03 Outubro 2022
"Em nosso tempo, o modo de viver a fé intimista no tipo de Deus que eu quero, que age conforme meus interesses, infelizmente, recolocou a religião na pauta do dia. Nesse mundo digital, ela nunca esteve tão em voga, e com ela a volta de uma fé conservadora, que se apega ao tradicional e não à libertação da dor que aflige milhões de seres humanos, brasileiros e famintos por um pedaço de pão e justiça social. Muitos insistem que essa fé libertadora está fora de moda. Lamentável. Não é esse o proceder do Jesus histórico e o da fé", escreve Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre Franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos.
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Hb 1,2-3; 2,2-4. Trata-se de uma profecia. Nesse dia 2 de outubro, quando o povo brasileiro é chamado a exercer sua cidadania por meio do voto, a profecia de Habacuc nos desinstala com o discurso sobre a fé. O que é a fé? Que tipo de fé praticamos? Tradicional ou comprometida com a justiça social? O que Deus tem a ver com essa situação?
Habacuc foi um profeta que viveu por volta dos anos 600 antes de Cristo, na região Sul de Israel, chamada de Judá. O povo de Deus havia passado pelos governos de duas monarquias. Uma que controlava o Norte, chamada de Israel, e que foi invadida e destruída pelo império assírio, por volta do ano 722 a.E.C., e outra, no Sul, Judá, onde atuou Habacuc. Nessa época, o povo estava cansado do sofrimento, das más atuações de seus governantes. Os impostos eram altos, a carestia tomava conta. Um rei, chamado de Josias (640-609 a.E.C.), havia proposto uma reforma a partir da Lei deuteronomista, mas nada tinha mudado. Habacuc até acreditou em Josias, mas percebeu que esse não era o caminho de fé. Ele perdeu a esperança na reforma deuteronomista, mas continuou acreditando que a fé em Deus venceria o sofrimento e traria a salvação para o seu povo, que Deus viria em seu socorro. Ele não falharia (2,1-3; 3,15.19).
Realista, contestador, lamentador e cheio de esperança em um novo governo, Habacuc, como Jó, estava numa profunda crise de fé. Judá vivia sob a dominação do Império neobabilônico, a quem devia pagar muitos impostos. A fome era grande.
Habacuc denunciou a não observância da Lei judaica (1,4); os juízes corruptos (1,4); o roubo (2,9-10); a política injusta (2,12-14); a idolatria (2,18-20); os impérios egípcio (1,2) e babilônico (1,12-17). Ele conclamou o povo a ter confiança na justiça humana e na força libertadora do Senhor (3). Para ele, a salvação viria pela fé e não pela observância da Lei (2,4). São Paulo, mais tarde, retomou essa ideia de Habacuc, ao propor a questão da “justificação pela fé” (Rm 1,17; Gl 3,11). Não basta a fé, são necessárias obras.
Nesse contexto, Habacuc se dirigiu a Deus, clamando por uma solução diante da grande crise vivida pelo seu povo: violência, iniquidades, maldade enraizada, prepotência, discórdia, fome, ações autoritárias em nome de Deus, manipulação da fé. A sabedoria popular expressou esse sentimento em Pr 29,2, quando dizia: “Quando um ímpio, um abominável governa, o povo geme!”
A profecia de Habucuc é real para nós, hoje? Ou é mera coincidência? Não. Assistimos a um show de discursos vazios em nome da fé, com discursos sem conhecimento da Doutrina Social da Igreja Católica, a qual nos convoca a ter uma fé comprometida com a justiça social. Em nosso tempo, o modo de viver a fé intimista no tipo de Deus que eu quero, que age conforme meus interesses, infelizmente, recolocou a religião na pauta do dia. Nesse mundo digital, ela nunca esteve tão em voga, e com ela a volta de uma fé conservadora, que se apega ao tradicional e não à libertação da dor que aflige milhões de seres humanos, brasileiros e famintos por um pedaço de pão e justiça social. Muitos insistem que essa fé libertadora está fora de moda. Lamentável. Não é esse o proceder do Jesus histórico e o da fé.
“Senhor aumenta a nossa fé”, pediram os apóstolos a Jesus (Lc 17,5). Habacuc diz a Deus: “Até quando, Senhor, pedirei socorro e não ouvirás, gritarei a ti: ‘Violência!’, e não salvarás?” Jesus respondeu que bastava a fé do tamanho de um grão da mostarda, cultivado na Palestina. Uma das respostas de Deus a Habacuc foi: “Quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (Hb 2,2-4).
Para nós cristãos, a fé é a nossa adesão a Jesus, vivida em comunidade, na Igreja, na liturgia e no comprometimento com a justiça social. Fé é um movimento orante que transforma nossas vidas. Ela tem relação com a tradição e a justiça. O Papa Francisco, falando aos jornalistas, no Canadá, em 29 de julho passado, sobre os que insistem em retomar uma Igreja tradicionalista, disse: “Uma Igreja que não desenvolve seu pensamento de maneira eclesial é uma Igreja que anda para trás. Esse é o problema de muitos dos que afirmam ser tradicionalistas. Eles não são tradicionalistas, são ‘atrasados’, vão para trás, sem raízes.” Já Dom Joaquim Mol, da Arquidiocese de Belo Horizonte, como Habacuc, elevou a Deus a seguinte prece: “Jesus, tu és nossa esperança e por isso esperarmos em Ti. Ajuda-nos a banir da política todo mau político, pela força do voto consciente e cidadão. Não queremos governantes arrogantes, excludentes, violentos, que rechaçam os pobres, os negros e as mulheres, os indígenas e os favelados; que negam a ciência, usam o nome de Deus em vão, e fazem tão pouco caso da dor de tantas pandemias; destroem o meio ambiente e falsificam a verdade. Que essas eleições sejam marcadas pela paz e transparência.” Amém! Fé e esperança sempre!
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Fé, injustiça social, manipulação do sagrado e a resposta de Deus na inspiração de Habacuc 1,2-3; 2,2-4 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU