"Observa-se a maior sujeição de pretos, pardos e indígenas à violência viária constitutiva aos que compartilham as vias, para fins laborais, com os veículos automotores, bem como a maior exposição do mesmo grupo à parca renda e à precarização do trabalho peculiar ao ramo de atividade em pauta. Trata-se de mais um fenômeno a denotar pretos, pardos e indígenas como as vítimas prioritárias nas ruas das grandes cidades e a replicar a herança escravocrata que, há séculos, destina ocupações de menor status na hierarquia social a determinados grupos étnico-raciais. O assassinato social tem cor".
O artigo é de Anderson Alves Esteves e Marcelo Phintener, originalmente publicado por A Terra é Redonda, 10-02-2023, e enviado pelos autores ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Anderson Alves Esteves é professor do IFSP, doutor em Filosofia (PUCSP) e membro dos grupos de pesquisa Grupo de Pesquisa Filosofia Política Contemporânea (PUC-SP/CNPq) e GPEPS (IFSP/CNPq).
Marcelo Phintener é doutorando em Filosofia Política na PUC/SP e membro do grupo de pesquisa Grupo de Pesquisa Filosofia Política Contemporânea (PUC-SP/CNPq).
O artigo em tela amalgama considerações oriundas do senso comum, da legislação brasileira de trânsito, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC/IBGE), do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/DATASUS, do Sistema de Monitoramento de Acidentes de Trânsito (INFOSIGA/SP), outras pesquisas (acadêmicas e realizadas por entidades) e de aportes teóricos de alguns clássicos das Ciências Sociais para tratar das condições sob as quais trabalham os entregadores que utilizam veículos a pedal (bicicletas, triciclos e outros) no Brasil e no município de São Paulo. Foram tratados (alguns) aspectos concernentes às questões ocupacionais e de renda, viária, de gênero, etária e étnico-racial.
No que diz respeito à sistematização dos indicadores acerca da situação ocupacional dos trabalhadores em estudo (como posição na ocupação, grupamentos de atividade econômica, rendimento, qualificação, idade, sexo, cor/raça e grandes regiões), foram utilizados os microdados da PNADC/IBGE, do 3º trimestre de 2022, última base disponível para consulta. Tais microdados da PNADC/IBGE foram trabalhados no software SPSS, por meio do qual realizou-se uma estimativa para captar certas características dos trabalhadores na ocupação 9331 (condutores de veículos acionados a pedal), conforme Classificação de Ocupações para Pesquisas Domiciliares.
Para obter as informações sobre os óbitos destes trabalhadores no trânsito, consultamos duas fontes: uma delas, o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/DATASUS, vinculado ao Ministério da Saúde. Foi selecionado, além das variáveis ano do óbito, grandes regiões e sexo da vítima, o capítulo da Classificação Internacional de Doenças (CID) relativo à mortalidade, classificado como CDI-10, sob os códigos V01 a V89, que compreendem todas as mortes oriundas de “acidentes” de transporte terrestres, enquanto para os óbitos envolvendo ciclistas, selecionamos os códigos V10 a V19.
A outra fonte, diz respeito aos microdados do Sistema de Monitoramento de Acidentes de Trânsito (INFOSIGA) do Governo do Estado de São Paulo, base de dados denominada Óbitos Públicos, também trabalhada no software SPSS. Desta base, selecionamos cinco variáveis: município, tipo do veículo da vítima, tipo de “acidente”, idade da vítima, ano do óbito.
Para ambas as fontes, o recorte temporal considerou o intervalo de 2012, ano em que a discussão sobre a infraestrutura cicloviária na cidade de São Paulo entra na pauta das políticas públicas de mobilidade de maneira mais incisiva, até 2022, ano em que as informações estavam disponibilizadas, sendo, 2012 a 2020, para o SIM/DATASUS, e, 2015 a 2022, para o INFOSIGA/SP, ressaltando que, no caso desta fonte, para o ano de 2022, faltam os registros das ocorrências do mês de dezembro para consolidar os dados.
Acerca do senso comum, um ciclista trabalhando como entregador de mercadorias pode ser visto como alguém empoderado, engajado socialmente em uma ocupação que, além da conquista de uma renda, esparge a bandeira da saúde, da qualidade de vida, do fim do sedentarismo, da sustentabilidade, da diminuição da poluição, da modernização do país à medida que é partícipe de uma comunidade tecnológica que mobiliza plataformas digitais de entregas, da integração de veículos não motorizados às vias públicas e que, por isso, sinaliza que as cidades merecem políticas de implementação de infraestrutura cicloviária. Ademais, pensando mais em si do que na sociedade, o senso comum sabe que o entregador dribla o trânsito com a bicicleta e evita, assim, dissabores com o engarrafamento, a ausência de vagas para estacionar, a superlotação do transporte público e os demais riscos da cidade grande e “inabitável” (GORZ, 2005, p. 79).
Sobre a legislação, cabe ao ciclista trafegar com “preferência” nos “bordos” da via e pedalar resguardado pela distância de 1,5 m que os veículos automotores devem observar ao passá-lo e ultrapassá-lo, segundo os artigos 58 e 201, respectivamente, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Tais dispositivos legais expressam, de um lado, a esquizofrenia de existir uma legislação que, concomitantemente, institui aquele que tem a “preferência” como escanteado para o “bordo”, uma vez que, por trás do aparente descuido na redação do CTB, há a primazia da forma mercadoria como fenômeno social vigente – ela não pode ser aplacada e precisa fluir com a maior velocidade possível, em detrimento da vida que, literalmente, é afastada para o “bordo”. De outro, é preciso considerar que o CTB está contemplado dentro do processo civilizador e, de acordo com Ned Ludd, mostra-se mais “progressista” (LUDD, 2005, p. 127) que os hábitos agressivos de muitos motoristas que veem os ciclistas como “intrusos” (LUDD, 2005, p. 128) na via.
Do senso comum e dos dispositivos legais supracitados, propõe-se, a fim de transcender o nível superficial no tratamento do objeto, um salto para o debate, conduzido pelos últimos números da PNADC/IBGE, pelo DATASUS, pelo INGOSIGA, por algumas pesquisas acadêmicas e realizadas por outras entidades e por alguns pensadores clássicos das Ciências Sociais que documentaram a vida nas grandes cidades modernas nos últimos séculos. À guisa de melhor percepção dos dados, estabeleceu-se uma exposição que propõe um movimento na escala dos dados, entre o Brasil e o município de São Paulo, com o propósito de ilustrar o fenômeno tanto em âmbito nacional como no da maior cidade do país.
De acordo com os microdados da PNADC/IBGE, 3º trimestre de 2022, há no Brasil 30.983 pessoas que trabalham com entregas utilizando-se de “veículos acionados a pedal”. O número contempla trabalhadores que atuam com e sem carteira assinada e por conta própria, sendo 44,5% vinculados ao setor de Transporte, armazenagem e correio, 31,8% ao setor de Comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas e 22,4% ao setor de Alojamento e alimentação como ilustra a Tabela 1.
E, em uma escala mais limitada, o bairro do Bom Retiro, no município de São Paulo, com 37.602 habitantes, com forte concentração de comércio varejista e atacadista e que recebeu, nos últimos anos, certo número de emigrados sul-americanos, uma pesquisa realizada pela Aliança Bike, nos últimos meses de 2017, alcançou 1.701 estabelecimentos e verificou que 41,03% deles faziam entregas, sendo que, destes, 16,3% (114) com entregadores que se utilizavam de bicicletas e de triciclos. Juntos, tais estabelecimentos operavam 2349 entregas por dia com veículos acionados a pedal, movidos por 220 trabalhadores. Em 96% dos estabelecimentos que realizavam entregas com bicicleta e triciclos, os veículos pertenciam a eles e o principal motivo pelo qual adotavam tal prática era a “rapidez e a praticidade” [87,7%] (ALIANÇA BIKE, 2023a).
A percepção do senso comum, que pode ser, em grande medida, otimista e, mesmo, ideológica (em sentido marxiano), em relação à atividade de entrega de mercadorias com o uso da bicicleta, negligencia a realidade social precarizante, marginalizadora, insalubre e bárbara vivida pelas 30.983 pessoas retratadas pela Tabela 1.
A propósito dessa precariedade laboral, os dados captados pela PNADC/IBGE, 3º trimestre 2022, em termos de posição na ocupação e rendimento, são bastante elucidativos. Quase 50% estão empregados sem carteira assinada e 42% trabalham sob o regime de conta própria, conforme a Tabela 2. A média salarial obtida por estes trabalhadores é inferior a R$ 1 mil, como aponta o Gráfico 1.
O melhor rendimento, embora inferior ao salário mínimo vigente de 2022 (R$ 1,2 mil), é de R$ 1 mil para aqueles que trabalham no setor de transporte de mercadoria. Uma suposta razão para os baixos salários tem relação com a dinâmica da atividade econômica em questão, cujos mecanismos de produtividade estão assentados no barateamento da mão de obra (baixos salários, ausência de direitos sociais e demanda por trabalhadores pouco qualificados).
Como reportado no Gráfico 2, a proporção de trabalhadores altamente qualificados para trabalhadores pouco qualificados é baixa; no universo pesquisado se sobressaem a média e a baixa qualificação, com percentuais de 56,6% e 39,3%, respectivamente. A respeito da jornada de trabalho (Gráfico 3), o setor de Alojamento e alimentação tem a maioria (72%) dos seus trabalhadores com jornada semanal de até 39 horas.
Quase 47% dos ocupados no Comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas tem jornada semanal de até 44 horas semanal, ao passo que os ocupados no setor de Transporte, armazenagem e correio (44,3%) tem jornada de 49 horas ou mais. Como observado no Gráfico 3, não há uniformidade na jornada para esta categoria profissional, pois ela tende a ser ajustada em acordo à demanda de trabalho. Isto se deve ao tipo de atividade exercida que, além da responsabilidade no transporte da carga, do peso nas costas para transportá-la, do risco a que se está exposto na via pública, demanda dispêndio de energia física para realizar o trabalho.
Em acordo com os microdados encontrados na PNAD/IBGE, cuja escala contempla a unidade nacional, uma pesquisa realizada em junho de 2019, pela Aliança Bike, na cidade de São Paulo, com ciclistas entregadores que trabalhavam com o uso de aplicativos, expressa grande semelhança de resultados (ALIANÇA BIKE, 2023b): 6 centralidades foram alcançadas pela pesquisa, a saber, Itaim Paulista, Paulista, Pinheiros, República/Santa Cecília, Santana e Tatuapé.
Verificou-se que os entregadores tinham, em média, 24 anos; que 53% possuíam ensino médio completo e que 40% possuíam até o ensino fundamental completo; 44% se autodeclararam pardos, 27% pretos (juntos, 71%), 26% brancos, 2% amarelos e 1% indígenas; 99% eram brasileiros e 1%, estrangeiros.
Em termos de mobilidade, descobriu-se que 51% dos entregadores, utilizavam a bicicleta, anteriormente, para outros fins, como o de transporte para o estudo e/ou ao trabalho e que 65% utilizavam a bicicleta para transportarem-se ao lugar no qual faziam as entregas. Acerca do trabalho e da renda, 65% realizavam entregas há até seis meses, 57% trabalhavam todos os dias da semana, em média 9h24min por dia, sendo que 75% trabalham até 12h por dia, 59% disseram ter iniciado a ocupação por estarem desempregados e, em média, ganhavam R$ 936 ao mês.
Abaixo, seguem considerações que se esmeram em evitar o senso comum para, em contrapartida, procurar explicar os números apresentados pela PNAD/IBGE e pelas outras pesquisas. Delimita-se, a fim de ratificar as hipóteses da precarização, da marginalização, da insalubridade e da barbárie, a investigação de cinco questões, a saber, a viária, a de estratificação social, a de gênero, a etária e a étnico-racial, bem como as intersecções entre elas.
Acerca da violência viária, ao utilizar a bicicleta como veículo para atividade de trabalho, o entregador “torna-se ciclista” (ZÜGER JUNIOR, 2015, p.12); contudo, de uma maneira diferente daqueles que usam o veículo acionado a pedal como atividade de transporte, de lazer, desportiva e de engajamento ambiental – parte destes podem escolher lugares, regiões, dias e horários mais seguros, aproveitarem a atividade para desenvolverem uma percepção e uma cognição diferentes e contrárias à sociedade carrocêntrica vigente, uma vez que o pedalar pode ocorrer entremeado com a “aventura” (AUGÉ, 2009, p. 18), a reminiscência das experiências da infância, a imaginação que pode oferecer ideias sobre uma organização societária que ultrapasse a existente e caracterizando-se como “negação” (AUGÉ, 2009, p. 52) a ela – pedalar é “poético” (AUGÉ, 2009, p. 106) por alçar o prazer como prioridade na vida e por descolonizar o tempo, o espaço e o corpo da forma mercadoria.
“Pedalo, logo existo” (AUGÉ, 2009, p. 105). Ademais, a bicicleta dispõe as pessoas nas vias de maneira a facilitar a relação com outras em lugar de replicar o mito da individualidade monadal burguesa; assim, ela inclina à “solidariedade” (TRONCOSO, 2017, p. 88) entre os ocupantes da via e estimula a pedalar em grupo, a conversar, a fotografar, a novas amizades, a brincar, a ajudar, a compartilhar ferramentas, hidratação, alimentação etc., a formar um espírito e um comportamento “dionisíaco” (ZÜGE JUNIOR, 2015, p. 54).
Contudo, para o ciclista entregador, desprovido da estrutura de metal a encapsular/proteger o condutor e ao usar a bicicleta nas regiões e horários mais movimentados e para a atividade laboral, a situação é a de (maior) vítima potencial de colisão, de atropelamento e de morte, tanto pelas ausência, insuficiência e/ou degradação de infraestrutura cicloviária como pela inexistência de fiscalização dos dispositivos do CTB e pelo engavetamento da legislação vigente. A situação pode ser descrita com a semântica de Giorgio Agamben: há leis, mas que não são implementadas, que se aplicam “desaplicando-se” (AGAMBEN, 2002, p. 36) e, assim, ocorre uma forma determinada de estado de exceção a discriminar na comunidade os que podem ser banidos por estarem abandonados pelas leis e os que devem ser protegidos, os que merecem ou não viver, os que recebem ou não segurança.
Eis o caso de São Paulo: em 2022, havia apenas 699,2 km de ciclovias e ciclofaixas na cidade, número que representa menos de 5% das vias, a despeito de ser a cidade com a maior rede de ciclovias do país (SÃO PAULO, 2023); desde muito antes, a capital paulista cresceu com um arruamento desordenado, cheia de aclives e declives, priorizando o transporte motorizado e privado, majorando a poluição sonora e do ar a níveis gigantescos e condensando um número tão grande de automóveis que a quantidade de “acidentes” assemelha-se a uma guerra e, nesta, pedestres e ciclistas são os mais vulneráveis.
Segundo pesquisa no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/DATASUS, vinculado ao Ministério da Saúde, no período entre 2012 e 2020, o Brasil registrou 21.992 “acidentes” fatais envolvendo ciclistas (não apenas os que faziam entregas), o que representa 6,5% de mortes de um total de 339 mil óbitos por “acidentes” de transporte terrestre para o período investigado, expressando a dimensão da violência no trânsito em sociedades de capitalismo periférico, onde uma avenida, uma rua ou uma estrada podem ser mortais. Com efeito, e a exemplo de Ned Ludd, a presente análise registra os números acima não como “acidentes” (LUDD, 2005, p. 19), uma vez que este termo encobre um efeito não desejado pela lógica dos sistemas econômico e de locomoção que, mesmo sem intenção, mata em larga escala. Utiliza-se, aqui, e em contrapartida, a expressão engelsiana assassinato social, abaixo explicada.
Dos quase 22 mil óbitos envolvendo usuários de bicicleta no período pesquisado (aplicável não apenas a entregadores), conforme informação extraída do SIM/DATASUS, 70% (15,4 mil pessoas) eram do sexo masculino e 30% (6,5 mil pessoas) do sexo feminino. No ranking da distribuição regional dos óbitos envolvendo ciclistas (entregadores ou não), a Região Sudeste lidera com 46% (10,0 mil pessoas) dos casos para o período de 2012 a 2020. Na sequência, aparece o Nordeste, com 21% (4,7 mil pessoas), seguido do Sul, com 18% (4,0 mil pessoas). Fecham o ranking as Regiões Centro-Oeste e Norte, respectivamente, com 9% (2,1 mil pessoas) e 5% (1 mil pessoas).
Agora, observando as ocorrências dentro da cidade de São Paulo, entre 2015 e 2022, segundo os microdados do INFOSIGA/SP, as mortes violentas provocadas por “acidentes” de trânsito alcançaram o número de 7 mil, dos quais 255 (3,6%) dizem respeito a usuários de bicicletas (entregadores ou não); verificou-se também que a colisão frontal é a principal causa a provocar os óbitos dos ciclistas, respondendo por mais de 50% das ocorrências, e o estabelecimento de saúde, com 73% dos casos, é o local de maior incidência de óbitos, seguido da via pública (23%). No Gráfico 4, pode-se verificar a evolução das ocorrências fatais no município envolvendo vítimas cujo tipo de veículo era bicicleta. Ainda conforme o INFOSIGA/SP, a maioria das vítimas é homem (percentual superior a 90%), e com média de idade de 39 anos.
Quanto à distribuição regional dos ocupados como condutores de veículos a pedal, por seu turno reportado no Gráfico 5, não somente se indica que o maior contingente destes trabalhadores está na Região Nordeste, com percentual acima de 30%, como se sugere a correlação entre a sua significativa presença com o percentual de óbitos registrados na Região. O mesmo ocorre com a Região Sudeste, segunda colocada no ranking no item residência destes trabalhadores e primeira a se destacar em números de acidentes fatais com ciclistas.
Acerca da estratificação social, o caso da cidade de São Paulo mostra que os mais pobres são a maioria dentre os usuários de bicicleta (não apenas entregadores): 57% são da classe C e 12% das D e E (RAQUEL, 2020, p. 197). Dentre os entregadores, é preciso considerar que estão submetidos à lógica da vida econômica, ao intercâmbio de mercadorias, às plataformas digitais e às empresas nas quais trabalham – eles mesmos foram transformados/reduzidos em mercadorias e, assim, estão longe de encararem seu dia-a-dia ao pedal unilateralmente como poético e dionisíaco; ao contrário, mesmo na bicicleta, contraem a passividade de um homem-sanduíche (AUGÉ, 2009, p. 58) ao tornarem-se instrumento submetido a estratégias distributivas e comerciais. Entre os entregadores, talvez se apresente outras hipóteses que alguns clássicos das Ciências Sociais lançaram nos séculos anteriores. Friedrich Engels descreveu as implicações da Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX como um dos fatores de arregimentação do proletariado em grandes cidades, de destituição de autonomia para ele, de aceleração da ruína das antigas classes sociais, de arranque da divisão do trabalho e fez da classe operária o “fruto mais importante” (ENGELS, 2010, p. 59) daquele fenômeno.
O Autor analisou a Londres da década de 1840, com 2,5 milhões de habitantes, e argumentou que, nela, as pessoas aprenderam a viver com uma “indiferença brutal” e sob a necessidade de suportarem os sacrifícios da “melhor parte da condição” (ENGELS, 2010, p. 68) de si mesmas – espalhava-se uma guerra de todas contra todas por encontrarem-se em concorrência e rebaixadas a objetos utilizáveis a se pisarem com a autorização da lei e, para os mais pobres, vitimados pelo desemprego, pelo assalariamento parco, pela desonestidade dos patrões, pelas sucessivas crises de superprodução, pelas péssimas condições sanitárias dos bairros e das casas dos operários, pela fome, pela alimentação insuficiente e imprópria, pelo aumento da criminalidade e a diminuição da segurança, pela distância entre essas residências e os locais de trabalho efetivava-se um “assassinato social” (ENGELS, 2010, p. 69, grifo do Autor), isto é, a exposição das pessoas à “morte prematura” (ENGELS, 2010, p. 135), ou, ainda, à mutilação, uma vez que as longas jornadas de trabalho deformavam o corpo, aleijavam e engendravam um contingente de “estropiados” (ENGELS, 2010, p. 191).
Outro autor, Georg Simmel, expoente de outra matriz teórica, desenvolveu uma hipótese para a vida nas cidades grandes que registrava o apanágio de uma “intensificação da vida nervosa” (SIMMEL, 2013, p. 312, grifo do Autor) decorrente das mudanças rápidas e constantes; da economia monetária a promover o império da objetividade do valor de troca que nivela a qualidade à quantidade e reduz as pessoas à condição de fornecedoras, de clientes, de entregadores que levam as mercadorias para “desconhecidos” (SIMMEL, 2013, p. 314), todos submetidos às “leis das coisas” (SIMMEL, 2013, p. 330); da quantidade grandiosa de relações e oportunidades próprias da vida cosmopolitana, além de suas longas distâncias, a demandar pontualidade, o cumprimento de promessas, de realizações e de exatidão contábil; da divisão do trabalho a formar uma variedade múltipla de realizações e de especializações que coagem os indivíduos a aprendê-las e a cumpri-las, que fomenta a formação de novas necessidades, que indica a predominância do espírito objetivo em relação ao subjetivo à medida que cada um se unilateraliza de acordo com a exigência da própria divisão do trabalho e, assim, atrofia sua personalidade.
Essa miríade de situações socializa os habitantes da cidade grande na aquisição de um caráter intelectualista da vida anímica a fim de preservar suas subjetividades, na vitória sobre os impulsos e características irracionais que estariam fora do esquema geral, ao mesmo tempo, concorrem para a edificação da pessoalidade do “caráter blasé” (SIMMEL, 2013, p. 317), da “reserva” (SIMMEL, 2013, p. 319, entre aspas no original) diante de tantos contatos fugazes, da frieza que se aprende a ter em virtude da exposição aos perigos, da indiferença em relação à quantidade gigantesca de estímulos e dos significados das coisas, tal como se observa nas relações monetárias a primarem pelo valor de troca que nivela a diferença qualitativa entre as mercadorias e corrói a peculiaridade delas.
A liberdade do indivíduo guarda, assim, a característica da reação à grandeza demográfica e da extensiva quantidade de conexões que exigem a “distância espiritual” dentro da “estreiteza da proximidade corporal” (SIMMEL, 2013, p. 323), a solidão dentro da multidão.
Ora, mutatis mutandis, o alvitre engelsiano de assassinato social, (1) a despeito de formulado em uma época na qual não existia veículos automotores a atropelarem em massa a população citadina, e (2) fundamentado em uma realidade em que as pessoas foram transformadas em mercadorias em concorrência e postas sob condições de vida que antecipavam suas mortes e/ou mutilavam-nas (por serem evitáveis, tais óbitos não podem ser tratados como “acidentes”), não seria um conceito vivaz para explicar 21.992 óbitos de ciclistas entre 2012 e 2020 no Brasil?
As ideias simmelianas de intensificação da vida nervosa e de aquisição do caráter blasé, contextualizadas pelo império da objetividade, da economia monetária e da divisão do trabalho em uma megalópole não seriam, ainda, atuais para se pensar a subserviência das pessoas às plataformas digitais e/ou aos estabelecimentos para os quais trabalham, a frieza e a reserva que elas têm entre si mesmas? Não seriam conceitos a serem mobilizados para se explicar como entregadores ao pedal, com uma média salarial inferior a R$ 1 mil durante o terceiro trimestre de 2022, obrigados a se resignarem diante de tudo e de todos, bem como para se entender como clientes recebem as mercadorias com a frieza de quem não se preocupa com todos os riscos assumidos pelo entregador?
Sob a presente era da acumulação flexível, o conjunto da barbárie acima descrita é majorado por estratégias de alavancar a superexploração do trabalho. Dentre elas, há a Reforma Trabalhista implementada no Brasil em 2017 e a precarização alavancada pela Gig Economy (presente também entre os entregadores ao pedal), que se conduz pelo aumento da informalidade [quase 99% dos empregadores que utilizam a bicicleta como veículo de trabalho, segundo a Tabela 2 (soma do percentual dos que atuam sem carteira assinada, por conta própria e como trabalhador familiar auxiliar)] e do trabalho temporário mediante plataformas digitais que pagam por entrega ou por corrida, que substituem o assalariamento pelo freelance para baratear, assim, o custo com a mão de obra, que mobilizam o toyotismo e o just in time como maneiras de aumentar a acumulação de capital para uma minoria diminuta e deixar à mingua um exército de precarizados.
Trata-se de mais um episódio da tradição ornitorríntica de combinar a modernização (plataformas digitais) e o arcaísmo (informalidade, bicos, longas jornadas de trabalho, superexploração da mão de obra...); ideologicamente, justificado como suposto meio de ofertar “autonomia” aos que se dedicam a fazer entregas – desempregados e não empregáveis obrigados a trabalharem por conta própria e sem nenhuma proteção à atividade laboral são ideologicamente denominados como “empreendedores” (ESTEVES; PHINTENER, 2022) enquanto padecem do que Engels, Simmel, Elias, Agamben e Francisco de Oliveira descreveram, outrora, e de novas formas de assassinato social.
Para a questão de gênero, Roberta Raquel (2020) argumenta que a mobilidade não pode ser tratada de maneira universalizante e supondo o espaço como neutro, uma vez que, assim, se invisibilizaria a forma a que as mulheres ciclistas enfrentam os espaços colonizados pelo patriarcalismo e tornam-se constrangidas e segregadas de vivências e de apropriação destes espaços que, dessa forma, parecem estar reservados ao gênero masculino.
O medo (que aumenta com a maternagem) e a insegurança inibem as mulheres à frequência de horários e espaços nos quais os assédios, os abusos e a importunação sexual são mais observados nas cidades; com efeito, os nexos entre as violências viária e de gênero evidenciam-se no baixo número de ciclistas mulheres [não apenas entre os entregadores] (12%) em relação a homens, em São Paulo (RAQUEL, 2020, p. 95), no fato de que 77% dos que não sabem pedalar, entre 2012 e 2018, se declararem do gênero feminino (RAQUEL, 2020, p. 114) e no processo de socialização de cariz patriarcal a circunscrever as mulheres ao âmbito privado e de mantenimento do lar, restringindo a elas, assim, desde a infância, o hábito com as atividades físicas e com as brincadeiras para as quais os meninos estão liberados (RAQUEL, 2020, p. 96).
Na pesquisa feita no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, dos 220 entregadores que utilizam veículos acionados a pedal, apenas 3% eram mulheres (ALIANÇA BIKE, 2023a). Na pesquisa sobre o perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo, com 270 pessoas, apenas 03 (1%) eram mulheres (ALIANÇA BIKE, 2023b). Entre os ocupados que usam bicicleta como instrumento de trabalho, segundo a PNADC/IBGE, o percentual de homens supera 90%, ratificando os argumentos acima (Gráfico 6). As mulheres estão socialmente marginalizadas e excluídas inclusive em atividades nas quais impera a precarização.
Outra característica individual observada é a média de idade desse contingente de trabalhadores. Ela é de 29 anos, como mostra a Tabela 3, o que evidencia ser um tipo de trabalho a atrair parcela da juventude em idade ativa, em especial, para os setores de Transporte, armazenagem e correio e Alojamento e alimentação. Na pesquisa da Aliança Bike com ciclistas entregadores que trabalhavam em 6 centralidades na cidade de São Paulo, a média aferida foi de 24 anos (ALIANÇA BIKE, 2023b). Além de se tratar de uma ocupação na qual há uma maioria de homens, pretos e pardos, com rendimento inferior a R$ 1 mil, verifica-se que os ciclistas entregadores também se constituem, em maioria, de jovens.
Observadas as quatro questões supracitadas, a viária, a de estratificação, a de gênero e a etária, nota-se o “efeito descivilizador” (ELIAS, 1998, p. 21) a que estão submetidos os trabalhadores que se utilizam da bicicleta para a atividade de entregas mediante as plataformas digitais e/ou ocupados em estabelecimentos: em termos de violência viária, a fragilidade do ciclista que compartilha as vias com os veículos automotores e a escassez/inexistência de estrutura cicloviária efetivam a agressividade que redunda nos óbitos expressos pelos dados pesquisados no (SIM)DATASUS e no INFOSIGA/SP; acerca da estratificação social, o baixo rendimento adquirido com a precariedade da atividade realizada sem a devida proteção da legislação trabalhista, declina a qualidade de vida e rebaixa o profissional em questão em relação a outros profissionais e a estratos sociais superiores, aumentando as desigualdades entre os agrupamentos societários; sobre a questão de gênero, não se verifica a diminuição do gradiente de poder entre os gêneros a fim de se alcançar igualdade entre eles, ao contrário, as mulheres estão quase completamente excluídas da atividade ao serem um grupo de apenas 2,9% do conjunto de entregadores, conforme expõe-se no Gráfico 6; na questão etária, são os jovens os mais expostos a toda a sorte de problemas constitutivos à ocupação em pauta – óbitos, precarização, baixo rendimento e não diminuição da diferença entre gradiente de poder em termos geracionais.
Como denominador comum e de acordo com os termos eliasianos, parece ocorrer uma sociogênese que contribui não para a inibição, mas a exteriorização das formas de violência acima retratadas: a concorrência de todos contra todos, o aumento da precarização e da exploração do trabalho, a imposição da objetividade da economia monetária e da forma mercadoria entre as relações humanas, o desapreço pela vida, a indiferença e a inobservância das leis de trânsito que protegeriam o ciclista (re)veiculam a barbárie dos óbitos e das mutilações, das desigualdades sociais e da não redução do gradiente de poder entre os gêneros e as gerações.
A insistência na exteriorização dessas formas de violência concorre com o longo “processo de socialização” (ELIAS, 2011, p. 69) que originou o autocontrole compulsivo no Ocidente – em outros termos, há uma psicogênese correlata à sociogênese e uma “concomitância” (ESTEVES, 2019, p. 31) entre processo civilizador e efeito descivilizador, entre saltos e regressos, entre civilização e barbárie.
Gráfico 7 mostra que 73,5% dos entregadores que se utilizam dos veículos acionados a pedal são pretos, pardos ou indígenas; enquanto 26,5%, brancos ou amarelos. Número próximo ao que a pesquisa da Aliança Bike encontrou para o município de São Paulo. Portanto, observa-se a maior sujeição de pretos, pardos e indígenas à violência viária constitutiva aos que compartilham as vias, para fins laborais, com os veículos automotores, bem como a maior exposição do mesmo grupo à parca renda e à precarização do trabalho peculiar ao ramo de atividade em pauta. Trata-se de mais um fenômeno a denotar pretos, pardos e indígenas como as vítimas prioritárias nas ruas das grandes cidades e a replicar a herança escravocrata que, há séculos, destina ocupações de menor status na hierarquia social a determinados grupos étnico-raciais. O assassinato social tem cor.
[1] PNADC/IBGE. Disponível aqui. Acesso em: 27-12-2022.
[2] DATASUS. Disponível aqui. Acesso em: 05-01-2023.
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