16 Novembro 2018
Caso Guedes continue com sua obstinação doutrinarista de um liberalismo descontrolado, é bastante provável que acabe por comprometer ainda mais a imagem de um governo que ainda nem começou. Nesse caso, a presença de Levy no comando de uma importante instituição de crédito pública como o BNDES pode operar um contraponto eventual ao estilo destrambelhado do poderoso Guedes, escreve Paulo Kliass, doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, em artigo publicado por Outras Palavras, 14-11-2018.
Eis o artigo.
A divulgação do nome de Joaquim Levy para ocupar a presidência do BNDES pode ter sido mais uma importante decisão de Bolsonaro na composição do mosaico de seus mais estreitos colaboradores. Apesar de toda a bateção de cabeça que tem caracterizado as primeiras semanas posteriores à conformação da vitória eleitoral, o fato é que não se deve menosprezar a capacidade de articulação política do capitão.
Ao que tudo indica, sua equipe de governo deverá contar com alguns polos aglutinadores de poder. Em primeiro lugar, o núcleo militar no comando de áreas estratégicas, como segurança institucional, infraestrutura e uma presença firme por toda a Esplanada, além da vice-presidência com o General Mourão. Em seguida, o núcleo ampliado da economia, onde Paulo Guedes surgiu desde o início como o poderoso superministro, antes mesmo de ter sido anunciado o resultado das urnas. O terceiro eixo deve gravitar em torno do futuro ex-juiz Sérgio Moro, que foi muito bem recompensado por seus bons serviços prestados, em particular pelo impedimento da candidatura de Lula no pleito de outubro. Finalmente, o foco político no sentido estrito ficará a cargo do deputado federal Onyx Lorenzoni (DEM/RS), a quem deverá ser destinada a Casa Civil.
No entanto, as disputas internas no que se refere à montagem do grupo, que vai iniciar o governo só em 1º de janeiro, sugerem o aparecimento de contradições em diferentes assuntos. É conhecida, por exemplo, a divergência das opiniões históricas do capitão a respeito de temas como empresas estatais, nacionalismo econômico e servidores públicos, por exemplo, e as do seu guru Paulo Guedes. Também são cada vez públicas as rusgas entre Moro e vários integrantes do futuro primeiro escalão, em temas como desarmamento, tipificação de ações dos movimentos sociais como “atos de terrorismo” e a permanência do estratégico Conselho de Administrativo de Defesa Econômica (CADE) no âmbito da Justiça.
A imprensa tem estampado muitas das trapalhadas que se multiplicam a cada dia entre os integrantes do futuro núcleo duro do Palácio do Planalto. E nesse quesito parece que Paulo Guedes tem se esforçado em provocar ruídos e curtos-circuitos. Apesar de respeitado como um economista conservador pela alta direção do financismo, o fato é que ele parece desconhecer as regras básicas de funcionamento da administração pública brasileira. Ao misturar seu estilo de tratorar os interlocutores com uma arrogância típica de quem se sente chegando todo metido a empoderado a Brasília, o problema é que o economista parece não conhecer os meandros de como as coisas são resolvidas nos corredores ministeriais e congressuais.
Suas declarações a respeito do funcionamento da dinâmica de votação em plenário do legislativo revela uma ignorância imperdoável a alguém que pretende se transformar em um superministro. Guedes chegou ao cúmulo de afirmar em reunião com a cúpula de parlamentares que não se preocupava com a votação da Lei Orçamentária Anual (LOA) em tramitação no Congresso Nacional, pois ele encaminharia a “lei dele” no ano que vem. Ou então a sugestão de se alterar a mecânica de funcionamento do plenário das duas casas legislativas, com a novidade de uma suposta votação por bloco temático, sem que os partidos fossem chamados a se manifestar sobre as proposições. Tudo como se houvesse uma solução mágica para superar as mui conhecidas dificuldades para se compor uma maioria no interior de deputados e senadores.
Frente a essa inabilidade de Guedes em tratar de temas vinculados à administração da máquina do Estado, a vinda de Joaquim Levy tem um significado particular. Apesar de estar um pouco distante do centro da arena em disputa, sua formação econômica e sua experiência pregressa em postos importantes do governo podem contar positivamente para Bolsonaro. Antes de ter sido nomeado como ministro da Fazenda por Dilma em 2015, ele já havia ocupado o estratégico cargo de Secretário do Tesouro Nacional sob a gestão de Palocci, no primeiro mandato de Lula. Anteriormente a estas experiências em governos do PT, ele já havia ocupado posições de destaque nos ministérios da Fazenda e do Planejamento sob o segundo mandato de FHC. Além disso, seu currículo oferece passagens em conhecidas instituições multilaterais do financismo, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e o Banco Mundial, bem como a Secretaria da Fazenda do RJ sob o mandato do governador Sérgio Cabral.
Caso Guedes continue com sua obstinação doutrinarista de um liberalismo descontrolado, é bastante provável que acabe por comprometer ainda mais a imagem de um governo que ainda nem começou. Assim foi com as declarações sobre a falta de prioridade com a agenda do Mercosul, as críticas veladas à política comercial chinesa, o desejo de uma “solução final” para as empresas estatais brasileiras, entre tantos atritos desnecessários criados em tão poucos dias. Nesse caso, a presença de Levy no comando de uma importante instituição de crédito pública como o BNDES pode operar um contraponto eventual ao estilo destrambelhado do poderoso Guedes.
É bem verdade que as falas comprometedoras não são exclusividade do chefe da economia. O capitão e outros colaboradores próximos também têm oferecido muitos argumentos para quem duvida da capacidade do futuro governo conseguir oferecer alguma resposta convincente para um conjunto tão amplo de expectativas criadas com sua eleição. E isso vai desde as incógnitas em como obter um crescimento sustentado da economia até o cumprimento das ameaças extremas no campo da “moral e dos bons costumes”, como se dizia nos tempos de nossos antepassados.
Guedes & Levy devem compor uma boa duplinha dinâmica. Ao contrário de Meirelles & Goldfajn, pois estes últimos estavam em um governo que não conseguiu retirar sua popularidade do rastejante nível do rés do chão. É sabido que Levy não terá sob seu comando a definição da política monetária, pois estará um pouco distante do Banco Central. No entanto, é possível que sua maior intimidade com a lide da administração pública permitirá a ele um certo conforto na assessoria ao Palácio do Planalto. Na verdade, ele tem boa parte dos atributos que faltam ao Posto Ipiranga. Conhece bem a máquina estatal e possui sólida formação no campo da economia conservadora.
As resistências internas ao grupo do PSL e da base raivosa do capitão deverão ser facilmente vencidas. Apesar de ter ocupado postos estratégicos na economia por indicação do PT, não há quem em sã consciência possa acusá-lo de bolivarianismo ou lulopetismo. Levy é um economista liberal e que serve aos interesses do financismo. Como é uma pessoa pragmática, não faz objeção a quem o nomeia. O importante é ter autonomia para cumprir aquilo que considera a sua missão por essas terras. Suas prioridades parecem ser rigor absoluto na austeridade fiscal e adaptação do tecido econômico aos interesses do capital financeiro.
Caso consiga entregar o que promete, ele poderá se converter em sério candidato a substituto de quem não apresente os resultados espalhafatosamente anunciados por todos os cantos. Guedes que se cuide.
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Herói do financismo. Sombra de Paulo Guedes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU