Políticas da amizade. Artigo de Danilo Di Matteo

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21 Abril 2023

"E se, como crentes, tentássemos por um instante conceber os eventos bíblicos (o Cântico dos Cânticos, por exemplo), o nosso próprio Deus, o nosso Deus 'totalmente outro' e que ainda parece residir em nós, o nosso 'crer e duvidar' numa perspectiva desse tipo?", escreve Danilo Di Matteo, em artigo publicado por Settimana News, 11-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

A obra de Jacques Derrida Politiques de l’amitié é, como todas as obras-primas, e talvez mais do que outras, uma mina inesgotável de ensinamentos e ideias nas quais se debruçar. Como diria Gadamer, nela se seguem ou se fundam horizontes diferentes e muitas vezes distantes.

Politiques de l’amitié

E são muitas alusões, significados, registros expressivos. O autor, além disso, sabe que tudo, como num jogo sem fim e infinito de espelhos, luzes e sombras, se multiplica exponencialmente no encontro com os leitores e suas perspectivas. Pessoalmente, por exemplo, vivo o texto como se condensasse, como se fosse uma espécie de prodígio, os meus últimos vinte anos de âmbitos disciplinares diferentes, como a psiquiatria e a filosofia.

Acrescentando muito mais, claro. Como se sabe, o grande Habermas havia sustentado inicialmente que aquelas de Lévinas ou, precisamente, de Derrida fossem obras mais literárias do que filosóficas. Reconhecendo posteriormente, porém, o inestimável valor filosófico, além do literário; percebendo, aliás, seu caráter fecundo, a fertilidade própria no feliz casamento entre a agilidade e a beleza da escrita e a profundidade do pensamento[1].

Pois bem, muitas vezes propõe-se uma leitura de Politiques de l’amitié que visa apreender as analogias e, sobretudo, os aspectos dissimilares, como num cativante movimento de referências e de sombras, no que diz respeito ao conceito de político de Carl Schmitt. Uma leitura e uma tensão a que, aliás, o volume de Derrida se presta de bom grado. E se tentássemos abordar os três primeiros capítulos?

Heimat

Aqui, antes de evocar diretamente o nosso autor e os "mestres da suspeita" a que se refere, as palavras de André Neher nos iluminam. Vamos tentar nos aproximar do sentido da palavra alemã Heimat (a palavra "Pátria" é apenas uma sua tradução aproximada).

Vamos ouvir: “A verdadeira tradução da palavra Heimat deve enfatizar a indizível intimidade do Heim alemão, que embala, fascina, faz sofrer e apazigua o Judeu perdido: o calor do Shabbat na casa dos pais[2]”. Aqui está, a intimidade indizível. A mesma evocada pelo termo heimlich: o que é familiar, íntimo, justamente, e, portanto, também reservado, quase escondido.

E como na língua hebraica às vezes na mesma palavra podem ser lidos conceitos aparentemente distantes ou opostos, ou vocábulos que parecem ter um significado oposto referem-se à mesma ideia básica (esperança e fracasso, por exemplo: do fracasso brota a esperança, e a esperança nasce, literalmente, fracassada), assim Freud lançou uma nova luz sobre o termo alemão unheimlich: perturbador, inquietante.

O que nos inquieta e perturba por ser estranho, não familiar, claro, mas não só; aquele elemento externo a nós, aquela força estranha, também nos coloca em dificuldade, talvez sobretudo porque ativa, desperta algo que já estava em nós, ainda que dormente. Ressoa com o estranho que está em nós, por assim dizer.

E aqui chega Derrida, falando da decisão e do evento; sobre seu nexo como o sujeito, conosco. Derrida que tenta ler Nietzsche. Vamos escutar: a decisão "significa, portanto, o outro em mim, que decide e dilacera. A decisão passiva, condição do evento, em mim é sempre, estruturalmente, outra decisão, uma decisão dilacerante como decisão do outro. Do outro absoluto em mim, do outro como do absoluto que em mim decide sobre mim[3]".

E, atenção, nisso continuo a ser responsável, por mim e pelo outro. E aqui uma metáfora nos ilumina: é como se eu (cada um de nós), na decisão que se abre ao evento, recebesse a pulsação do coração do outro; o sangue, “a força para chegar”[4].

Além da amizade canônica

Vamos voltar por um instante ao talvez, ao talvez de Nietzsche, de Neher, de Derrida. O talvez não é, simplesmente, a possibilidade. De fato, costumamos conceber a possibilidade em dois planos: aquele diacrônico, no tempo (como potência, potencialidade que se torna, ou não se torna, ato, fato), e aquele sincrônico (junto ao que agora é, tenho, sempre agora, das alternativas: poderia ser diversamente).

O talvez é, ao contrário, o espaço que permite que o evento seja tal, que algo outro irrompa, escapando a qualquer determinismo (não por acaso Giacomo Marramao defende que a liberdade consiste no evento). E a aporia do talvez consiste no fato de que aquele evento requer, para ser tal, estabilizar-se por um instante, "suspendendo" justamente o talvez de onde brotou.

Aqui está, na perspectiva do talvez que Derrida alude ao aimance, "para além do amor e da amizade segundo as suas figuras canônicas", justamente como a pulsação do coração do outro em nós. “Aqui está o que pode acontecer, quando se pensa com alguma consequencialidade a lógica do talvez. De fato, isso é o que pode acontecer à lógica segundo a experiência do talvez”. "Eis o que poderia acontecer, se assim se pudesse esperar, entre amigos, entre dois, entre dois ou mais (mas quantos?), que se amam"[5]. Chegando aqui, Derrida escolhe se calar.

E se, como crentes, tentássemos por um instante conceber os eventos bíblicos (o Cântico dos Cânticos, por exemplo), o nosso próprio Deus, o nosso Deus “totalmente outro” e que ainda parece residir em nós, o nosso “crer e duvidar” numa perspectiva desse tipo?

Notas

[1] J. Habermas, Nachmetaphysisches Denken II. Aufsätze und Repliken, Suhrkamp Verlag, Berlin 2012; trad. it de L. Ceppa, Verbalizzare il sacro. Sul lascito religioso della filosofia, Laterza, Roma-Bari 2015, cfr. p. 87 e pp. 134-135.

[2] A. Neher, Ils ont refait leur âme, Éditions Stock, Paris 1979; trad. it. de R. Cuomo, Hanno ritrovato la loro anima. Percorsi di teshuvah, Marietti, Genova-Milano 2006, p. 159.

[3] J. Derrida, Politiques de l’amitié, Éditions Galilée, Paris 1994; trad. it. de G. Chiurazzi, Politiche dell’amicizia, Raffaello Cortina, Milano 1995, p. 96.

[4] Ivi, p. 97.

[5] Ivi, pp. 97-98. 

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