O agora ou nunca da demarcação dos territórios indígenas no Brasil

Povo Munduruku em atividade de autodemarcação, no Pará (Foto cedida por Alessandra Korap Munduruku | Amazônia Real)

10 Janeiro 2023

Relatório do GT de Povos Indígenas apresentado ao presidente Lula, no final do ano, recomenda a homologação de 13 terras indígenas nos primeiros 30 dias do governo.

A reportagem é de Leanderson Lima, publicado por Amazônia Real, 06-01-2023.

Depois de quatros anos sem ter um único centímetro de terra indígena demarcado – cumprindo a promessa de campanha feita pelo agora ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) –, os povos indígenas aguardam pela “canetada presidencial”, para que 13 novas áreas possam ser homologadas no País. Essas informações fazem parte do Relatório do Grupo Técnico de Povos Indígenas, com 129 páginas, que foi produzido durante o processo de transição governamental e entregue ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). As lideranças do movimento aguardam a homologação destes territórios ainda para este mês.

“Recomenda-se que nos primeiros 30 dias de governo sejam homologadas as 13 terras indígenas, para as quais já consta devida instrução processual e exposição de motivos encaminhados pela Coordenação-Geral de Assuntos Fundiários da Funai, em conformidade com o rito de regularização fundiária de terras indígenas estabelecido no Decreto no 1.775/96”, diz trecho do relatório.

O documento diz que “a não demarcação dos Territórios Indígenas, dever constitucional do Estado brasileiro, tem submetido os indígenas de todo o país a situação de extrema vulnerabilidade, uma vez que este reconhecidamente, garante maior proteção às comunidades indígenas”.

De acordo com a coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kerexu Yxapyry, alguns desses territórios deveriam ter sido homologados – que é a final fase da demarcação – ainda na gestão do ex-presidente Michel Temer (MDB). Outros, até mesmo nos governos anteriores.

É o caso da TI Sawré Muybu, do povo Munduruku, que foi ameaçado pelas obras do Complexo Tapajós, ainda no governo de Dilma Rousseff (PT) e que hoje é uma das áreas mais devastadas por garimpo e desmatamento na Amazônia.

“Essas 13 são terras que não têm nenhum processo que impeça a homologação, nenhuma ação judicial que impeça a conclusão demarcatória. Estão ali prontos para serem assinadas pelo presidente. Não tem nenhuma desculpa”, avisa Kerexu.

De acordo com a antropóloga Braulina Baniwa, da Articulação Nacional Das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), a expectativa dos povos indígenas é que o Lula homologue os 13 primeiros territórios indígenas ainda nos 30 primeiros dias de seu governo.

Integrante do GT Povos Indígenas do governo de transição do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, Braulina Baniwa descreve ainda o tamanho da expectativa dos povos indígenas com este novo momento.

“Cria-se a expectativa dos parentes que são dessas terras e que estão aí há muito tempo, aguardando esse momento. Ter o território é ter um espaço para pensar políticas públicas voltadas para a comunidade, poder trabalhar com segurança, porque sem isso enfrentamos as invasões”, diz.

Braulina Baniwa (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

“A homologação de uma terra indígena é o ato final do processo de demarcação. O ato demarcatório segue um rito jurídico complexo, que inicia na Funai com a criação de um GT de identificação de uma terra indígena, baseada em uma demanda que tem da comunidade e eles concluem, depois de um longo percurso burocrático, uma homologação que é feita pelo presidente da República”, explica o ex-presidente da Funai, Márcio Meira, que também fez parte do GT.

De fato, há uma grande expectativa em relação ao novo momento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), como agora é denominado o órgão, com as escolhas de Joenia Wapichana para presidência, e de Sonia Guajajara como ministra dos Povos Indígenas. Um dos maiores desafios da política indigenista no governo Lula será o orçamento, fundamentação para viabilizar as ações.

“Esse orçamento não é suficiente, mas o presidente Lula já sabe disso e, com isso, eu espero que a Funai tenha um apoio financeiro a mais por conta das necessidades do órgão que é tomar conta de 14% do território brasileiro”, disse Joenia, em entrevista ao UOL.

Desmatamento ilegal na TI Ituna-Itatá (Foto: Fábio Nascimento/Greenpeace)

Demarcação

Os territórios indígenas que aguardam apenas a assinatura presidencial para a sua homologação são: TI Aldeia Velha, pertencente ao povo Pataxó, em Porto Seguro, Bahia; TI Kariri-Xocó, do povo Kariri Xocó, no município de São Brás, Alagoas; TI Potiguara de Monte, do povo Potiguara, em Marcação, na Paraíba; TI Xukuru-Kariri, do povo homônimo, no município de Palmeiras dos Índios, Alagoas; TI de Tremembé da Barra do Mundaú, do povo Tremembé, em Itapipoca, no Ceará; TI Morro dos Cavalos, do povo guarani, em Palhoça, em Santa Catarina; TI Rio dos Índios, do povo Kaingang, em Vicente Dutra, no Rio Grande do Sul; TI Toldo Imbu, povo Kaingang, no município de Abelardo Luz, em Santa Catarina; TI de Cacique Fontoura, Karajá, município de Luciara, em São Félix do Araguaia, no Mato Grosso; TI Arara do Rio Amônia, do povo Arara, do município de Marechal Thaumaturgo, no Acre; TI Rio Gregório, da etnia Katukina, em Tarauacá, no Acre; TI Uneiuxi, do povo Nadahup, em Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas; TI Acapuri de Cima, do povo Kokama, no município de Fonte Boa, no Amazonas.

Além desses territórios, há outros 66, em todo o País, que estão em estágios burocráticos diferentes. De acordo com o Relatório do Grupo Técnico de Povos Indígenas, 25 territórios têm seus processos demarcatórios aguardando a portaria declaratória por parte do Ministério da Justiça e Segurança.

“Existem 25 territórios para serem reconhecidos, para serem declarados. Mas temos de seguir caminhando naquelas que têm ações judiciais, avaliando o nível de gravidade”, pontua Kerexu Yxapyry. Há ainda outros 41 territórios, cujo processos demarcatórios aguardam a chamada demarcação física.

O Relatório do Grupo Técnico de Povos Indígenas apontou ainda a necessidade de restabelecer as Portarias de Restrição de Uso de Ituna Itatá, Piripkura, Pirititi, Tanaru com “vigência até a conclusão dos estudos de delimitação dos territórios, bem como a publicação imediata das Portarias de Restrição de Uso da TI Jacareuba Katawixi e Mamoriá Grande até a conclusão dos estudos de delimitação dos territórios”.

Além da portaria de restrição de uso, o relatório também recomenda medidas de mitigação e a necessidade de homologar e preservar a Terra Indígena Tanaru, em Rondônia, onde vivia o ‘índio do Buraco’, morto ano passado. A TI tem 8.070 hectares e fica entre os municípios de Chupinguaia, Corumbiara, Parecis e Pimenteiras do Oeste. O território vive sobe constantes ameaças de invasões e ataques.

O documento também pede a expedição de portaria declaratória de 12 terras indígenas, “para as quais os limites da área e determinação da demarcação física já foram concluídos pelos respectivos grupos de trabalho”. Também pede o cumprimento de 98 decisões judiciais “que determinam a constituição ou recomposição pela Funai de Grupos Técnicos a fim de concluir estudos de identificação e delimitação em curso” e de 150 processos destinados à emissão de declaração de reconhecimento de limites.

Manifestação dos Guarani Kaiowá contra reintegrações de posse (Foto: Rafael de Abreu/Cimi)

Guarani Kaiowá e Yanomami

Kerexu Yxapyry faz ainda um apelo para que não se deixe de olhar para o povo Guarani Kaiowá, que há anos vive um processo de resgate de seu território (que eles chamam de Tekoha) ocupados fazendeiros, no Mato Grosso do Sul.

“Os Guarani Kaiowá têm territórios banhados de sangue e mortes de lideranças, de mulheres, e crianças. É tudo muito invisibilizado pela sociedade”, denuncia e pede a punição pelas mortes que acontecem dentro dos territórios.

Além dos Guarani Kaiowá os Yanomami também sofrem com constantes invasões de seus territórios para a mineração clandestina, o que tem causado o extermínio dessa população, como lembra Kerexu.

“É gritante o extermínio do povo Yanomami. Vem acontecendo diariamente de todas as formas dentro do território, e a gente não teve neste governo que sai, nenhuma ação, nenhum movimento para paralisar isso, pelo contrário, nós tivemos muito incentivo, incitações para que o garimpo acontecesse de forma ilegal e assassina dentro desse território. Também temos os povos isolados e de recente contato, como a gente tem na região do Vale do Javari, onde aconteceu o assassinato de Dom Philiphs e Bruno, justamente por este projeto, por essa política de proteção não ser executada, pelo contrário”, denuncia.

Sede da Funai em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Desafios

As demandas dos povos indígenas são grandes, e vai ser um desafio para Funai conseguir cumprir com tantas demandas, levando em conta que o órgão foi sucateado na gestão de Jair Bolsonaro. De acordo com o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2023, apresentado ao Congresso Nacional, o órgão vai ter o orçamento de R$ 514 milhões, pelo menos R$ 83 milhões a menos, se comparado com as despesas do órgão em 2022, que foram R$ 618,06 milhões.

Não bastasse o orçamento deficitário, a Funai foi atacada do início ao fim da gestão de Bolsonaro. “A estrutura está sucateada. Ele (Bolsonaro) veio para exterminar espaços como a Funai e a Sesai”, analisa a coordenadora executiva da Apib.

Márcio Meira, que esteve à frente da Funai entre os anos de 2007 a 2012, durante o segundo governo Lula e o primeiro governo Dilma, compara a situação da Funai de sua gestão com a situação que o órgão se encontra hoje.

“É um abismo imenso, gigantesco. Nada comparável. A gente sabe que a Funai é uma instituição complexa, com dificuldades, sempre teve dificuldades ao longo da história. Mas em nenhum momento a situação ficou tão catastrófica quanto agora nestes últimos quatro anos”, desabafa.

Para Meira, a Funai só não foi extinta graças à resistência dos servidores e dos próprios indígenas que, por meio de ações na justiça, conseguiram evitar a extinção do órgão federal.

Braulina Baniwa acredita que o caminho para conseguir suprir as demandas da sucateada Funai será buscando ajuda dos outros ministérios e com o diálogo aberto com o presidente Lula. “Para juntar essa força para atender essas demandas que ficaram paradas. Creio que a gente tenha caminhos que podem trazer outras parcerias para possibilitar tanto a retirada dos invasores, ou processo de demarcação”, opina.

Posse de Sônia Guajajara com o presidente Lula (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Protagonismo indígena

Um momento de esperança e transformação na política indigenista brasileira. É assim que o ex-presidente da Funai avalia o atual momento de ineditismo no País, que pela primeira vez conta com um ministério dedicado aos povos indígenas, comandando por uma mulher indígena, Sônia Guajajara (PSOL); além da Funai, que passa a ter, pela primeira vez em sua história, uma indígena no comando, Joenia Wapichana (REDE).

Para Meira, o Brasil viu surgir ao longo das três últimas décadas, uma geração de indígenas que cresceu, se fortaleceu e hoje tem todas as capacidades políticas e técnicas para assumir os rumos da política indigenista brasileira.

“Eu acho que houve uma mudança que não é pequena, que eu considero uma mudança que tem a ver com um capítulo final do ciclo de ruptura do período de tutela, que foi iniciado juridicamente em 1988 com a Constituição Brasileira. Agora eu acho que se inicia um último capítulo dessa tutela, essa tutela estatal, que é o protagonismo e autonomia dos indígenas no comando das instituições que cuidam da política indigenista brasileira. Eu acho isso um fenômeno fantástico em termos de transformação da política indígena brasileira”, destaca Márcio Meira.

Autodemarcação do povo Nawa, no Acre (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

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