01 Abril 2023
"Mas a paz não pode se afirmar sem se apoiar em alguns pilares que a sustentam. Aqui o apelo é de modo especial à verdade, à justiça, ao amor e à liberdade (n. 18). O pontífice não se contenta, contudo, em recordar que não há paz sem recurso a esses valores; em outras palavras, que a possibilidade de sair da desordem da violência e da guerra passa por sua realização", escreve o teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Rocca, nº 7, 01-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sessenta anos se passaram desde a publicação da Pacem in terris e a encíclica sobre a paz do papa João XXIII parece ter sido escrita hoje, tal é a atualidade da análise da situação mundial e das propostas sugeridas para enfrentá-la corretamente. A explicar essa atualidade é, por um lado, o cenário geopolítico de hoje, que apresenta fortes semelhanças com o cenário daqueles anos: a ameaça de uma guerra mundial era então iminente pela instalação de mísseis soviéticos em Cuba e hoje reaparece com a invasão da Ucrânia pela Rússia e com a multiplicação de graves conflitos em diferentes áreas do planeta.
A isso se acrescenta – e não é uma questão trivial – o delineamento de questões que mais tarde tiveram (e ainda hoje têm) uma singular relevância para a vida dos povos e de toda a comunidade humana: dos direitos humanos – é a primeira vez que num documento oficial da igreja é mencionada positivamente a Carta das Nações Unidas – aos “sinais dos tempos” – a ascensão socioeconômica das classes trabalhadoras, a entrada da mulher na vida pública e o surgimento em toda parte de comunidades políticas independentes (o Vaticano II será retomará na Gaudium et spes essa categoria) – até os primeiros sinais da globalização e o desenho de uma nova ordem mundial.
A encíclica datada de 11 de abril de 1963, que é a última intervenção do Papa João (no 3 de junho seguinte morreria) e que constitui o ápice e a síntese de seu magistério, teve enorme ressonância na opinião pública mundial com um número muito significativo de comentários, tanto no âmbito do mundo católico quanto daquele secular - era o primeiro documento papal não exclusivamente dirigido aos católicos, mas "a todos os homens de boa vontade" (n. 4) - a tal ponto que ainda hoje é difícil dizer algo novo, acrescentar alguma nova consideração.
Quem recebeu o número mais consistente de comentários foi (e é) o art. 67 (126, na versão em português), no qual o pontífice afirma claramente que hoje “não é mais possível pensar que nesta nossa era atômica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados (alienum a ratione)". Essa forte declaração, que é o coração de toda a mensagem, aquela em torno da qual tudo gira, tem um caráter decididamente revolucionário, representa uma verdadeira tomada de distâncias da postura anterior e constante da tradição eclesial.
O que está sendo posto à prova, e definitivamente superado, é de fato o conceito de "guerra justa" ou de "guerra defensiva" - conceito que era legitimado, ainda que com a presença de algumas delimitações precisas relativas tanto às condições específicas da entrada em guerra quanto às modalidades de seu exercício concreto – para substituí-lo por um juízo severo de condenação em relação a todas as tipologias de guerra.
Esse repúdio é provocado pelo aparecimento no mercado mundial de armas mortíferas, principalmente a bomba atômica como recorda o Papa, mas também as armas químicas e bacteriológicas, que possuem (e só podem ter) efeitos devastadores sobrea vida dos indivíduos e dos povos. O viés positivo, que justifica mais radicalmente a tomada de posição do Papa João, porém, é sobretudo a fidelidade à mensagem evangélica, que confere aos "pacificadores" o título mais alto "eles serão chamados filhos de Deus" (Mt 5, 9).
O tema da paz, que marca transversalmente todas as páginas da encíclica e explica o título que lhe foi conferido, Pacem in terris, foi muitas vezes objeto de intervenções do "bom papa", a partir do veemente grito "o mundo não quer guerra, mas paz" pronunciado por ocasião do risco de conflito mundial dos anos 1960.
Mas a paz não pode se afirmar sem se apoiar em alguns pilares que a sustentam. Aqui o apelo é de modo especial à verdade, à justiça, ao amor e à liberdade (n. 18). O pontífice não se contenta, contudo, em recordar que não há paz sem recurso a esses valores; em outras palavras, que a possibilidade de sair da desordem da violência e da guerra passa por sua realização.
Acima de tudo, ele foca claramente os caminhos que devem ser percorridos hoje para alcançar esse objetivo. A verdade e a justiça, aqui referidas como virtudes que remetem uma à outra e se complementam, exigem que se proceda à criação de um "mundo novo" e de um "homem novo" – não falta à encíclica uma importante perspectiva antropológica –; um mundo em que desapareçam as desigualdades que estão na origem dos conflitos de onde surgem as guerras, e em que a lógica da separação (ou da oposição) deixa o lugar à busca de formas sempre novas de cooperação entre os indivíduos e entre as nações.
Liberdade e amor, por sua vez, tornam necessário promover condições que facilitem o exercício da autonomia pessoal em suas diversas formas como um bem essencial para salvaguardar a dignidade da pessoa e, ao mesmo tempo, não a confundam com uma forma de arbítrio absoluto da qual brota uma autorreferencialidade egocêntrica, mas a coloquem a serviço da busca do "bem comum", que é o bem de cada pessoa e de toda a comunidade humana.
Os impulsos individualistas, já presentes na época da redação da encíclica e que se acentuaram nas últimas décadas, não são promissores e impõem uma reação ao pesado legado que carrega consigo tentações involutivas, que se traduzem no desenvolvimento de tendências neocorporativas e nacionalistas até os limites da xenofobia e do racismo.
Tudo isso em profundo contraste com o crescimento constante, em nível estrutural, de uma situação de interdependência, tanto entre os vários fatores que estão na base da construção de uma convivência fraterna quanto entre os indivíduos e entre os diversos povos do planeta. Justamente aqui está o último (mas não em ordem de importância) valor recordado pela encíclica, aquele do amor, definido pelo Papa Francisco como "caridade social", que deve assumir conotações universalistas em um mundo que se tornou, para usar uma expressão cara a McLuhan, "uma pequena aldeia" e no qual, consequentemente, todas as barreiras físico-geográficas e culturais deveriam cair para dar vida a um intercâmbio ampliado visando fazer da humanidade uma única família, em nome da pertença à mesma natureza e, para os que creem, em nome do reconhecimento de ser filhos do mesmo Pai em Cristo e, portanto, irmãos.
Por outro lado, o Papa João XXIII não se contenta em destacar as "sombras" da situação atual e sugerir remédios para poder vencê-la, mas com o otimismo que o caracteriza e que não é outro senão o "realismo cristão", longe de qualquer forma de avaliação superficial e acrítica do existente e ainda aberto à esperança no futuro, também analisa algumas “luzes” fazendo referência aos três “sinais dos tempos” aludidos (n. 45-46). Cada um deles mereceria uma reflexão acurada, que compare a situação de ontem com a de hoje. Vamos apenas fornecer aqui alguns pontos de partida para análise que permitam compreender a fecundidade da escolha feita pela encíclica.
O primeiro dos "sinais", a ascensão socioeconômica das classes trabalhadoras, esteve sujeito na Itália, na década de 1970, a um processo de desenvolvimento devido às lutas operárias e a uma forte presença sindical e resultou na elaboração do Estatuto dos Trabalhadores e na reivindicação de espaços mais humanizantes para tirar o trabalhador de um estado de pesada alienação física e psicológica. Infelizmente esse processo, a partir dos anos 1980 foi gradativamente se abrandando, entrando em uma temporada de declínio acentuado, que torna urgente retomar o caminho inaugurado pela encíclica.
Também o segundo "sinal dos tempos" - a entrada da mulher na vida pública - percorreu um itinerário semelhante ao anterior. Após o momento de boom do feminismo entre os anos 1970-80 com a reivindicação de igualdade de direitos e o aumento das possibilidades de acesso ao trabalho, bem como, consequentemente, de participação na vida pública, assistimos (e se assiste) a um revés alarmante, e até mesmo uma verdadeira redução com graves recaídas negativas sobre a vida da comunidade.
A inserção da mulher no mundo do trabalho, como atestado pelas estatísticas oficiais, ainda é muito limitada hoje quando se compara com a presença masculina, e a aquisição de fato de direitos ainda está longe dos objetivos almejados. Basta pensar no baixo número de mulheres presentes no campo da vida política e pública em geral. Isso vale, é justo recordar, também para a igreja, apesar de alguns pequenos passos à frente realizados.
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Os 60 anos da Pacem in Terris. A surpreendente atualidade de uma encíclica. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU