há versos nos quais se pergunta por que uma mulher que tem três amantes é prostituta e um homem com três mulheres é um Don Juan... Isso é de uma modernidade incrível, um clássico ajuda a entender essas contradições. Temos que ler integralmente porque escolher uma página não permite a compreensão do todo. Por isso, para mim, essas operações de cancelamento são muito perigosas.
Claro, mas não é paradoxal que se cancele em nome de ideias progressistas?
Em nome do progressismo, também foram feitas coisas que provocaram enormes danos ao verdadeiro progresso. O progresso é como um fármaco. A raiz grega de fármaco significa “veneno e remédio”, o resultado depende das doses. A mesma coisa que salva, pode matar. É a lógica do fármaco mal utilizado. Se você tomar 25 aspirinas, talvez possa morrer; se tomar três, pode se salvar. Isso não significa ser contra o progresso, significa não o usar como um instrumento violento, que nos faça retroceder.
Estamos mais isolados do que antes, apesar das múltiplas redes de conexão que nos cercam diariamente, com a virtualidade?
Essa é uma ilusão da tecnologia. A tecnologia provoca a ilusão de que você está conectado 24 horas com o mundo todo, quando, na realidade, você está trancado em seu quarto, sozinho. Os jovens e as pessoas de hoje acreditam que a amizade está a apenas um clique no Facebook. Isto é uma banalização da amizade que, na realidade, exige tempo, um abraço, uma relação face a face. A construção da vida virtual nada tem a ver com a humanidade real e, por isso, as próximas décadas podem ser muito perigosas para nós.
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“A escola tem que formar hereges, não soldadinhos passivos”. Entrevista com Nuccio Ordine - Instituto Humanitas Unisinos - IHU