09 Fevereiro 2021
"A inversão mais chocante foi realizada por Jesus em sua concepção de amor. Este é o segundo elemento que extraímos do fluxo incessante de temas e palavras de Papini que, entre outras coisas, adota todas as potencialidades de um imenso arco-íris lexical italiano. Um amor que perdoa, redime, se doa, envolve também o inimigo e que não só é pregado, mas vivido por Cristo, especialmente na sua paixão e morte", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 31-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Giovanni Papini. 100 anos atrás, o autor publicou seu famoso livro sobre a figura de Cristo: mais do que uma biografia, foi um amplo afresco dedicado ao "vivente eterno". A tira de divulgação que acompanhava a última edição (esgotada) de 2007 da editora Vallecchi apresentava esta inscrição: “Papa Ratzinger: um texto entusiasmante”. A obra em questão era A História de Cristo, de Giovanni Papini, publicada com extraordinário sucesso há exatamente 100 anos, em 1921, pela mesma editora. O eco forte nasceu não só da fama do autor, sempre elevada, alegre, personagem provocador, polemista, escritor que amava a ênfase e a retórica, mas também porque uma dezena de anos antes havia publicado um panfleto (Le memorie d’Iddio de 1911) e, na revista L'Acerba, um artigo (Cristo peccatore de 1913) com um ataque violentamente insultuoso contra o nazareno, a ponto de merecer um processo por difamação à religião de Estado (do qual foi, porém, absolvido).
O apelo que então dirigiu aos seus leitores não permitia réplicas: “Homens, tornai-vos todos ateus! Sejam ateus agora! O próprio Deus, o vosso Deus, o Deus vosso filho vos pede isso com toda a sua alma!”. Portanto, pode-se compreender a surpresa quando Papini, em uma de suas viradas radicais, resolveu trilhar o caminho da conversão, testemunhando-o com as quase 500 páginas e 96 capítulos desta História de Cristo, confessando que na realidade “o ódio, às vezes, é apenas um amor imperfeito”. Assim, o antigo ódio se transformou em indignação ao ver "Cristo traído e, mais grave que qualquer ofensa, esquecido ... Daí o impulso de lembrá-lo e defendê-lo".
Para se ter uma ideia do estilo de Papini com toda a sua indignação, bastaria abrir uma página e ler: “Esta espuma lamacenta de humanidade imunda e ladra respira da latrina do coração o seu desprezo por quem a salva, se enfurece contra aquele que a perdoa, lança o seu opróbrio sobre Cristo que anseia por ela”. Não é uma biografia de Jesus, mas uma espécie de meditação proclamada e declamada sobre a vida e os ensinamentos do Homem-Deus, uma expiação aos brados pela blasfêmia anterior, um afresco em cores fortes da história daquele que é "o vivente eterno". De fato, “César, em seu tempo, fez mais barulho do que Jesus, e Platão ensinava mais ciências do que Cristo. Ainda estamos estudando o primeiro e o segundo, mas quem discute acaloradamente sobre César ou Platão? Cristo, por outro lado, está sempre vivo em nós. Ainda há quem o ame e quem o odeie ... E a raiva de muitos contra ele nos demonstra que ainda não morreu”.
Desse retrato literário pintado em grossas camadas de espátula, destacamos agora apenas duas características gerais, ainda que devamos reconhecer que – quando se começa a ler aquele texto - apesar do tom inflamado e do estilo paradoxal (ou talvez precisamente por isso), não se consegue largar a leitura. O primeiro traço está na própria essência de Cristo: “O maior Inversor é Jesus, o supremo Paradoxista, o radical e destemido Inversor. Sua grandeza está nisso. Sua eterna novidade e juventude”. E, na verdade, basta percorrer o Sermão da Montanha, apenas no seu início com as Bem-aventuranças (Mateus 5,1-12), para compreender essa inversão radical provocada pela mensagem do Evangelho não apenas na escala de valores codificados pela sociedade, mas também na religiosidade. Dos "detalhistas" de uma observância formalista ("Já foi dito aos antigos ... mas eu vos digo", Cristo repete seis vezes naquele Discurso). Agora, a inversão mais chocante foi realizada por Jesus em sua concepção de amor. Este é o segundo elemento que extraímos do fluxo incessante de temas e palavras de Papini que, entre outras coisas, adota todas as potencialidades de um imenso arco-íris lexical italiano. Um amor que perdoa, redime, se doa, envolve também o inimigo e que não só é pregado, mas vivido por Cristo, especialmente na sua paixão e morte. Mesmo os atos menores desse evento, que tem seu pico paroxístico no alto do Calvário, são lidos nesta chave. Por exemplo, a traição de Judas, com "aquele beijo, que é a mais horrível sujeira daquela boca que falou, no inferno da terra, as palavras mais paradisíacas", tem por parte de Jesus apenas o terno apelido de "amigo".
A Pedro, que também o traiu, Cristo sussurra-lhe com o seu olhar silencioso: “Perdoo os que me fazem morrer e também te perdoo, e te amo como sempre te amei”.
A convicção é constante: o “doce irmão quotidiano” Jesus é absolutamente necessário para nós porque a inteligência por si não nos salva, o progresso técnico não significa automaticamente civilização e humanidade, um vago teísmo ignora o fogo do Evangelho. “Todos precisam de ti, mesmo os que não o sabem, e os que não o sabem muito mais do que os que o sabem ... Quão grande, incomensuravelmente grande é a necessidade que existe dele”. O Jesus de Papini, porém, não é um Jesus envolto apenas pela luz divina, ele é capaz de brandir o chicote contra os mercadores do Templo, ele é "o Homem que esconde Deus em sua casca de carne, o Deus que envolveu sua divindade no barro de Adão": "Tu nos atormentas com toda a força do teu amor implacável", clamam os corações de quem o segue.
Para além do impulso temerário do caráter do escritor florentino, capaz de ódio invencível e amor indomável, deve ser enfatizado que sua conversão não ocorreu numa estrada fulgurante para Damasco. Foi, aliás, elaborada através de uma reflexão robusta que durou de 1919 a 1921, após a tragédia da guerra que ele havia invocado e celebrado. Entraram em cena os acontecimentos mais díspares, como a primeira comunhão das filhas, a fé serena da esposa, os diálogos com o fiel fervoroso Domenico Giuliotti e, sobretudo, um percurso pontilhado de leituras: de Agostino a Pascal, de Ignácio de Loyola a Francisco de Sales, dos místicos espanhóis e alemães até à Imitação de Cristo e, claro, aos Evangelhos. A conversão não foi, entretanto, para ele, o desembarque em um porto seguro onde, com seu temperamento, jamais teria atracado o navio de sua vida. Em vez disso, foi um relançamento em alto mar, para a descoberta insone de outras ilhas e terras desconhecidas, uma escalada ao longo de cumes íngremes em busca de horizontes mais amplos, como evidenciado por sua produção subsequente que continuou até sua morte em 1956 com a idade de 75 anos.
Uma observação marginal. Afirmamos que o livro de Papini não é uma biografia de Cristo. Obviamente, nem o são a Vida de Jesus elaborada por Hegel em 1795 (publicada apenas em 1907), nem a de Ernest Renan (1863), curiosa mistura de racionalismo e mística, de filologia e fantasia poética, nem aquela de François de Mauriac (1935) , nem Volete andarvene anche voi? de Luigi Santucci (1969) e nem mesmo o antípoda negativo O Evangelho segundo Jesus Cristo de José Saramago (1991). Todas essas e muitas outras obras, a partir da Vita Jesu Christi de Ludolfo da Saxônia (1474), reeditada 88 vezes, até a de um famoso biblista como Giuseppe Ricciotti em 1941, não conseguem respeitar os cânones da biografia histórica em sentido estreito, devido à qualidade particular das fontes evangélicas indispensáveis e quase únicas que unem inseparavelmente história e fé.
É, portanto, possível compor um texto teológico de cristologia, bem como preparar um exame crítico de muitos dados sobre o Jesus histórico presentes nos Evangelhos (ver, por exemplo, a colossal pesquisa do estadunidense John Meier, Um judeu marginal, até agora em cinco amplos volumes traduzidos pela Queriniana). O caminho é menos fácil para quem desejaria propor uma biografia completa de Jesus Cristo em sentido tradicional. Ficamos, portanto, tentados a apontar para eles esta confissão de um dos mestres da exegese católica do século passado, o dominicana francês Marie-Joseph Lagrange: “Desisti de propor ao público uma vida de Jesus no sentido comum da expressão para deixar os Evangelhos falarem mais, por si sós insuficientes como documentos históricos para redigir uma história de Jesus Cristo ... Os Evangelhos são a única vida de Jesus Cristo possível de ser escrita, desde que se consiga compreendê-los adequadamente”.
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Meditação sobre o Homem-Deus. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU