05 Abril 2023
"Quando o governo finalmente se dispuser a abrir o debate para o conjunto da sociedade e no parlamento, nos caberá apontar as fragilidades das medidas e sugerir alterações para evitar que as supostas mudanças permaneçam na perigosa linha do conhecido 'mais do mesmo'", escreve Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por OutrasPalavras, 04-04-2023.
A julgarmos pelo entusiasmo com que o ministro da Fazenda está tratando as propostas que o governo deverá apresentar ao Congresso Nacional ao longo dos próximos dias a respeito do regime fiscal, é recomendável adotar uma postura de muita cautela na avaliação das medidas.
As imensas dificuldades que o presidente Lula iria encontrar na área da economia eram para lá de conhecidas antes mesmo das eleições de outubro. Havia algumas heranças malditas que vinham ainda da época de Temer & Meirelles, a exemplo da primeira versão da “reforma” trabalhista redutora de direitos e o famigerado teto de gastos, consubstanciado na Emenda Constitucional (EC) nº 95. Além disso, vieram depois as tragédias proporcionadas pela dupla Bolsonaro & Paulo Guedes, período em que foram aprofundadas as medidas que retiravam direitos dos trabalhadores, ampliou-se o número e os valores das privatizações, consolidou-se a independência do Banco Central (BC), deu-se continuidade à política de paridade de preços de importações (PPI) da Petrobrás e manteve-se o desemprego em níveis criminosos.
Lula foi convencido por sua equipe de que o melhor a fazer no início de seu governo seria uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que apontasse para a revogação do teto de gastos. De fato, seria impossível começar o quadriênio com a impossibilidade de elevar as despesas públicas, condição essencial para retomar o crescimento das atividades econômicas e levar em frente o seu programa de governo aprovado nas urnas. O problema é que a PEC 32, aprovada no final de dezembro e promulgada sob a forma da EC 126, previa um dispositivo bem peculiar para tal mudança. O governo deve enviar um projeto de lei complementar para tratar do novo arcabouço fiscal. Mas enquanto o novo texto não for aprovado, fica valendo a atual regra do teto de gastos.
(…) “Art. 6º O Presidente da República deverá encaminhar ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico” (…)
Ora, esta seria a oportunidade perfeita para que as propostas de um novo modelo fossem debatidas com o conjunto da sociedade e com os seus representantes em todas as esferas da vida política e pública. No entanto, a opção da área econômica, mais uma vez, foi a de privilegiar os contatos e as negociações com os representantes do sistema financeiro. A intenção era a de apresentar algo que fosse palatável pelos setores das nossas elites, ainda completamente dominadas pelo discurso anacrônico do ajuste austericida e do neoliberalismo capenga. Enfim, uma esperança ingênua e irresponsável, sem nenhuma base na análise do momento atual e da nossa História.
Parece óbvio que a revogação do teto de gastos era uma necessidade indiscutível. Afinal, a rigidez imposta pelo mecanismo operava como uma séria trava a qualquer projeto de retomada do desenvolvimento econômico e social, uma vez que a recuperação do protagonismo do Estado em nosso país é condição sine qua non para implementar tal estratégia. Impedir o crescimento real de despesas governamentais por 20 longos anos combina apenas com ampliação do processo de privatização dos serviços públicos e com a redução da dimensão do aparelho estatal à sua dimensão mínima.
No entanto, a eleição de Lula e a oportunidade aberta para substituir o teto de gastos por um arcabouço fiscal progressista não podem ser desperdiçados apenas por um desejo de incorporar os personagens do bom mocismo, tal como tem sido feito até agora pelos dirigentes do Ministério da Fazenda. Na verdade, fica um roteiro de me-engana-que-eu-gosto, pois esse novo/velho personagem nunca vai ser capaz de enganar a plateia. Se houver algum aplauso, vai ser mais por mera cortesia. Na hora que puderem conversar com o diretor da peça ou com o dono do teatro, com certeza vão pedir a cabeça do cara ou mudar radicalmente a sua fala.
Os representantes do financismo já contam com o fiel e estratégico apoio de Roberto Campos Neto na presidência do BC e do Comitê de Política Monetária (Copom) em seu intento de sabotar o terceiro mandato de Lula. Assim foi com as três oportunidades onde aquele colegiado se reuniu desde a vitória eleitoral e, apesar disso, manteve a Selic nos níveis estratosféricos de 13,75%. O governo, por seu turno, perdeu a oportunidade na reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN), realizada em 16 de fevereiro, de rever a meta de inflação e retirar um dos argumentos do BC para manter esse nível da taxa oficial de juros. Ao que tudo indica, recuar de forma antecipada nas propostas de novo arcabouço fiscal progressista apenas para obter um apoio da direção bolsonarista do órgão pode se revelar como um verdadeiro tiro no próprio pé.
As propostas que têm sido ventiladas até o momento apontam para a insistência em priorizar o corte de despesas. Essa é a maior exigência do povo da finança, que pretende aplicar a frase do escritor italiano Lampedusa no romance Il gattoprado: “é preciso mudar para deixar tudo como está”. O Ministério da Fazenda tem apresentado uma versão mais sofisticada do que o atual teto de gastos draconiano. No entanto, as propostas mantêm o foco no controle de gastos, que poderiam ser elevados, no máximo, a 70% do que o crescimento observado para as receitas. Ora, não faz o menor sentido esse tipo de restrição, uma vez que as necessidades para o quadriênio em curso apontam justamente para a necessidade de se promover uma elevação substancial das despesas públicas para atender aos programas do governo e às urgências do Brasil.
Se é verdade que talvez as falas de Lula a respeito de carimbar os gastos de saúde e educação como investimento possam minorar os efeitos da austeridade meia boca que a proposta encerra, o fato é que as medidas anticíclicas da proposição dificilmente criarão as condições para recuperar o volume de investimentos públicos no ritmo que a sociedade espera do governo. A intenção maior da proposta é revelada pelo desejo expresso de zerar o déficit primário já no próximo ano e trabalhar pela geração de superávits nos exercícios seguintes (0,5% do PIB em 2025 e 1% em 2026). Ora, nós já assistimos a filmes desse tipo nos ajustes de austeridade de Palocci (2003) e Levy (2015). Os resultados políticos, econômicos e sociais foram desastrosos.
E lembremos sempre que trabalhar pela obtenção, nada “ingênua”, de superávit primário esconde a armadilha de comprimir as despesas não-financeiras (que o financês malandramente adjetiva como “primárias”) para que esse saldo positivo nas contas públicas seja livremente utilizado para pagar os juros da dívida públicas. Sim, pois segundo o calabouço fiscal proposto, não se deve aplicar nenhum critério de controle, teto ou restrição para o nível das despesas financeiras. Estas seguem livres e soltas para crescerem o quanto quiser o governo e/ou conseguirem impor os eternos lobistas de plantão do financismo.
Os grandes meios de comunicação já apontam para o fim da lua de mel com o novo governo. Criticam as intenções de “gastança descontrolada” de Lula e não perdoam o que chamam de “sanha arrecadatória” do governo. Exatamente por isso, preferem o termo “âncora” para melhor designar suas sugestões de substituição do teto de gastos. Assim, de acordo com tal interpretação da austeridade, as despesas governamentais deveriam ficar presas e imobilizadas em um nível submarino, impedidas de subir à superfície e, assim, conseguirem algum oxigênio para sobreviver.
As informações oficiais parecem confirmar tal tendência neste início de governo. Com a divulgação das estatísticas fiscais do BC para o mês de fevereiro, as despesas com pagamento de juros ao longo dos últimos 12 meses alcançaram o valor acumulado total de R$ 660 bilhões. Caso não seja revertido de forma urgente o atual patamar da Selic, esse montante deverá em breve ultrapassar facilmente a casa dos R$ 700 bi. Por outro lado, se considerarmos apenas o primeiro bimestre do ano, o valor para janeiro/fevereiro foi de R$ 116 bi. Ou seja, durante o início de Lula gastou-se com juros mais do que o dobro observado no ano passado e superior a qualquer ano do mandato de Bolsonaro.
Ora, qual o sentido de se promover mais um mecanismo perverso de controle das despesas primárias, enquanto os gastos com juros seguem pressionando a estrutura de despesas do governo federal? Na verdade, ao encaminhar uma proposta como a que está sendo ventilada, o governo Lula apenas mantém e reproduz a profunda desigualdade estrutural que sempre caracterizou o mecanismo de gastos públicos em nosso país. Medidas restritivas para as necessidades da maioria da população e satisfação plena e integral dos desejos do pessoal que costuma frequentar o topo da pirâmide.
Apesar de significar um pequeno avanço em relação ao profundo desastre que provocava o teto de gastos, a proposta articulada por Fernando Haddad não resolve a necessidade de contarmos com um arcabouço fiscal que seja anticíclico, como se diz no jargão do economês. Isso significa que o Brasil precisa de medidas de política fiscal que atuem na direção contrária do senso comum. Assim, em momentos de baixa do ciclo econômico, como nas épocas de recessão, o Estado deve justamente aumentar seus gastos – e não o contrário. Mas mesmo a regra sugerida, apesar de ser mais flexível do que o rigor atual do teto, não estará em condições de proporcionar tal ferramenta de política econômica na medida da urgência que precisamos. E esta ausência poderá ter graves consequências políticas e sociais.
Lula não cansa de repetir que só aceitou a incumbência de mais um mandato se fosse possível fazer mais e melhor do que nos dois anteriores. Pois o presidente precisa ser alertado de que pode estar caindo em um engodo. O arcabouço fiscal que está sendo apresentado a ele, sem menor discussão com a sociedade e com profissionais que não rezamos pela cartilha do financismo, poderá criar sérias dificuldades para que o programa vitorioso nas eleições seja levado a cabo. O risco de uma frustração popular generalizada não pode ser desconsiderado.
As elites planejam desde sempre para impedir que Lula 3.0 seja um governo com saldo vitorioso. O obstáculo para a implementação de uma política econômica capaz de proporcionar crescimento do PIB e desenvolvimento social e econômico é um dos mecanismos para tanto. Aprovar uma âncora ou mesmo um calabouço no lugar do arcabouço fiscal é tudo aquilo que as forças progressistas não precisam. Assim, quando o governo finalmente se dispuser a abrir o debate para o conjunto da sociedade e no parlamento, nos caberá apontar as fragilidades das medidas e sugerir alterações para evitar que as supostas mudanças permaneçam na perigosa linha do conhecido “mais do mesmo”.
Afinal, o Brasil precisa mais e seu povo merece melhor. Mais desenvolvimento e menos âncora. Mais liberdade e menos calabouço.
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O Brasil tem pressa; o arcabouço fiscal não - Instituto Humanitas Unisinos - IHU