17 Outubro 2022
“Ultimamente me sinto mais livre para falar nas igrejas do que nas escolas de psicanálise”: palavras de Massimo Recalcati, psicanalista, ensaísta e dramaturgo. "Portanto, me aproprio da liberdade que me é concedida neste lugar para abordar um tema espinhoso". O tema é o do sagrado do ponto de vista da psicanálise, o lugar é a Basílica de Santa Maria em Montesanto, na Piazza del Popolo, também conhecida como "a igreja dos artistas", onde o reitor Don Walter Insero organizou uma série de encontros dentro do projeto "Uma porta para o infinito: o homem e o absoluto na arte".
A reportagem é de Lorena Crisafulli, publicada por L'Osservatore Romano, 15-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O encontro do qual Recalcati participou foi promovido pela Sociedade Romana de Psicanálise e pelo centro Jonas Roma. Graças ao projeto, "realizamos também instalações artísticas", explica Monsenhor Insero. O terreno comum é a via da beleza, onde todos, artistas, crentes e não crentes, dialogam, se conhecem e caminham juntos. É parecida com a ideia que o Papa Bento XVI lançou no Pátio dos Gentios, como um espaço onde é possível confrontar-se através de uma linguagem comum.
Com Valentina Galeotti, presidente da Sociedade Romana de Psicanálise, o encontro foi pensado para criar um terreno de diálogo entre dois mundos aparentemente distantes: sagrado e psicanálise. É bom receber um público diferente em uma igreja que, como acontecia no passado, abre suas portas e se torna um lugar de reflexão, onde os homens em busca podem se questionar sobre a verdade, o bem, sobre o homem, sempre em comparação com o Absoluto”, conclui Insero.
A psicanálise, portanto. Uma doutrina, lembrou Recalcati em sua apresentação, "que nasceu de Freud, declaradamente ateu, filho da cultura iluminista e do cientificismo positivista, que não poupou críticas severas à religião, assim como fez Lacan apesar de sua formação católica". Segundo Recalcati, dada a natureza tradicionalmente ateia da psicanálise, existe uma leitura muito redutiva do sentimento religioso por parte de Freud, segundo a qual a religião seria o fruto de superstições, neuroses, fanatismos, delírios, e remeteria a uma atitude infantil de fuga da dureza da vida: "O homem religioso seria um homem que, como acontece em nossa infância, em vez de enfrentar abertamente o caráter finito da existência, inventa ilusões, das quais a religião seria a maior, porque imagina um mundo além do nosso capaz de redimir as penas, um mundo em que os pobres, os abandonados, os últimos, sejam compensados. Deus, segundo Freud, nada mais é do que a representação, a sombra imaginária do pai idealizado da nossa infância na qual encontrávamos abrigo quando crianças; segue-se que o sentimento religioso se basearia no medo da vida e da morte, no temor de Deus”.
No entanto, afirma Recalcati, o erro subjacente a essa ideia reside em ter feito "uma leitura religiosa da religião". "Nos Evangelhos e na Torá não existe uma crítica ao ateísmo, o objeto de crítica é a religião: o dogmatismo, o fanatismo, o culto dos ídolos, a loucura da religião humana em pensar-se Deus, a deificação do homem que pretende ser Deus. Aqui está o delírio religioso que acompanha toda forma de fundamentalismo, ao qual a Bíblia faz uma crítica extremamente severa”.
Mas, explica o psicanalista, existe outra forma de entender o sentimento religioso que não é fanático, temeroso da morte ou infantil, mas é algo que se origina da beleza da criação, de seu esplendor, do sagrado que está presente em cada coisa, um modo em que a oração é a forma mais radical de agradecimento.
"O Eclesiastes, o livro mais implacável da Bíblia, insiste que a vida é um sopro, vaidade destinada a desaparecer como vapor – "tudo vem do pó e tudo retorna ao pó" –, mas enquanto nos diz que nossa existência é finita, mostra-nos que no pó há luz e é aí que se encontra o sentimento religioso: vivenciar o pó como algo luminoso. Então religião não tem mais a ver com fuga da realidade e a superstição, mas é, como diria Nietzsche, "fidelidade à terra".
São Francisco de Assis, para quem a pobreza é o sinal do reconhecimento de que a riqueza está em outro lugar, representa um exemplo extraordinário de um sim à riqueza da vida”.
Durante sua lectio magistralis na "igreja dos artistas", Recalcati identificou duas formas opostas de entender o âmbito espiritual nas obras artísticas: uma abstrata, derivada de Kandinsky, pela qual a arte se torna emancipação da realidade material das coisas, uma representação do que não é visível e outra, anti-Kandinsky, que une pintores como Caravaggio, Van Gogh, Congdon e Claudio Parmiggiani, para quem a questão está em tornar o invisível "sensível", ou seja, dar-lhe corpo, inseri-lo na matéria. "Não se pode pensar no espiritual senão a partir de sua encarnação, esse é o cristianismo de Parmiggiani", aponta o psicanalista.
Nesse sentido, a arte não é mais libertação da realidade, portanto abstracionismo, mas imersão nela, e a tarefa do artista é forçar seu próprio caos interno a se tornar forma. "Não se trata mais de emancipar a luz da sombra, como nos ícones bizantinos, onde o ouro era um sinal da existência de Deus, mas de pensar, como faz Parmiggiani, que a sombra é o próprio sangue do qual é feita a luz". Recalcati mostra a imagem de uma obra do artista "A lume spento" (1986), onde, ao lado de uma lamparina a óleo apagada, aparece o rosto de uma estátua de gesso que evoca a "Canção do amor" de Giorgio de Chirico, iluminada em parte por um raio de luz vindo de algo que não brilha mais e que ainda é capaz de iluminar o olhar.
Diante de uma plateia silenciosa, cada vez mais absorta em suas sugestões, Recalcati ilustrou a "poética do pó" do próprio Parmiggiani, "cujo esforço", ressaltou, "é demonstrar que, por um lado, o pó é, como diz o Eclesiastes, sinal inequívoco do caráter transitório de nossa presença na Terra, mas, por outro lado, representa o resquício indissolúvel dessa presença”. É o que acontece nas “Delocazioni” do artista, obras de sombras e pegadas realizadas com o uso de pneus em chamas, que, ao serem consumidos, liberam uma fumaça densa em alguns objetos colocados nas paredes: garrafas, livros, lâmpadas... A fuligem imprime, desenha, transfere seus contornos e, quando os objetos são retirados das paredes, ficam vestígios visíveis de sua "ausência".
Através do método das "Deslocações", o artista revive o trauma do incêndio de sua casa vermelha de infância, dando forma àquela memória antiga e explicitando-a em todas as obras posteriores inspiradas naquela primeira visão fulgurante. É um percurso de remoção semelhante ao que na psicanálise permite trazer à tona a marca singular de cada indivíduo. Parmiggiani, concluiu Recalcati", "demonstra que os seres humanos são, sim, feitos de pó, mas ao contrário daquele do Antigo Testamento, esse pó permanece e se torna "cinzas de luz". A obra de arte torna-se, portanto, uma espécie de fogueira perpétua que queima e ilumina abaixo da forma acabada, assim como estrelas que morreram séculos atrás continuam a lançar luz no céu, uma luz “ícone da ausência”.
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‘Cinzas de luz’. Pergunte ao pó. O sagrado e a psicanálise, segundo Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU