01 Abril 2023
"Os leitores são convidados a tornarem-se por sua vez testemunhas, sabendo reconhecer a presença de Jesus e de Deus não apenas nas salas dos templos e das sinagogas, mas na vida cotidiana, que apresenta presos, idosos, doentes, pobres, mortos para honrar, guerras para evitar, justiça para perseguir em vista da recuperação da pessoa…", escreve Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 30-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A estudiosa bíblica estadunidense Amy-Jill Levine (1956-), de religião judaica, ensina Novo Testamento e estudos judaicos no Hartford Seminary e é docente emérita da Vanderbildt University de Nashville.
Foi a primeira mulher judia a lecionar o Novo Testamento no Pontifício Instituto Bíblico e, em seu livro, relembra com prazer os cursos ministrados na penitenciária local, onde se apegou aos internos que demonstraram grande interesse pelos vários temas bíblicos, especialmente aqueles relativos à punição, ao castigo, à pena de morte, à justiça…
A autora estuda os diversos personagens que os Evangelhos retratam presentes sob a cruz de Jesus no momento de seu sofrimento, morte e sepultamento. Em seis capítulos, descreve os espectadores e aqueles que escarneciam, as outras vítimas, os soldados, o Discípulo Amado, as mulheres, José de Arimateia e Nicodemos.
O comentário é ágil, de viés informativo, sem notas de rodapé e bibliografia, muitas vezes marcado por um tom coloquial que procura uma atualização muito concreta na experiência do leitor com quem a autora fala diretamente. Os textos não são estudados em nível técnico, mas examinados como um todo, extraindo sua a mensagem principal.
Levine mostra sensibilidade crítico-literária e um amável senso de humor e está empenhada em eliminar teologias antissemitas, sexistas e homofóbicas. Ela é membro de uma sinagoga judaica ortodoxa.
A estudiosa recorda várias vezes como os textos evangélicos não pretendem ser crônicas dos fatos, mas interpretações cada vez mais aprofundadas da pessoa de Jesus e dos acontecimentos que lhe dizem respeito, sempre relidos à luz das Escrituras, da vida de fé da comunidade de referência e do retrato de Jesus que cada evangelista persegue na sua obra.
As Escrituras de Israel e especialmente Sl 22 e Sl 69 - além da passagem sobre o servo de YHWH de Is 53 - ajudaram na compreensão mais profunda dos acontecimentos. Jesus compartilha os sofrimentos dos perseguidos, mas no Evangelho de João também se mostra totalmente dono de si. Daí as discrepâncias entre as várias histórias, as presenças e as ausências de vários personagens.
Aproveitando sua formação judaica, a autora introduz algumas anotações vindas de textos rabínicos posteriores ao NT, sem esquecer a contribuição de Flávio Josefo.
Os Evangelhos de Marcos e Mateus retratam Jesus abandonado por seus discípulos e escarnecido por transeuntes, os sumos sacerdotes e escribas, os soldados e as outras vítimas crucificadas. Reapresenta-se a tentação diabólica sobre a natureza messiânica de Jesus, que deveria demonstrar sua força descendo da cruz e salvando os presentes.
No Evangelho de Lucas alguns espectadores não são hostis e a multidão assiste de longe, voltando para casa batendo com a mão o peito. Um dos dois crucificados reconhece a inocência de Jesus e pede para ser lembrado quando Jesus entrar em seu reino. Assim, o senhorio de Jesus também é reconhecido.
O Evangelho de João não relata nenhum escárnio dos presentes, que são representados apenas pelo Discípulo Amado, por sua mãe, por Maria Madalena, por Maria, mãe de Cléopa e por uma outra mulher (“a irmã de sua mãe”, segundo a autora).
Só nos Sinóticos um centurião mostra a sua admiração por Jesus. Segundo Marcos e Mateus, reconhece nele "um filho de Deus", enquanto em Lucas é reconhecido como um "justo".
AMY-JILL LEVINE, Ai piedi della croce. I testimoni del Venerdì santo (Editora Queriniana, 2021, 224 páginas).
Um capítulo é dedicado à figura do Discípulo Amado (provavelmente filho de Zebedeu, segundo a autora), à sua representatividade que se estende a cada leitor e à presença da mãe de Jesus sob a cruz, com a confiança recíproca para um cura humana e espiritual.
O parágrafo dedicado às mulheres tenta recuperar as várias presenças de mulheres que acompanharam Jesus desde a Galileia. Segundo a autora, elas não seguiam Jesus de maneira estável como os Doze, mas o apoiaram como mecenas.
Segundo os sinóticos, pelo menos três ou quatro mulheres estavam presentes sob a cruz, embora seus nomes variem. Diversas são também as presenças de mulheres que vão visitar o sepulcro ou vão com a intenção de ungir o corpo de Jesus (aliás, já ungido anteriormente...). As mulheres parecem mais corajosas do que os discípulos, que fugiram todos, de acordo com os sinóticos.
A menção da mãe de Jesus, chamada de "mulher", liga-a ao sinal de Canãa para o dom do sangue e à samaritana pelo da água viva do Espírito.
No caminho para o Calvário, as mulheres de Jerusalém, solidárias com Jesus e não simples carpideiras, são perguntadas por Jesus sobre a sua conversão.
A autora também descreve a figura de Nicodemos como personagem interessado em Jesus e, por fim, solidário com ele, embora não tenha dado o passo decisivo para se tornar seu discípulo.
Já José de Arimateia, como homem rico e estimado, é descrito de forma diferente nos Evangelhos também como membro do Sinédrio, homem bom e justo que não havia votado pela condenação de Jesus, uma pessoa que esperava a reino de Deus e que se torna discípulo de Jesus, ainda que em segredo por medo dos judeus. Ele ousa pedir a Pilatos "o corpo" de Jesus e o obtém (o que, segundo a autora, acontecia por ocasião dos aniversários dos imperadores...), dando uma sepultura honrosa ao "corpo" em um sepulcro que ele possuía em Jerusalém, ajudado por Nicodemos.
A autora expressa claramente as suas dúvidas sobre a autenticidade histórica dessas figuras, mas refere-se à mensagem que pretendem transmitir. No geral, porém, atribui a maior adesão histórica aos fatos ao Evangelho de João.
A estudiosa conclui seu ensaio com uma menção a outras presenças. Aquela divina é demonstrada também pela natureza. O rasgo do véu do templo é interpretado, à luz de Flávio Josefo, como um rasgo do universo. Nada será como antes. O rasgo é um sinal de que Deus está presente na cruz e chora pela perda de seu precioso filho. Na tradição judaica, o luto é expresso, de fato, rasgando uma barra do vestuário.
A escuridão é melhor explicada com a referência ao dia do juízo descrito em Am 8,9-10. A escuridão, associada ao dia do juízo e sobretudo em referência ao luto por um filho único, atingiu os primeiros seguidores de Jesus.
Finalmente, as pedras quebradas, o terremoto e a ressurreição dos santos são uma indicação de que a era messiânica começou, à espera da ressurreição universal dos mortos seguida pelo juízo universal.
Além dos soldados, a estudiosa não pode estabelecer com certeza quem estava junto à cruz. No entanto, os relatos evangélicos pretendem convidar os leitores a se identificarem com os vários personagens, se perguntando o que poderiam ou não ter feito se estivessem presentes.
Os leitores são convidados a tornarem-se por sua vez testemunhas, sabendo reconhecer a presença de Jesus e de Deus não apenas nas salas dos templos e das sinagogas, mas na vida cotidiana, que apresenta presos, idosos, doentes, pobres, mortos para honrar, guerras para evitar, justiça para perseguir em vista da recuperação da pessoa…
Levine lembra que os relatos evangélicos tiveram uma longa história de elaboração, “manipulações interpretativas”, transformações, omissões, acréscimos, aprofundamentos… Ao invés de perder um monte de tempo para estabelecer quem eram as testemunhas aos pés da cruz, o que disseram ou fizeram, a estudiosa nos encoraja a nos deixarmos questionar por suas histórias e a perceber como elas nos mudam. Nesse ponto, seremos nós que as contaremos.
O texto de Levine é fluido e envolvente inclusive pelo investimento afetivo que a estudiosa demonstra para com o texto, mas também para com as pessoas que encontra no seu trabalho acadêmico e na vida quotidiana.
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Aos pés da cruz. Artigo de Roberto Mela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU