Para um jesuíta negro nos EUA, o racismo é uma provação

Um mural de Jesus na Igreja Way Jesus Christ em Nova Orleans, EUA. Foto: Bernard Spragg | Flickr CC

14 Setembro 2022

 

“Como homem negro, descobri que a espiritualidade inaciana prescreve a confiança como remédio espiritual para o sofrimento do racismo, mesmo no nível da fadiga da microagressão. A confiança me permite experimentar gratidão e perdão. Claro que não sou grato por estar exposto a um ataque constante de microagressões – mas com consciência da Presença Divina em cada momento, posso ser grato por ter esta oportunidade de me identificar mais plenamente com Jesus. Posso permitir que o Sopro da Vida se mova através de mim, em vez de bloquear seu fluxo com ressentimento, defesa ou medo. Deixo de lado a resistência que me impede de convidar uma perspectiva mais ampla para minha experiência e, ao fazê-lo, reconheço que vivo dentro de uma realidade espiritual. Minha experiência neste mundo é temporária, mas o amor de Deus é eterno”, escreve Patrick Saint-Jean, noviço jesuíta, membro da Província Jesuíta do Meio-Oeste dos EUA.

 

Patrick Saint-Jean é autor do livro “The Crucible of Racism: Ignatian Spirituality and the Power of Hope” (Ed. Orbis Books, 2022. “A provação do racismo: espiritualidade inaciana e o poder da esperança”, em tradução livre).

 

O artigo abaixo é um excerto do livro, publicado por National Catholic Reporter, 10-09-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

  

O sofrimento da comunidade negra

 

A segunda maneira pela qual podemos entrar em uma relação mais profunda com Jesus durante esta etapa dos Exercícios Espirituais é relacionando o sofrimento de Cristo com a dor que vemos no mundo ao nosso redor. Em vez de nos retirar para uma vida de conforto e privilégio, permitimos que o sofrimento dos outros se torne real para nós. “Tudo”, escreveu Inácio, “tem o potencial de suscitar em nós uma resposta mais profunda à nossa vida em Deus”. Ao levarmos isso a sério, não nos afastamos da realidade da injustiça em nosso mundo.

 


The Crucible of Racism: Ignatian Spirituality and the Power of Hope”,
de Patrick Saint-Jean (Ed. Orbis Books, 2022)

 

Nós conscientemente escolhemos destronar nossos egos de seu lugar de autoridade em nossas vidas – e, como Jesus, nós nos “esvaziamos”; deixamos de nos agarrar à nossa necessidade de sermos importantes, de sermos melhores que os outros, de nos livrarmos do desconforto. “Nosso único desejo e uma escolha”, escreveu Inácio, “deve ser este: eu quero e escolho o que melhor conduz ao aprofundamento da vida de Deus em mim”.

 

Ao fazer essa escolha, começamos a ver Jesus no sofrimento das pessoas de cor. “A presença de Deus no mundo é melhor representada por meio do envolvimento de Deus na luta pela justiça”, diz o professor de religião Anthony Pinn. “Deus está tão intimamente ligado à comunidade que sofre, que Deus se torna parte dessa comunidade”.

 

À medida que nos tornamos conscientes da Presença Divina dentro do sofrimento da comunidade negra, somos desafiados a afirmar: “Black Lives Matter [Vidas negras importam]”. E, no entanto, tive amigos que contestaram essa afirmação com a resposta de que “todas as vidas importam”. Claro que todas as vidas importam; isso deveria ser autoevidente. Mas, durante séculos, a sociedade ocidental foi construída em torno da suposição da supremacia branca. Não precisamos afirmar que “vidas brancas importam”, porque ninguém jamais contradisse esse fato.

 

Isso não quer dizer que os brancos não tenham sofrido, principalmente aqueles que são pobres, mulheres ou estão à margem da sociedade de alguma outra forma; mas eles não sofreram simplesmente por causa da cor de sua pele da maneira que os negros e outras pessoas de cor sofreram. Durante séculos, os negros tiveram que enfrentar a luta constante para afirmar que suas vidas importam, tanto quanto a de qualquer pessoa branca.

 

A história do sofrimento é longa. Os historiadores costumam datar o início do racismo em 1619, quando um navio transportando africanos cativos desembarcou em um porto da Virgínia. A partir deste momento, os corpos negros eram corpos não livres. Eles não eram considerados humanos da mesma forma que os brancos eram.

 

Mas a escravidão e o racismo na verdade começaram ainda antes de 1619. Em meados do século XV, o tratamento dos “gentios negros” foi abordado pela primeira vez quando o Papa Nicolau V emitiu uma série de decretos que concediam a Portugal o direito de escravizar os africanos subsaarianos. Os líderes da Igreja insistiram que a escravidão cristianizaria o comportamento “bárbaro” dos africanos, e assim o Papa deu um mandato ao rei português, Afonso V, dando-lhe o direito de “invadir, procurar, capturar, vencer e subjugar” os habitantes da África e “reduzir suas pessoas à escravidão perpétua”.

 

Embora a Igreja inicialmente limitasse o comércio de escravos africanos a Portugal, outras nações europeias logo o seguiram: Holanda, França, Inglaterra, Portugal, Espanha, Noruega e Dinamarca participaram. A supremacia do corpo branco sobre o corpo negro tornou-se um conceito útil, uma ideia economicamente vantajosa que permitiu que os homens brancos enriquecessem. As crescentes economias capitalistas do mundo estavam enraizadas na escravidão, dando origem ao racismo sistêmico que agora se espalha por tantas estruturas sociais e econômicas.

 

Como observou a autora Resmaa Menakem, o racismo cresceu na América do Norte, onde “há essa abreviação que existe no solo que diz que [os brancos são] mais humanos do que [os negros]”. Mas então essa crença também foi exportada das colônias para os países de origem. “Assim, a descendência da ideia do corpo branco ser o padrão supremo tem utilidade mesmo nos países dos pais”. Essas nações-mãe então levaram o padrão distorcido da supremacia branca para todas as suas colônias: para a África do Sul, para a Índia, para a Austrália e para outras regiões do mundo.

 

Hoje, negros e outras pessoas de cor em todo o mundo continuam a sofrer versões do século XXI do sofrimento da escravidão. Pobreza, brutalidade policial, encarceramento em massa, crimes de ódio e oportunidades educacionais e profissionais desiguais são todos aspectos desse sofrimento. A segunda fase dos Exercícios Espirituais nos chama a abrir os olhos para essas realidades – e ver Jesus presente na dor da comunidade negra.

 

O chamado bíblico para a justiça

O cristianismo branco tem muito a aprender com a Igreja Negra. Cinco palavras definiram a teologia negra desde os dias da escravidão: justiça, libertação, esperança, amor e sofrimento. A Bíblia ecoa esses mesmos temas, e ainda assim o cristianismo branco negligenciou os apelos por justiça que estão por toda parte nas escrituras hebraicas e cristãs:

 

O Espírito do Senhor Javé está sobre mim, porque Javé me ungiu. Ele me enviou para dar a boa notícia aos pobres, para curar os corações feridos, para proclamar a libertação dos escravos e pôr em liberdade os prisioneiros... De fato, eu, Javé, que amo o direito e detesto o roubo e a injustiça, eu lhes darei a sua recompensa e estabelecerei com eles uma aliança eterna”. (Isaías 61, 1, 8)

 

Até quando vocês julgarão injustamente, sustentando a causa dos injustos? Protejam o fraco e o órfão, façam justiça ao pobre e ao necessitado, libertem o fraco e o indigente, e os livrem da mão dos injustos!”. (Salmo 82, 2-4)

 

Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês deixam de lado os ensinamentos mais importantes da Lei, como a justiça, a misericórdia e a fidelidade”. (Mateus 23, 23)

 

Esses versículos relacionados à justiça são apenas alguns dos muitos, muitos outros encontrados na Bíblia. E, no entanto, de alguma forma, os cristãos brancos encontraram maneiras de ignorar esses versículos que estão no centro de suas escrituras sagradas. Enquanto isso, a Igreja Negra os leu e encontrou um Deus que está do lado deles, um Deus que se identifica com seu sofrimento – um Deus que está com eles. Nas histórias do êxodo dos escravos hebreus para a liberdade e do sofrimento de Cristo nas mãos de seus opressores, os negros encontraram um Deus que não tinha mais o rosto de um homem branco.

 

O Jesus Negro

 

Esta não é uma teologia intelectual, mas uma que foi vivida e sentida, que foi experimentada fisicamente. Ele empoderou a comunidade negra com esperança. Isso permitiu que eles olhassem além da imagem do Cristo de cabelos loiros e olhos azuis que foi retratado em tantas Igrejas Brancas e vissem um Jesus Negro – um Jesus que não apenas falou pelos oprimidos, mas também experimentou em primeira mão o sofrimento de um sistema injusto.

 

Quando nos relacionamos com o Jesus Negro, um homem perseguido pelas autoridades, é mais do que um exercício intelectual. Através do conceito inaciano de oração imaginativa, nos identificamos com o sofrimento de Jesus dentro da comunidade negra e, ao fazê-lo, entramos em uma intimidade mais profunda com Cristo.

 

E então somos desafiados a dar um passo adiante. À medida que encontramos o Cristo Negro nos outros, não podemos mais pensar em nós mesmos como “espectadores inocentes” da realidade do racismo. Uma vez que nos permitimos estar verdadeiramente presentes no sofrimento da comunidade negra, somos chamados à ação. Cristo nos chama a incorporar seu chamado por justiça em nossas próprias vidas. Como o teólogo James Cone escreveu:

 

Não pode haver reconciliação com Deus a menos que os famintos sejam alimentados, os doentes sejam curados e a justiça seja dada aos pobres. A pessoa justificada é ao mesmo tempo a pessoa santificada, aquela que sabe que sua liberdade é inseparável da libertação dos fracos e indefesos”.

 

O trabalho da justiça requer um compromisso sincero, ativo e positivo com o antirracismo. Não há como ficar em cima do muro, não há território neutro. Ibram Kendi apontou:

Ou se permite que as desigualdades raciais perseverem, como racista, ou confronta as desigualdades raciais, como antirracista... A alegação de neutralidade ‘não racista’ é uma máscara para o racismo”.

 

Isso exige coragem e dedicação para ouvir a experiência dos outros, enquanto descobrimos nossa própria cumplicidade com o racismo. Requer humildade para ouvir as histórias daqueles que foram marginalizados e excluídos. Pelas lentes da espiritualidade inaciana, vemos Deus nos outros e, ao mesmo tempo, permitimos que o amor divino se mova através de nós.

 

O reconhecimento da Presença Divina no sofrimento da comunidade negra não é fácil. Não é confortável nem bonito. E, como reconheceu James Cone, a realidade do sofrimento pode nos fazer duvidar do amor de Deus. “Como alguém pode acreditar em Deus diante de um sofrimento tão horrendo como a escravidão, a segregação e a árvore do linchamento?”, perguntou Cone. Mas então ele afirma: “Nestas circunstâncias, a dúvida não é uma negação, mas parte integrante da fé. Ela impede a fé de ter certeza de si mesma. Mas a dúvida não tem a palavra final. A palavra final é a fé dando origem à esperança”.

 

Confiança e possibilidade

 

Isso nos traz de volta à importância da confiança tanto em nosso relacionamento com Cristo quanto no trabalho de antirracismo. Como enfatizou a primeira “semana” dos Exercícios Espirituais, Deus nos ama infinitamente e nos dá vida. “Nossa própria resposta de amor permite que a vida de Deus flua em nós sem limites”, escreveu Inácio. Como meu amigo e eu descobrimos em nossa longa viagem, a confiança é o que torna possível um relacionamento íntimo. É o que torna a esperança possível.

 

Meu irmão jesuíta Greg Boyle demonstrou os milagres que a confiança pode alcançar. Em 1986, o padre Boyle começou a Homeboy Industries como um ministério de confiança e esperança. Na época, as táticas policiais violentas e o encarceramento em massa eram considerados a melhor maneira de lidar com a violência das gangues. Mas onde outros só viam criminosos – muitos deles pessoas de cor – o padre Boyle viu o rosto de Cristo. Ele viu possibilidade.

 

Sua confiança audaciosa naqueles considerados indignos de confiança parecia insanidade. Até muitos de seus companheiros jesuítas pensavam assim. Hoje, porém, a Homeboy Industries é o maior programa de intervenção e reabilitação de gangues do mundo. “Homeboy Industries”, diz o padre Boyle, “escolheu ficar com os ‘demonizados’ para que a demonização pare; ela está com os ‘descartáveis’ para que chegue o dia em que paremos de jogar as pessoas fora”.

 

A cura racial requer confiança. E essa confiança deve ser mútua. Mesmo quando estendemos a confiança aos outros, devemos ter o cuidado de sermos dignos de confiança. Esta atmosfera de confiança é o que Boyle criou através do seu trabalho.

 

Como homem negro, descobri que a espiritualidade inaciana prescreve a confiança como remédio espiritual para o sofrimento do racismo, mesmo no nível da fadiga da microagressão. A confiança me permite experimentar gratidão e perdão. Claro que não sou grato por estar exposto a um ataque constante de microagressões – mas com consciência da Presença Divina em cada momento, posso ser grato por ter esta oportunidade de me identificar mais plenamente com Jesus. Posso permitir que o Sopro da Vida se mova através de mim, em vez de bloquear seu fluxo com ressentimento, defesa ou medo. Deixo de lado a resistência que me impede de convidar uma perspectiva mais ampla para minha experiência e, ao fazê-lo, reconheço que vivo dentro de uma realidade espiritual. Minha experiência neste mundo é temporária, mas o amor de Deus é eterno. Com esse conhecimento, tenho uma sensação renovada de paz, liberdade para respirar e esperança. Posso rezar com Inácio:

 

Jesus, que tudo o que você é flua para mim. Que seu corpo e sangue sejam minha comida e bebida. Que sua paixão e morte sejam minha força e vida. Jesus, com você ao meu lado já foi dado o suficiente. Que o abrigo que procuro seja a sombra da sua cruz. Não me deixe fugir do amor que você oferece, mas me proteja das forças do mal. Em cada uma das minhas mortes, derrame sua luz e seu amor. Continue me chamando até que chegue o dia, quando com seus santos, eu possa louvá-lo para sempre. Um homem.

 

Esta segunda semana de contemplação vem como um tesouro e um desafio. Requer nossa atenção constante à injustiça social. Ela brilha intensamente durante a Era da Respiração, permitindo-nos encontrar Cristo no sofrimento das pessoas de cor. Os poderes de nossa imaginação podem nos inspirar a trabalhar ativamente pela paz e reconciliação.

 

A graça que buscamos durante a segunda fase dos Exercícios Espirituais é captada em uma oração que Inácio incluiu nos Exercícios Espirituais, que é frequentemente repetida pelos jesuítas: “Senhor, que eu possa vê-lo mais nitidamente, amá-lo mais profundamente e segui-lo mais proximamente”. À medida que entramos nesse relacionamento de confiança mais profundo e íntimo, nos afastamos da superioridade racial, da ganância e do orgulho e, em vez disso, escolhemos conscientemente nos alinhar com a pobreza espiritual, o autoesvaziamento e a humildade que levam à igualdade racial. Afastamo-nos do medo e da defensividade e entramos em nova intimidade com Deus e com os outros. Ao encontrarmos Cristo uns nos outros, teremos o poder de arriscar ir além de nossas limitações. Tornamo-nos pessoas de possibilidade.

 

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