24 Janeiro 2023
"Quando é que um agronegociante, um minerador, um madeireiro, vai valorizar a copa de uma árvore, o néctar de uma flor, um cipó, a variedade de frutos que a floresta nativa oferece a homens e animais? Nem lhe interessa regenerar a biomassa que alimenta a mãe-terra, esta fonte inesgotável de pesquisa para as gerações, presente e vindouras. Para acelerar seus negócios prefere agroquímicos, agrotóxicos, transgênicos, máquinas pesadas...", escreve Egydio Schwade, filósofo, teólogo e um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário - CIMI, em artigo publicado por Casa da Cultura do Urubuí, 21-01-2023.
Com uma incrível generosidade, silenciosas, escondidas, invisíveis, algumas espécies de arvores da floresta nativa daqui, em volta do rio Urubuí/AM, nos deram no semestre que findou, 3.252,8 kg de mel. Resultado da colheita do trabalho de 45 famílias de abelhas da espécie apis-melífera-africanizadas, localizadas em 6 apiários. Sem referir a cera, o própolis, o pólen que nos deram. E junto aos mesmos apiários cultivamos ainda 15 espécies de meliponíneos, abelhas sem ferrão, em torno de 200 enxames cujo mel ainda não foi colhido, mas que visitaram as mesmas árvores.
O trabalho humano envolveu 6 pessoas, entre elas um com 87 anos de idade.
As árvores que ofereceram este abundante e precioso produto, sequer são conhecidas ou identificas, por algum especialista ou instituto. Ninguém de fato as procurou, para vê-las, conhece-las, identificá-las e agradecê-las. Vivem na solidão.
As abelhas nos levaram à descobrir a biodiversidade e o valor que existe na floresta nativa, tanto para tornar a nossa mesa, dia a dia mais farta, como para garantir nossas finanças. As abelhas trazem mel, pólen, cera e própolis para as colmeias, deixando para trás milhares de flores polinizadas, do que resulta uma grande quantidade de frutas que cairão a seu tempo, alimentando a vida animal, humana e vegetal. Da floresta vem ainda a madeira e a palha, matéria prima para o abrigo de homens e animais, E as águas puras. As sementes que renovam a biodiversidade.
Em um encontro promovido, há alguns anos, pela WWF, em Manaus, o Presidente do Sindicato dos Madeireiros do Estado do Amazonas, afirmava: “Da floresta amazônica se aproveitam 5%, o resto é lixo”. Quando repetiu a grosseria, minha esposa, Doroti Alice, participante do evento, refutou o madeireiro, citando apenas o exemplo da castanheira. Além de oferecer cada ano e por centenas de anos, os seus ouriços, repletos de alimento e, uma vez esvaziados, são combustível, oferece a sua copa para sombra às pessoas e de repouso às aves e macacos e abre suas flores para alimentar polinizadores. Além disso, forma nuvens que derramam água pura. Dá apoio a cipós: uns medicinais, como o cipó abuta, outros, artesanáveis, como o cipó titica... Vale, sim, a visão inversa do madeireiro: da floresta amazônica se aproveita 95%, o resto é madeira. E quando morre a árvore nos dá ainda os 5% restantes: a madeira, para construirmos nossas casas, colmeias, lenha para o fogo...
Jamais haverá sustentabilidade da floresta amazônica sob a ótica de madeireiro, de agronegociante ou de minerador. Das ideias de um madeireiro, de um agronegociante, de um dono de empresa de mineração, a humanidade aproveita 5%, o restante é lixo e veneno! Quando é que um agronegociante vai se interessar pela preservação de uma abelha plebeia mínima, a menor das abelhas melíferas do mundo que se abriga por aí, na madeira seca, até no esteio de acariquara da varanda da casa. É a menor, mas é a polinizadora das flores de uma das maiores frutas de nossa Amazônia: o cupuaçu. Quando é que um agronegociante, um minerador, um madeireiro, vai valorizar a copa de uma árvore, o néctar de uma flor, um cipó, a variedade de frutos que a floresta nativa oferece a homens e animais? Nem lhe interessa regenerar a biomassa que alimenta a mãe-terra, esta fonte inesgotável de pesquisa para as gerações, presente e vindouras. Para acelerar seus negócios prefere agroquímicos, agrotóxicos, transgênicos, máquinas pesadas...
Por isso, confiar um Ministério da República a um personagem desses, é no mínimo, arriscado. Era necessário que nossos governantes, antes de criar e destinar um Ministério, abrissem o dicionário para conceituar corretamente o mesmo. Por exemplo: Agricultura, vem de “agri” ou “agro” que se refere à ‘campo”, “terra”. E “cultura”, nos orienta a fazer cultura, ciência na terra para melhorar a vida. Então, não é um contrassenso um agronegociante Ministro da Agricultura? Como negociante lhe interessam ‘negócios’, não ‘cultura’. O Ministério do Desenvolvimento Agrário-MDA, sim, poderia estar em suas mãos, pois, “desenvolvimento” é a negação de “envolvimento”. Como não se envolve na mãe-terra, pois esta só lhe interessa enquanto sustentáculo de negócios, seria este talvez o seu lugar: o MDA. O Ministério da Agricultura deveria estar em mãos de quem cultiva a terra, faz ciência, se envolve nela e se preocupa em criar condições para melhorar e ampliar os seus produtos em qualidade e espécies, visando a saúde, a mesa farta e variada, para o bem-viver da humanidade.
Somos apenas administradores de uma terra protegida e cultivada durante milênios, pela sabedoria dos povos originários e um dia invadida, roubada por ditadura europeia, massacrando seus donos. Como administradores é preciso que nos demos conta disso e a cultivemos, respeitando a visão destes povos e as lições que os seus remanescentes nos dão ainda hoje.
Vejam este pequeno e incompleto lance de produtos da economia invisível que os povos originários, em especial, os Waimiri-Atroari nos deixaram, no espaço que aqui ocupamos: castanha-da Amazônia, piquiá, uxi, bacuri, bacaba, patuá, buriti, açaí ou juçara, cupuí, cupuaçu, cubiu, cacau, goiaba, pupunha, tucumã, camu camu, limão, banana, mapati ou uva da Amazônia, ingás variados, jamelão, abacaxi, jenipapo, abiu, murici, taperebá ou cajá, biribá, umari, maracujá, mari mari, mamão, babaçu-do-Amazonas, castanha-sapucaia, guaraná, pitomba, sorva... Animais silvestres: paca, cutia, queixada, caititu, anta, capivara, jabuti, macaco... Rios e igarapés de águas cristalinas, abrigo de variadas espécies de peixes: pacu, jaraqui, pirarara, pirarucu, tucunaré, piranha, tambaqui, matrinchã, cará, branquinha... Incontáveis plantas medicinais: amapá, saracura, carapanaúba, andiroba, cumaru, sucuba, abuta, jatobá... Tubérculos: cará, inhame, ariá, mandioca, batata doce, cúrcuma, gengibre ou mangarataia, taioba... Mais de 30 espécies de abelhas que nos trazem os seus preciosos produtos e polinizando as flores.
Esta é uma economia invisível para os governantes que comandam desde 1500 este chão, cobrindo-o de cimento e asfalto. Gente que vê a terra apenas como um almoxarifado de produtos de exportação, envenenados ou não, destruindo e acumulando tudo em moedas, visando o aumento do PIB, sem interesse social.
Mas não é esta a ‘Economia’ que é praticada e que sustenta os povos originários, os ribeirinhos, os agricultores familiares, os pobres da Amazônia, 70% do povo brasileiro.
Acredito que a iniciativa do Governo Federal de criar o Ministério dos Povos Originários foi a decisão governamental mais audaz que até hoje ocorreu na História do Brasil, não apenas para a conquista da Justiça, mas também para a garantia da biodiversidade da floresta e dos cerrados, da mesa farta e variada e da reconquista de águas e ares puros.
Entretanto, não será fácil. Nos meus 60 anos de caminhada com os povos originários deste país, participei da mudança da política indigenista da Igreja Católica. Mas também participei em repetidas tentativas de mudança dos rumos da Política Indigenista oficial. Estas foram todas frustradas. A FUNAI que a Joenia Wapitxana acaba de receber, está em situação tão lastimável ou até pior, do que a do SPI-Serviço de Proteção do Índio que conheci entre 1966 e 1967. Para a efetivação e sucesso do Novo Ministério far-se-ia necessário, desde logo que a Ministra e a Presidenta da FUNAI, não se deixem afundar na burocracia ou “mar de lama”, de Brasília e nem se deixem grudar no cimento e no asfalto urbano. Mas organizem um Ministério leve e volante, instalando-se lá onde a visão genocida multissecular se faz hoje mais cruelmente presente. Concretizo: se instale, por exemplo junto ao povo Yanomami ou junto aos Guarani do Mato Grosso do Sul ou junto aos Munduruku do Tapajós ou junto aos Pataxó da Bahia ou Sonia faça sua primeira experiência como Ministra, junto a Reserva Arariboia, do seu povo Guajajara, para interromper o roteiro dos criminosos madeireiros, dos agronegociantes que vem assaltando as terras dos Pataxó e Kayowá-Guarani e dos gananciosos empresários de mineração de Roraima e do Tapajós.
E sempre com apoio total do Governo Federal.
Só assim teremos a garantia de que a mãe-terra não continue a ser espoliada por um modelo acumulador de moedas nas mãos de poucos insaciáveis que fomentam a sociedade desigual, mas volte a se cobrir, de Norte a Sul e de Leste a Oeste, com a riqueza original, fornecendo, abundância de mel, comida e frutas de sabores, cores e tamanhos variados, cobrindo com fartura a mesa para o Bem Viver de todas as gentes que habitam este chão.
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A floresta amazônica e a sua economia invisível. Artigo de Egydio Schwade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU