28 Outubro 2022
“Não acho que aquilo que está sendo chamado de 'bolsonarismo de raiz' seja o traço dominante da nossa nacionalidade. Todos os adjetivos que caracterizam as figuras mais marcantes deste grupo, à imagem do 'mito', ou seja: o racismo, a misoginia, o ódio aos LGBTQUIA+, o desprezo pelos pobres ou pelos nordestinos, a carolice hipócrita, a desonestidade intrínseca disfarçada de ética contra a corrupção, enfim, um sem-número de outras mazelas morais, não são a marca da maioria dos que hoje apoiam Bolsonaro”, escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971, fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia, AS-PTA, em 1983, membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016 e militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.
Segundo ele, “o que teremos de volta com a saída de Bolsonaro é algo muito singelo e fundamental. Por maiores que sejam as dificuldades que Lula e os partidos que ele reunir para governar terão para enfrentar a série de bombas deixadas por Bolsonaro, teremos a possibilidade (não a garantia!) de desarmar ou começar a desarmar as fraturas profundas que este governo deixa para trás. Refazer as instituições da República, fortalecer a democracia e garantir as liberdades fundamentais vai ser uma tarefa gigantesca, sobretudo porque terá que ser enfrentada junto com as imensas demandas sociais que se acumularam”.
Não, eu não idealizo o Brasil anterior à noite sombria em que o bolsonarismo caiu sobre nós. Também não creio que ele tenha sido apenas um infeliz acidente no percurso da nossa democracia. Não acho que derrotá-lo no próximo dia 30 vai nos trazer de volta os bons tempos em uma terra idílica onde das “fontes jorravam leite e mel”. Aliás, nunca entendi esta imagem bíblica. Afinal de contas, a história mostra que já nos tempos do êxodo e da chegada a Canaã, os hebreus conheciam a cerveja e o vinho. Quem redigiu o livro sagrado devia ser abstêmio.
O Brasil tem uma história que não é ensinada nas salas de aula. A terra de Santa Cruz foi “descoberta” pelos bravos navegadores portugueses (cuja imagem não se encaixava na dos personagens das piadas de português tão constantes no meu tempo de guri). Seria uma terra quase desabitada onde tribos selvagens que comiam carne humana passavam o tempo na ociosidade, quando não estavam se entrematando. Nos bancos escolares não sabíamos dos mais de 5 milhões de nativos que aqui viviam integrados de forma sustentável com a natureza. Não nos disseram que a terra “descoberta” e apropriada pela coroa portuguesa foi, de fato, conquistada de forma violenta pelos recém-chegados em vários séculos de extermínio. Ficamos sabendo que os conquistadores deram início à predação da rica fauna e flora que encontraram, extraindo pau-brasil para as indústrias de tinturas europeias e levando araras, papagaios e outras lindas aves para alegria das damas e cavalheiros das cortes.
O país foi sendo ocupado por expedições, apresentadas como heroicas empreitadas dos bandeirantes, cujo objeto era “prear” índios para fazê-los trabalhar nos assentamentos do litoral. E ficamos sabendo que estas “entradas” pelo interior do país (que levaram à ocupação de uma área muito maior do que a designada pelo papa no tratado de Tordesilhas) acabaram em um impasse, porque os indígenas eram “indolentes e não se deixavam dominar facilmente”. Esta curta frase que ficou na minha memória das aulas de história do Brasil é um resumo do genocídio gigantesco que marcou a colonização.
Com os indígenas sumindo pelo interior selvagem à medida que os ocupantes se apropriavam de suas terras, a carência de mão de obra gerou a segunda chaga da nossa história, o comércio de escravos negros trazidos da África, para trabalhar até a morte no segundo empreendimento econômico dos colonizadores: a cultura da cana de açúcar. As vastas terras disponíveis pela expulsão dos povos originários foram tratadas do mesmo modo que as matas e os trabalhadores: prevaleceu um modo predatório de lidar com o solo. Preocupados em extrair o máximo de lucros no que muitos consideram o primeiro modelo capitalista de produção no mundo, os colonizadores não se importavam com a predação dos solos.
Quando a produção caía, eles buscavam novas terras e seguiam adiante. O nosso agronegócio moderno guarda algo desta raiz até hoje. O avanço na exploração das terras para as sucessivas culturas de exportação que foram se estabelecendo foi deixando um rastro de destruição ambiental cuja marca mais evidente é o desaparecimento de quase 90% do bioma Mata Atlântica, o primeiro a sofrer da fúria destruidora dos conquistadores. Como o país é grande e as terras vistas como infinitas, a agricultura predatória foi se espalhando pelos interiores, século após século.
Foram quantos os negros escravos que aqui chegaram? Cálculos muito aproximados falam em 6 milhões, sem contar os muitos, talvez um terço dos que aqui chegaram, e que morreram de forma atroz nos navios negreiros. Nos foi vendido nas escolas que os negros já eram escravos na África e que o nosso escravismo era (relativamente) benévolo. A miscigenação dos portugueses com os indígenas e os negros nos foi apontada com a “prova” de que aqui não havia racismo. Esqueceram que isto provava outra coisa, o abuso das mulheres nativas ou africanas pelos brancos que exploravam estas raças.
A libertação dos escravos nos foi ensinada como um ato de bondade de uma princesa, apesar da escravidão no Brasil de ter durado mais tempo do que em qualquer outro lugar do mundo. Também não nos contaram o que aconteceu com os libertos. Só ficamos sabendo que eles foram sendo substituídos pelos imigrantes europeus, desde os últimos anos do século dezenove. Lançados na miséria pelo ato da libertação os negros tiveram duas alternativas.
Uns buscaram terras para plantar e sobreviver, mas uma rígida legislação de proteção aos latifundiários os levou para as margens mais remotas das áreas ocupadas, desbravando as matas ainda muito importantes na paisagem brasileira. Seus descendentes são as comunidades quilombolas que foram “descobertas” nos anos dos governos do PT. A maioria foi para as cidades buscar um modo de vida precário em um mundo para o qual não estavam minimamente preparados. Pouco a pouco e com muito sofrimento foram sendo absorvidos nos serviços e empreendimentos onde a qualificação era pouco cobrada. O Brasil de hoje, apesar de progressos sociais relativos no século vinte e neste início do século vinte e um, é ainda reflexo desta história de discriminação e opressão. E o racismo segue sendo uma força ideológica que impregna as relações entre as pessoas de diferentes matizes de pele.
Na minha cultura, misto da herança escravista com tinturas do marxismo que fui aprendendo aos poucos, não havia racismo no Brasil. Ou, pelo menos, não era um fato dominante da nossa formação cultural e social. Tive um choque de realidade por ocasião de uma conferência na Universidade da Califórnia em Los Angeles, em 1973, se não me engano. Estava fazendo uma longa viagem por mais de 20 estados dos EUA, denunciando a ditadura militar. No momento dos debates me foi perguntado sobre o racismo no Brasil e eu respondi, como num manual da esquerda da época, que no nosso país o que dominava era a luta de classes e que, como a grande maioria de negros e pardos era constituída por trabalhadores, a contradição era entre patrões e empregados ou entre ricos e pobres. Um brasileiro do público me perguntou se, nesse caso, não haveria racismo entre os trabalhadores brancos e os não brancos e eu disse que sim. Ao que ele me perguntou se eu conhecia uma peça clássica da cultura popular nordestina, o desafio do cego Aderaldo e do Zé Pretinho, dois famosos cantadores da região. Tive que admitir a minha ignorância e meu interlocutor apenas me disse que o texto do desafio, vendido aos milhões de exemplares em literatura de cordel, provava o erro da minha tese. O debate parou aí, mas eu fiquei com a pulga atrás da orelha e fui procurar este cordel. Os dois cantadores eram duas figuras típicas do povão sertanejo, não pertenciam a duas classes antagônicas. Mas as agressões racistas do cego contra o Zé eram brutais.
Hoje se fala em racismo estrutural e o conceito é bem revelador do tamanho da nossa herança escravista. O que é novo, nos tempos de bolsonarismo, é que tudo isto veio à tona de forma agressiva. O que antes eram piadinhas maldosas passou a ser uma afirmação explícita de discriminação racial, pior ainda, de ódio racial.
Ou seja, não estou como Casimiro de Abreu, recitando o “ah, que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais”... O Brasil em que fui criado está longe de ser um mar de felicidades embora, até pela classe social em que nasci, minha quota de felicidade foi muito maior do que a da imensa maioria dos meus conterrâneos.
Cresci aprendendo que o brasileiro é um povo cordial, alegre e fraternal. A violência que fazia parte do quotidiano do chamado “andar de baixo”, em particular aquela dirigida contra os negros, não estava no meu radar de garoto da classe média da zona sul do Rio de Janeiro. Mesmo a violência política não me foi apresentada por um longo período. Nasci em 1946, logo após do fim da ditadura de Getúlio Vargas e este interregno democrático da constituição de 1946 durou por toda a minha infância e adolescência. Tivemos crises políticas e militares, mas aqueles 18 anos foram os mais longos de liberdades democráticas da República, até se iniciar a segunda metade dos anos 80.
Entrei na universidade um mês antes do golpe de 1º de abril de 1964 e comecei a aprender o significado de liberdade e de repressão. Por quatro anos eu atuei no movimento estudantil e fui eleito presidente da UNE em 1969, já sob um regime muito mais duro após o AI-5. Clandestinidade, prisão e tortura e o assassinato de companheiras e companheiros, amigos e amigas foram o meu batismo de fogo. Da minha diretoria da UNE, quatro foram mortos e seus corpos nunca foram entregues a suas famílias. Outros quatro foram presos e barbaramente torturados, mas sobreviveram e foram libertados após anos de cadeia. Fui libertado em troca do embaixador suíço (uma ironia, sou meio suíço, por parte de pai) sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária. Banido pelos militares fui viver no exílio por quase nove anos.
Sim, o Brasil teve uma história política, desde a proclamação da República, onde as liberdades sempre foram relativas, mais para uns do que para outros, e os momentos de plena vigência da democracia foram mais hiatos do que contínuos.
Sendo assim, qual o país que eu quero de volta?
Não acho que aquilo que está sendo chamado de “bolsonarismo de raiz” seja o traço dominante da nossa nacionalidade. Todos os adjetivos que caracterizam as figuras mais marcantes deste grupo, à imagem do “mito”, ou seja: o racismo, a misoginia, o ódio aos LGBTQUIA+, o desprezo pelos pobres ou pelos nordestinos, a carolice hipócrita, a desonestidade intrínseca disfarçada de ética contra a corrupção, enfim, um sem-número de outras mazelas morais, não são a marca da maioria dos que hoje apoiam Bolsonaro.
Para começar, as pesquisas sobre o voto no primeiro turno apontaram para um fato importante: metade dos eleitores de Bolsonaro não votaram por aderir ao energúmeno, mas em oposição ao PT e à Lula. Isto reduz a massa de bolsominions a 22% do eleitorado. E mesmo entre esses, há que se distinguir entre os arrastados pelo terrorismo religioso e os defensores de todos os horrores assumidos pelo energúmeno. Não acredito, chutando, que estejamos lidando com mais do que uns 15% de gente realmente hedionda. É muita gente, é claro, mas é uma minoria que, em condições normais, estaria na margem do jogo político.
O preocupante neste fenômeno bolsonarista é o fato de que 22% do eleitorado tenha preferido votar em um personagem tão abertamente sinistro, por oposição ao PT e ao Lula. Sim, há o outro fenômeno, a enorme influência das redes sociais na formação da opinião pública e a dominância do bolsonarismo neste tipo de mídia. Isto explica, em parte, o problema, já que o bombardeio de mentiras acabou por criar uma bolha de “crentes”, dispostos a concordar com todo tipo de desqualificação contra o PT e o Lula.
Não basta dizer que a grande mídia e a operação lava jato geraram o monstro. Seria importante, para bem do futuro do país, que pudéssemos analisar friamente o processo que nos trouxe de 2013 até aqui. Não podemos ficar em uma narrativa estritamente persecutória de vitimizar os governos do PT submetidos a uma ofensiva neoliberal que teria fabricado todas as acusações que até hoje colam na imagem do partido e do ex-presidente. Sim, houve exploração política de uma série de fatos, admitidos pelo próprio Lula em entrevista com a rede Globo. Os fatos existiram e a sua negação por todo este tempo por Lula e pelo PT foram gerando, com a contribuição da mídia, um sentimento que hoje faz parte da nossa situação crítica: o antipetismo.
Ganhar as eleições é um ato de rejeição do bolsonarismo e tudo que ele significa, inclusive a agonia final da democracia brasileira. Inclusive a agonia final das nossas florestas e um forte impulso no aquecimento global. Inclusive a divisão do país entre metades que se odiarão por muito tempo.
A pesquisa citada anteriormente indicou que 46% dos eleitores de Lula no primeiro turno votaram sobretudo contra Bolsonaro. Ou seja, 22% do eleitorado votou em Lula não porque apoie suas propostas, mas porque prefere que Bolsonaro não ganhe. Ou seja, o apoio direto a Lula e ao PT representa 26% do eleitorado. Se é verdade que o PT e o Lula, ao longo de todas as eleições desde os anos 80, tinha uma adesão de 30% do eleitorado como ponto de partida, houve alguma fritura nestes últimos anos.
Para garantir esta eleição Lula está correndo atrás dos outros votos antibolsonaro, os que ele não amealhou no primeiro turno. E vai precisar deles para levar e para governar. É importante que Lula e o PT não se esqueçam, embalados pela espetacular demonstração de vigor e até de adoração demonstrados nas inúmeras megamanifestações em todo o país, que não só o seu voto próprio não é majoritário como o congresso eleito vai ser dominado por vários níveis de direitismo, desde o meramente oportunista (Centrão) até o facistoide (a base bolsominion eleita por indicação do mito).
O que teremos de volta com a saída de Bolsonaro é algo muito singelo e fundamental. Por maiores que sejam as dificuldades que Lula e os partidos que ele reunir para governar terão para enfrentar a série de bombas deixadas por Bolsonaro, teremos a possibilidade (não a garantia!) de desarmar ou começar a desarmar as fraturas profundas que este governo deixa para trás. Refazer as instituições da República, fortalecer a democracia e garantir as liberdades fundamentais vai ser uma tarefa gigantesca, sobretudo porque terá que ser enfrentada junto com as imensas demandas sociais que se acumularam.
O que eu realmente quero de volta é a esperança de que poderemos superar tudo o que de sinistro se abateu sobre nós com Bolsonaro no poder. Não espero mágicas do governo Lula, mas espero que ele mostre o seu melhor como grande articulador e como ser humano, atraindo mais do que repelindo, somando mais do que dividindo.
Quero um país onde possamos divergir sem nos odiarmos, onde o povo possa se organizar para defender seus direitos tão espezinhados, onde a liberdade seja para todos os que a respeitarem. Quero tempo para podermos lutar pelas coisas essenciais para o nosso futuro: que modelo de economia é melhor para o povo? Como garantir um futuro viável para o ser humano neste planeta ameaçado de morte pela cobiça e pela ignorância? Como vamos distribuir a riqueza de forma a que todos tenham o essencial para viver com dignidade e com direito à felicidade? Como criar uma sociedade baseada na fraternidade e na cooperação?
Comecemos por votar Lula 13.
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