07 Dezembro 2022
“A riqueza produzida pelo processo de globalização deveria permitir que todos os seres humanos tivessem suas necessidades básicas atendidas, apesar do retrocesso provocado pela pandemia e pela guerra na Ucrânia”. A reflexão é de Adela Cortina, em artigo publicado por El País, 05-12-2022. A tradução é do Cepat.
Adela Cortina é professora de Ética e Filosofia Política na Universidade de Valência, membro da Real Academia de Ciências Morais e Políticas e diretora da Fundação Étnor.
Desde o último terço do século passado, proliferaram exaustivamente termos que incluem o prefixo “pós”. Tentar rememorar todos eles é embarcar em uma história sem fim, a ponto de, ironicamente, se falar em “pós-pós-pós” para caracterizar essa época, que ainda é a nossa. Alguns desses termos fizeram uma fortuna especial, como é o caso da pós-modernidade, da pós-democracia, do pós-socialismo, do pós-capitalismo e, claro, da pós-verdade, aquela tortuosa tentativa de fazer com que a verdade deixou de interessar à opinião pública, que as pessoas querem ouvir apenas o que lhes convêm para viverem confortavelmente e pouco se importam se é verdadeiro ou falso.
O que liga esses termos construídos com o prefixo pós é que eles transitam muitas vezes na ambiguidade entre a tentativa de descrever o nascimento de um novo tempo, diferente do anterior em traços essenciais, mas ainda impreciso demais para batizá-lo com um novo nome, e a decidida proposta para encerrar a etapa anterior. Neste segundo sentido, podemos usar o prefixo pós para algo tão fecundo quanto identificar com clareza projetos inadiáveis, empenhados em eliminar os flagelos da humanidade, que deveriam permanecer nas brumas do tempo como algo obsoleto e ultrapassado.
Construir um mundo pós-pobreza seria, sem dúvida, um deles e, além disso, indiscutível. Não seria uma utopia, de um sonho que não tem lugar, porque apesar da boa fama do pensamento utópico, o inferno está pavimentado com suas desastrosas realizações, por mais puras que sejam suas intenções. Seria uma obrigação, de um dever de humanidade, ético, político, econômico e social que é incontornável cumprir. Uma prioridade indesculpável para aqueles que nos governam.
Nos últimos tempos, multiplicaram-se as publicações que reconstroem o passado, detectando nele uma evolução, como faziam os tratados clássicos de filosofia da história, só que agora contando com uma quantidade avassaladora de dados empíricos. Os marcos dessa história seriam a abolição da escravatura, o reconhecimento da igualdade dos seres humanos, independentemente da cor da pele ou da sua etnia, especialmente o reconhecimento da igualdade entre mulheres e homens e a necessidade de cuidar da natureza. Apesar de o caminho ser trançado de avanços e retrocessos, os avanços são inegáveis. Mais um passo nesse caminho consistirá em acabar com a pobreza, em construir um mundo pós-pobreza.
Os habitantes desse novo mundo falarão do anterior como de um velho mundo bizarro, distante e incompreensível: lembra-se de quando havia mendigos nas ruas, moradores de rua, pessoas que iam para as filas da fome, famílias inteiras que não recebiam um único salário, pessoas obrigadas a se prostituir para sobreviver, emigrantes recebidos com hostilidade, devolvidos aos seus lugares de origem ou ignorados? Lembra-se de quando a desigualdade entre os países e em cada um deles era flagrante?
Do mesmo modo que agora falamos da escravidão, da desigualdade entre as raças e entre mulheres e homens como flagelos ainda existentes, mas inadmissíveis, trataremos então da pobreza. E não se deve dizer isso no futuro do pretérito – “aconteceria assim” –, mas no futuro do presente – “será assim”. Porque acabar com a pobreza é uma obrigação por pelo menos três razões: as pessoas têm o direito de serem ajudadas pela sociedade para não serem pobres, temos os meios materiais para isso e nos comprometemos a fazê-lo abertamente desde o primeiro dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Em setembro de 2015, as Nações Unidas propuseram os 17 famosos ODS, após negociações entre os 193 Estados Membros e após dialogar com interlocutores do mundo da política, da economia e da sociedade como um todo. Pode-se dizer que os ODS representam a consciência moral alcançada em nosso tempo, que implica ações concretas em todas as dimensões da vida comum e concretiza os direitos humanos, proclamados há mais de 70 anos. O primeiro desses objetivos, rotundo, contundente, sem paliativos, é "o fim da pobreza", "acabar com a pobreza em todas as suas formas no mundo", erradicar a pobreza pura e simplesmente, construir um mundo sem pobreza para 2030. A ele se une intimamente o segundo, que clama por “fome zero”.
Como se pode constatar no próprio enunciado, não se trata tanto de um ideal a que se deva aspirar, mas antes uma obrigação de humanidade que é inevitável cumprir. A formulação recorda aqueles deveres de obrigação perfeita que recebem esse nome porque não admitem exceções e por isso se expressam como mandatos negativos: não deve haver pobreza, não deve haver fome. Não se trata apenas de reduzi-las, mesmo que tenha que atingir a meta aos poucos, trata-se de acabar com elas.
Urge, pois, estabelecer o que poderíamos chamar de um terceiro Iluminismo sobre a pobreza, prolongando a reflexão de Martin Ravallion em seu excelente livro The economics of poverty (A economia da pobreza). Segundo Ravallion, ao longo da história houve pelo menos dois Iluminismos sobre a pobreza. O primeiro, no final do século XVIII, com a Revolução Industrial, o parlamentarismo na Grã-Bretanha, a máquina a vapor e o amadurecimento das teorias do contrato social. O respeito pelos pobres emerge então como uma questão social, e não apenas como uma questão pessoal ou de grupo: a economia deve produzir bem-estar, incluindo os pobres, como lembrava Adam Smith, entre outros. E, por outro lado, estabelece-se o fundamento para que mude a concepção sobre a pobreza ao afirmar, como dizia Immanuel Kant, que toda pessoa tem dignidade, e não um simples preço, que vale por si mesma e deve ser empoderada.
Esses fundamentos ganham força e eficácia em um segundo Iluminismo, que ocorre com o Estado de bem-estar nos anos sessenta e setenta do século XX, com duas chaves essenciais: a pobreza não é inevitável, pois já se produziu riqueza suficiente para que todos os seres humanos possam levar uma vida digna. Mas, além disso, não ser pobre é um direito das pessoas que os Estados devem satisfazer, e não apenas um dever de caridade. Se outrora a luta contra a pobreza procurava defender as sociedades dos perigos que a pobreza implicava para elas, agora não se trata apenas de proteger a sociedade, mas sobretudo de empoderar as pessoas pobres.
Infelizmente, o Estado de bem-estar só foi implantado em um pequeno número de países, e mesmo neles entrou em crise no final do século passado, pelo menos em parte.
Em 2020, o relatório sobre os ODS reconheceu que antes da Covid-19 o mundo estava longe de acabar com a pobreza até 2030, mas desastres como a pandemia e a guerra na Ucrânia provocaram o maior aumento da pobreza global das últimas décadas.
Estima-se em 700 milhões, segundo a medida do Banco Mundial de 1,9 dólar por dia, e em 1,2 bilhão, segundo o Índice de Pobreza Multidimensional.
E, no entanto, a riqueza produzida pelo processo de globalização, nem digamos ainda pelas Revoluções 4.0 e 5.0, deveria permitir que todos os seres humanos tivessem suas necessidades básicas plenamente atendidas, para que pudéssemos inaugurar a etapa de um mundo pós-pobreza.
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Pós-pobreza. Artigo de Adela Cortina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU