"A escolha destes 10 marcos não exclui outras perspectivas ou diferentes visões sobre o papado de Francisco. Ela tem uma função pedagógica que nos convida a perceber que nestes 10 anos de pontificado, Francisco foi fiel ao projeto de uma Igreja descentrada, que redescobre a pessoa e a mística de Jesus de Nazaré, vivida na perspectiva da misericórdia, encarnada no discernimento, na vivência da fraternidade, na educação integral e ecológica que nos convidam a uma práxis revolucionária".
O artigo é de Angelo Ricordi, doutor em Teologia pela PUCPR, especialista em Identidade, Missão e Vocação da Província Marista Brasil Centro-Sul – PMBCS.
No dia 13 de março de 2013, os cardeais reunidos em Roma elegeram como papa, o argentino Jorge Mario Bergoglio. Para a surpresa dos fiéis reunidos na Praça da Basílica de São Pedro, além da escolha de um latino-americano, o nome Francisco causou grande comoção. Dias depois o Papa explicou a escolha do nome: “Na eleição, eu tinha ao meu lado o arcebispo emérito de São Paulo, um grande amigo. Quando a coisa começou a ficar um pouco perigosa, ele começou a me tranquilizar. E quando os votos chegaram a 2/3, aconteceu o aplauso esperado, pois, afinal, havia sido eleito o Papa. [...] Ele me abraçou, me beijou e disse: 'Não se esqueça dos pobres'. Aquilo entrou na minha cabeça. Imediatamente lembrei de São Francisco de Assis."
O cardeal cubano Jaime Ortega revelou que na Conferência Geral do dia 09 de março de 2013, que antecedeu a eleição de Francisco, falando aos demais cardeais, Bergoglio descreveu qual deveria ser o perfil do próximo Papa: “Um homem que, através da contemplação de Jesus e da adoração de Jesus, ajude a Igreja a “sair de si mesma rumo às periferias existenciais, que a ajude a ser a mãe fecunda que vive da doce e reconfortante alegria de evangelizar”. (Veja aqui). Ao ser eleito, esse modelo programático de papado pode ser encontrado na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: “Quero , com essa exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de convidá-los para uma nova etapa evangelizadora marcada por essa alegria e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos” (EG, n.1).
Inspirados nessas palavras, queremos nesse artigo sublinhar 10 marcos do caminho percorrido pelo Papa Francisco nesses 10 anos do seu pontificado.
O primeiro marco nos é revelado pelo teólogo Mario de França Miranda, na obra a Reforma de Francisco ao destacar que um dos núcleos centrais do seu pontificado está em recuperar o anúncio da mensagem cristã por meio de uma Igreja que anuncie e proclame o coração da mensagem de Jesus Cristo : “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação" (EG, n.27). “Uma pastoral em chave missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário" (EG, n.34).
O segundo aspecto que queremos destacar do seu pontificado é o modelo de uma Igreja missionária e descentrada. “O principal sentido da Igreja é estar a serviço da implantação do Reino de Deus; ela não é o fim, ela é meio, instrumento de Deus” [1]. Para isso, nos recorda Francisco: “Cada cristão e comunidade há de discernir qual o caminho que o Senhor lhe pede [...] sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho" (EG, n.20).
O aspecto central do encontro com Cristo marca fortemente o pensamento do Papa Francisco. Tanto do Documento de Aparecida, como na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, Francisco recupera uma afirmação magistral do Papa Bento XVI: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (EG, n.7; Documento de Aparecida, n. 243).
Como decorrência primeira do encontro com Cristo e da vivência trinitária de uma espiritualidade encarnada, Papa Francisco nos ensina na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate: “Para um cristão, não é possível imaginar a própria missão na terra sem a conceber como um caminho de santidade, porque 'a vontade de Deus é que sejais santo' (1ª Ts 4,3). Cada santo é uma missão, um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, em um momento determinado da história, um aspecto do Evangelho (n. 19). Essa santidade não se restringe aos santos canonizados ou beatificados, mas às pessoas que vivem no cotidiano de suas vidas a santidade ao pé da porta, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus” (n. 7).
Como bom filho de Santo Inácio, Francisco nos ensina que o discernimento é a característica mais importante da espiritualidade inaciana: “O discernimento é a leitura narrativa dos momentos bons e dos momentos escuros, das consolações e desolações que experimentamos ao longo da nossa vida. No discernimento é o coração que nos fala de Deus, e nós devemos aprender a compreender a sua linguagem. Perguntemo-nos, no final do dia, por exemplo: o que aconteceu hoje no meu coração? Alguns pensam que fazer este exame de consciência é fazer a contabilidade dos pecados que cometemos – e cometemos muitos – mas é também perguntar-se “o que aconteceu dentro de mim, tive alegrias? O que me causou alegria? Fiquei triste? Qual o motivo da tristeza? E assim aprender a discernir o que acontece dentro de nós” (Catequese do Discernimento, 19/11/2022).
Em 13 de março de 2015 o Papa Francisco ao anunciar a proclamação de um Ano Santo Extraordinário escreveu: “Decidi convocar um Jubileu Extraordinário que tenha seu centro na Misericórdia de Deus. Será um Ano Santo da Misericórdia”. O paradigma de uma Igreja Misericordiosa estava no centro de sua reflexão: “A Igreja não está no mundo para condenar, mas para permitir o encontro com aquele amor visceral que é a misericórdia de Deus. Para que isso aconteça, tenho repetido muitas vezes, é preciso sair [...] Espero que o jubileu extraordinário faça emergir cada vez mais o rosto de uma Igreja que redescobre as entranhas da misericórdia e que vai ao encontro de tantos feridos necessitados da escuta, compreensão e amor" (Deus é misericórdia, p.86).
O discernimento no pensamento de Francisco nos conduz à misericórdia, vivida como um projeto onde todos somos irmãos, onde a fraternidade e amizade social são o caminho para a recuperação da dignidade de cada pessoa humana: “Aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar nossa vida uma bela aventura. Ninguém pode enfrentar a vida isoladamente [...] precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar para frente. Como é importante sonhar juntos. Sozinho corre-se o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é junto que se constroem sonhos” (FT, n.8).
Sobre a ecologia nos adverte o Papa Francisco: “A ecologia humana é inseparável da noção de bem comum, princípio este que desempenha um papel central e unificador na ética social. É o conjunto das condições da vida social que permite, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (LS, n.156). Em outras palavras, a ecologia e o cuidado com a Casa Comum passam pelo enfrentamento das desigualdades a que estão submetidos os homens e mulheres mais vulneráveis.
Tudo começa e termina na educação integral: “Se queremos um mundo mais fraterno, devemos educar as novas gerações para reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada um nasceu ou habita (FT, 1). Este princípio fundamental – «conhece-te a ti mesmo» – orientou sempre a educação, mas é necessário não descurar outros princípios essenciais: «conhece o teu irmão», a fim de educar para o acolhimento do outro [cf. Carta enc. Fratelli tutti; Documento sobre A fraternidade humana (Abu Dhabi, 04/II/2019)]; «conhece a criação», a fim de educar para o cuidado da casa comum (LS); e «conhece o Transcendente», a fim de educar para o grande mistério da vida. Temos a peito uma formação integral que se resume no conhecer-se a si mesmo, ao próprio irmão, à criação e ao Transcendente. Não podemos esconder às novas gerações as verdades que dão sentido à vida. (Papa Francisco, Audiência 05/11/2021).
A economia e a política estão interconectas fortemente no Pacto Global de Francisco: “Necessitamos de políticos apaixonados pela missão de garantir para todo o povo os três Ts – terra, teto, trabalho.- além da educação e serviços de saúde. Isto é, políticos com horizontes amplos, que abram novos caminhos para que o povo se organize e se expresse” (Vamos sonhar juntos, p.123).
A escolha destes 10 marcos não exclui outras perspectivas ou diferentes visões sobre o papado de Francisco. Ela tem uma função pedagógica que nos convida a perceber que nestes 10 anos de pontificado, Francisco foi fiel ao projeto de uma Igreja descentrada, que redescobre a pessoa e a mística de Jesus de Nazaré, vivida na perspectiva da misericórdia, encarnada no discernimento, na vivência da fraternidade, na educação integral e ecológica que nos convidam a uma práxis revolucionária. O Pacto Educativo Global e a Economia de Francisco e Clara, mais do que simples movimentos, são apostas concretas da utopia e do desenvolvimento integral presentes no sonho de Jesus para toda a humanidade: vida em plenitude para todos (Jo 10,10).
Ao percorrermos o caminho realizado até aqui por Francisco nos deparamos com um modelo de liderança profética e servidora que ultrapassa as fronteiras da Igreja Católica e dialoga com o mundo todo. Ao fazer esse diálogo de maneira propositiva e consciente, reconhecemos os limites e o alcance de sua proposta, seja dentro da própria Igreja, seja na oposição sistemática do mercado à proposta de um desenvolvimento integral. O modelo da liderança humilde de Francisco é mais complexo do que seus detratores pensam. Exige ampliação da consciência, reposicionamento da própria Igreja diante do mundo e dos seus problemas. Termino com a imagem do peregrino, metáfora presente no pensamento de Francisco: “alguém que descentra e, assim, consegue transcender. Sair de si mesmo, se abre para um novo horizonte e, quando volta para casa, já não é mais o mesmo, e sua casa também não será. É tempo de peregrinação” (FRANCISCO, 2020).
[1] MIRANDA, Mario de França. A reforma de Francisco, fundamentos teológicos. São Paulo: Paulinas, 2017, p.60.
DOCUMENTO DE APARECIDA. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Edições CNBB, Paulus, Paulinas, 2008.
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. A alegria do Evangelho sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus-Loyola, 2013.
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si – sobre o cuidado da Casa Comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
FRANCISCO, Papa. O nome de Deus é misericórdia. São Paulo: Planeta, 2016.
FRANCISCO, Papa. Gaudete et Exsultate – Sobre o chamado à santidade no mundo atual. São Paulo: Paulus, 2018.
FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social. São Paulo: Paulus, 2020.
FRANCISCO, Papa. Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
FRANCISCO, Papa. Discursos. Encontro “Religiões e Educação: Pacto Educativo Global”. Disponível aqui. Acesso em: 01 de fevereiro de 2022.
FRANCISCO, Papa. Audiência Geral. Catequese sobre o discernimento 6. Os elementos do discernimento. O livro da própria vida (19/10/2022). Acesso em: 01 de fevereiro de 2022.
MIRANDA, Mario de França. A reforma de Francisco. Fundamentos teológicos. São Paulo: Paulinas, 2017.
Rodari, Paolo. O discurso de Bergoglio que convenceu os cardeais a elegê-lo: “A Igreja deve sair de si mesma”. Tradução de Moisés Sbardelotto. Acesso em 01 de jan. 2023.