De fome, o menino chamou a Polícia. Artigo de José de Souza Martins

Água e farinha vira alimento para quem tem fome | Foto: José Cícero - Agência Pública

23 Setembro 2022

 

"O menino não é um agente comunista, do imaginário repressivo dos que se apoderaram do país. Subversivos são a fome, o desvalimento, o abandono social, o desemprego, a degradação do ser humano, a economia desvinculada das obrigações sociais do capital, que são obrigações de sua própria sobrevivência como sistema capaz de produzir grandes riquezas sem necessariamente produzir grandes misérias como a nossa".

 

O artigo é de José de Souza Martins, publicado Valor Econômico, Ano 23, nº 1.120, 12-08-2022 e enviado pelo autor para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-1994). Também é pesquisador Emérito do CNPq e membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de Sociologia do desconhecimento: ensaios sobre a incerteza do instante (Unesp, 2021).

 

Eis o artigo. 

 

A família passando fome há três dias, mãe e cinco irmãos, o menino chamou a Polícia. O menino não quer colocar o governo na cadeia. O menino é apenas menino que passa fome e acha, com razão, que passar fome não é justo. É significativo que, faminto, tenha chamado a Polícia e não alguém terrivelmente cristão para dizer que tem fome e espera dele a compaixão que os cristãos supostamente deveriam devotar ao próximo em primeiro lugar.

 

Miguel Barros, de 11 anos de idade, mãe de 46, desempregada, de Santa Luzia, região de Belo Horizonte, ligou para 190. “Qual é a emergência?” pergunta formalmente a voz do outro lado. “Sra. policial, olha aqui. É porque em casa não tem nada para comer desde cedo. Só tem farinha e fubá.” Fazia três dias que a fome da família chegara ao limite. “Minha mãe estava chorando”, explicou ele depois.

 

A policial fez algumas perguntas, desconfiou que era caso de maus tratos e avisou uma guarnição da Polícia Militar para que fosse verificar. Os policiais verificaram. De fato era caso de maus tratos, de uma sociedade que rompeu seus elos com a condição humana, de um governo que não sabe nem quer saber que gente é gente, como se vê em reiteradas manifestações de menosprezo pelo outro: “Sou messias mas não faço milagre”. Nem governa.

 

Não dava para esperar pelo governo, pelas medidas formais da precária política social. Os policiais foram ao supermercado mais próximo, cotizaram-se para comprar alimentos para os próximos 15 dias para a família. O gerente também ajudou. Já não se trata de fome crônica, dessas que dependem de governação, leis, decretos, portarias, burocracia pública. Trata-se de fome de urgência, do já e não do ainda neste ano, de antes das eleições.

 

É a modalidade de fome que torna o governo inútil. Os próprios funcionários, os policiais atuando como seres humanos sem farda nem regulamentos, tirando dinheiro do próprio bolso para socorrer a família. O Estado acabou. Para famílias assim, o Brasil já não existe. Assim sendo nem nós existimos. Porque a sociedade não é uma coleção de impessoalidades. A sociedade é uma organização social, uma aliança de direitos e de corresponsabilidade. O voto é a ferramenta dessa trama. Se quem vota não pensa no outro quando vota, seu voto não vale nada.

 

O menino não é um agente comunista, do imaginário repressivo dos que se apoderaram do país. Subversivos são a fome, o desvalimento, o abandono social, o desemprego, a degradação do ser humano, a economia desvinculada das obrigações sociais do capital, que são obrigações de sua própria sobrevivência como sistema capaz de produzir grandes riquezas sem necessariamente produzir grandes misérias como a nossa.

 

A Câmara dos Deputados tem a bancada da bala, a bancada da Bíblia. Mas não tem a bancada da igualdade jurídica com igualdade social, a bancada da segurança de todos e não só de alguns. Não tem a bancada dos que passam fome, a bancada da responsabilidade social, a bancada do discernimento, a bancada da democracia, a bancada do direito à justiça e do direito à diferença. Não tem a bancada da criança, dos jovens. Não tem a bancada da esperança.

 

Não tem a bancada do menino que clama por comida e sem o saber fala em nome dos 33 milhões de famintos e dos restantes 70 e tantos milhões que vivem em estado de insegurança alimentar, dos milhares de moradores de rua, muitíssimos deles crianças, dos milhares que tem perecido de doenças evitáveis e tratáveis e não receberam a atenção e os cuidados devidos, como no caso da pandemia, não tiveram a vacinação que poderia ter-lhes poupado a vida.

 

Mesmo não o sabendo, o menino chamou a Polícia contra o governo e o Estado brasileiro e sua concepção pobre da pobreza, a da economia que destroça a pátria e o futuro das novas gerações, os armados e os que se armam para tratar o menino como inimigo.

 

Chamou a Polícia contra quem manda, mas também contra os cúmplices, os omissos, os irresponsáveis, os que governam apenas para uma parte ínfima da população. O menino representa o exército dos invisíveis, dos ainda calados, dos aparentemente conformados, dos milhões de vítimas da riqueza mal distribuída, em mãos de minorias ávidas. O menino gritou à consciência coletiva o seu pedido de socorro. “Eu acuso”, disse ele sem saber que estava dizendo o que os adultos não querem dizer.

 

Chegamos a tal ponto em nossa decadência política que a palavra do menino denuncia e expõe a fragilidade do conjunto do sistema. Perturba todos os laços, econômicos, sociais e políticos. Expõe a hipocrisia da religiosidade lucrativa dos vendilhões do templo. Os que têm fome e sede de justiça falam pela boca de uma criança, a voz de um hoje sem amanhã.

 

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