23 Novembro 2022
“Nossa viagem pela história não é solitária, mas avançamos segurando a mão dos irmãos e das irmãs que vivem conosco o fluxo do tempo e que muitas vezes buscam uma mão que os sustente e não os deixe à beira da estrada”, escreve o cardeal Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, no prefácio ao novo livro de Ludwig Monti, “Camminare nella luce della vita. Breviario bíblico” (“Caminhar na luz da vida. Breviário Bíblico”, em tradução livre, ed. San Paolo), reproduzido por Avvenire, 19-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
No volume, o biblista oferece, para cada dia do ano, uma breve passagem bíblica, do Gênesis ao Apocalipse, seguida de uma pequena meditação, para abrir caminhos e estimular reflexões, para orientar o nosso caminho para a luz da vida, como reza o título retirado do Salmo 56.
Eram os primeiros dias de setembro de 1823 e Giacomo Leopardi em seu Zibaldone anotava uma etimologia que o havia surpreendido. De fato, tinha descoberto que “meditar” derivava do latim medeor que significa “curar, medicar”, pelo que observava que “meditar sobre algo é a continuação do simples ter ou cuidar esse algo”. No entanto, deve-se acrescentar que a raiz indo-europeia med-, que gera o termo “meditar”, também tem o valor de “pensar, refletir”. Sob este prisma, a meditação é uma cura para a alma, uma espécie de remédio para o espírito, uma catarse da mente, sobretudo quando visa a reflexão sobre a Palavra de Deus.
É a experiência que é proposta nestas páginas, marcadas pela passagem dos dias do ano. Quem elabora este particular "livro de horas" ou "breviário" é Ludwig Monti, um finíssimo intérprete da Bíblia a quem já dedicou muitas obras de grande qualidade e originalidade. O meu é agora o testemunho não só da amizade mas também da sintonia que me liga à sua pesquisa, é até mesmo expressão de uma admiração não retórica pelos seus escritos que venho acompanhando há tempo. Um emblema para todos é o estupendo comentário que ele dedicou ao livro dos Salmos em 2018.
Agora, portanto, temos em nossas mãos essas suas breves meditações que em si podem ocupar apenas alguns minutos de cada dia. No entanto, estão destinadas a deixar um rastro no espírito, a injetar um fermento em nosso pensar e agir, a produzir uma espécie de vacina contra a superficialidade, a banalidade, o lugar-comum. Outro grande da cultura ocidental como Montaigne em seus Ensaios alertava que "meditar é uma ocupação poderosa e plena: prefiro formar minha alma que a mobiliar".
O que confere substância a essas reflexões essenciais é, como dissemos, a Palavra de Deus através de uma citação mínima, quase um fulgor, um fragmento retirado de quase todos os 73 livros que compõem aquela biblioteca sagrada que é a Bíblia. Sempre para recorrer a outra voz de autoridade, é sugestivo o que Marcel Proust afirmava no "Em Busca do Tempo Perdido": "Ao citar um verso isolado, multiplica-se sua força atrativa". E é o que acontece nos textos quotidianos que seguirão, onde a lasca retirada das Sagradas Escrituras, ilustrada por um comentário mínimo, mas esclarecedor, se expande depois numa aplicação, por vezes sustentada também por vozes de autores contemporâneos.
Mas quem domina, sempre, é a Palavra divina, para a qual tanto o comentário como a aplicação concreta são incrustadas de referências das Escrituras, de modo que é a Bíblia que comenta a si mesma, numa espécie de palimpsesto ou marca d'água de referências constantes. O pensamento corre para um fulgurante versículo do profeta Jeremias: "Porventura a minha palavra não é como o fogo, diz o Senhor, e como um martelo que esmiúça a pedra?” (23.29). E assim como acontece com a maça de ferro que estilhaça a rocha fazendo voar faíscas, assim quem se deixa conquistar pela Palavra, semelhante a um fogo ardente, é ferido no coração e na mente: uma ferida que se torna uma fenda aberta sobre o mistério, sobre o eterno e o infinito de Deus.
Aquelas faíscas que se tornaram chamas podem também reunir-se numa tocha que – como sugeria o Salmista – é “lâmpada que ilumina os meus passos e luz que clareia o meu caminho” (119,105). Não é à toa que o título escolhido por Ludwig Monti é significativo de seu convite ao leitor, Caminhar na luz da vida. E aqui entra em cena outro aspecto que se revela constantemente nestas meditações, o seu ser "cotidianas", não só cronologicamente, mas também na sua substância. O Deus da Bíblia não é, de fato, um impassível "Motor Imóvel" aristotélico, relegado em seu céu dourado, mas escolhe caminhar com a humanidade, morar ao lado de suas casas, partilhar com eles - através do Filho - riso e lágrimas, desolação e esperança, vida e morte.
O profeta Isaías entrelaçava admiravelmente transcendência e imanência de Deus, eternidade e história, infinito e espaço com este oráculo divino: “Num alto e santo lugar habito; como também com o contrito e abatido de espírito” (57, 15). E João, no admirável hino de abertura do seu Evangelho, ao Logos, ao Verbo eterno, fazia abraçar a sarx, a "carne" da nossa finitude, da fragilidade e da morte (1,1.14). Assim, de modo análogo, quem se embrenha no caminho da vida deve ter sobre si o vento do Espírito soprando do alto, mas deve também avançar com os pés pisando as trilhas muitas vezes poeirentas e pedregosas da história. Os vislumbres meditativos deste “breviário” particular seguem, portanto, o apelo da tradição judaica que convidava a cantar “um canto todos os dias, um canto para cada dia”. Um sopro de louvor que sobe para o
Altíssimo, mas também uma súplica pelos sofrimentos, crises e expectativas cotidianas. No entanto, este deve ser sempre não um "solo", mas um canto coral, como acontece constantemente na Bíblia. Aqui gostaríamos de deixar a palavra ao próprio Monti numa das suas reflexões que se ancora numa frase do Evangelho: "onde se acham dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles" (Mt 18,20). À luz do contexto dedicado à correção fraterna, ele comenta: “Onde não se acham dois ou três em sinfonia, eu não estou, diz Jesus; isto é, eu estaria aí, estou sempre aí, mas se vocês não concordam entre si, não podem experimentar a minha presença. Pergunta séria: que sinfonia ou cacofonia faz ressoar toda forma de vida juntos? A oração é seu eco, às vezes fraco. Mas a vida deixa sempre um conjunto de sons no ar: perfumados ou malcheirosos; alegre ou venenoso; harmônicos ou desafinados. E então: sinfonia ou cacofonia?”.
De fato, nossa viagem pela história não é solitária, mas avançamos segurando a mão dos irmãos e das irmãs que vivem conosco o fluxo do tempo e que muitas vezes buscam uma mão que os sustente e não os deixe à beira da estrada.
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Quando a meditação se alimenta da Palavra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU