18 Outubro 2022
Bispos. Publicadas as obras de Marcelo de Ancira e Eusébio de Vercelli, que viveram no século IV, foram protagonistas das polêmicas nascidas das ideias de Ário.
O artigo é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do ex-Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 16-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
The intolerable wrestle with words and their meaning. Assim, nos Quatro Quartetos Thomas S. Eliot evocava a luta que o poeta enfrenta com as palavras, uma luta que se torna uma longa guerra nos comentaristas, filólogos, estudiosos. É o que acontece, por exemplo, em algumas edições críticas sobre dois personagens que viveram no mesmo período histórico e ambos em batalha com um adversário comum. Estamos falando de Marcelo, bispo de Ancira (atual Ancara), e de Eusébio, bispo de Vercelli, que morreram pouco depois de 370, cada um a seu modo, ator na polêmica que explodira 50 anos antes de um padre de Alexandra do Egito, Ário.
Este tornou-se famoso por sua doutrina trinitária que desencadeou uma das mais graves crises do cristianismo daquela época, com desdobramentos por séculos e com pesadas implicações políticas, devido às ingerências imperiais e aos conflitos eclesiais locais. Em poucas palavras, ele afirmava que na Trindade somente o Pai pode ser considerado Deus, não gerado nem criado, eterno e imutável, enquanto o Filho foi criado, tornando-se o instrumento divino na obra da criação, "primogênito de toda a criação", como escrevia São Paulo (Colossenses 1,15), interpretado por Ário à luz de sua concepção segundo a qual Cristo "não teria existido se Deus não quisesse nos criar".
Neste ponto, só nos resta introduzir Marcelo, de quem chegou até nós uma carta completa endereçada ao Papa Júlio I (337-352) que o hospedou em Roma com outro inflexível tutor da ortodoxia e do Concílio de Niceia (325), isto é, Atanásio de Alexandria, 128 fragmentos e um texto Sobre a Santa Igreja. Marcelo queria salvaguardar a unicidade divina, mas não à custa da divindade do Filho, que é gerado e se torna Filho de Deus não ab aeterno, mas no momento da encarnação no seio de Maria. No início existe, portanto, uma Mônada divina (o Pai), que depois se expande na Tríade com a encarnação de Cristo e com o Espírito Santo, para depois retornar à Mônada no fim dos tempos, uma vez cumprida a história da salvação.
No Credo niceno-constantinopolitano, que os fiéis rezam todos os domingos na Missa, contra a tese de Marcelo - que defendia o retorno final a uma única Mônada divina - é proclama-se que "o reino de Cristo [o Filho] não terá fim", permanecendo assim a Trindade. No entanto, nenhum (ou quase) daqueles fiéis e o próprio sacerdote sabem quem seja Marcelo de Ancira e sua contestada tese trinitária.
Quem quisesse embrenhar-se nessa densa floresta teológica, à cuja sombra se acendem flamejantes fogueiras de polêmicas, agora tem à disposição uma edição crítica muito detalhada comentada (com texto grego ao lado) do punhado de escritos de Marcelo. O estudioso chileno Samuel Fernàndez a preparou com uma imponente introdução de mais de cem páginas na qual organiza um mapa da trama da reflexão fragmentária daquele teólogo segundo as etapas da história da salvação: a existência eterna de Deus, a encarnação e a história que atinge a meta escatológica final (para o profano, a premissa de Emanuela Prinzivalli é preciosa).
Marcello di Ancire, Opere, Città Nuova, p. 316, €32 (Foto: Capa | Divulgação)
Ainda mais exterminado é o aparato que acompanha o outro autor a que aludimos, Eusébio de Vercelli. Seu epistolário e os antigos testemunhos sobre ele (São Jerônimo, Santo Hilário de Poitiers, Santo Ambrósio de Milão, Rufino de Aquileia e Máximo de Turim) ocupam a edição organizada por Renato Uglione para o "Corona Patrum Erasmiana". Cerca de 90 páginas com texto em latim ao lado, enquanto as outras quase trezentas são ocupadas por introduções, comentários, bibliografias e índices. É um extenuantes wrestle - para continuar na metáfora eliotiana - com todos os componentes até microscópicos daquele punhado de textos.
De origem da Sardenha, após uma estadia em Roma, Eusébio foi nomeado bispo de Vercelli em 345 e permaneceu no cargo até o Concílio de Milão em 355, onde revelou sua alma antiariana, opondo-se vigorosamente à condenação de Atanásio, o bispo de Alexandria citado acima, orgulhoso defensor da ortodoxia. O imperador Constâncio II, interferindo nos atos daquela assembleia, condenou ao exílio Eusébio que foi relegado à Palestina, em Citópolis, atual Bete-seã. Mas sua "via sacra" teria outras estações, primeiro na Capadócia (Turquia) e depois na Tebaida egípcia.
Mas também os imperadores morrem e assim aconteceu com Constâncio II em 361. Eusébio pôde assim retornar a Vercelli para uma segunda fase de seu ministério episcopal (363-371). O corpus mais substancial do epistolário diz respeito aos acontecimentos do Concílio de Milão e inclui sete cartas dirigidas a ele por vários atores daquele acontecimento, enquanto três são do próprio Eusébio, a primeira a Constâncio II, outra muito extensa aos presbíteros e fiéis de Vercelli do exílio de Citópolis e a terceira ao bispo da cidade espanhola de Elvira, ele também um claro opositor dos hereges arianos.
Uma nota à margem merece na cidade piemontesa, o admirável evageliário do Codex vercellensis (634 páginas), atribuído pela tradição ao próprio bispo, mas o fruto mais provável do seu mosteiro. Sua importância para a crítica textual se deve ao fato de oferecer uma versão latina do século IV anterior à Vulgata de São Jerônimo.
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A batalha contra os arianos. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU