"A obra de Leonardo Boff alerta para o resgate e busca pela justa medida como uma das urgências de nosso tempo, uma vez que o verdadeiro humanismo somente se dá se ele se fundar na moderação, no caminho do meio, e na justa medida, como condição fundamental", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) ao comentar a obra O pescador ambicioso e o peixe encantado: a busca pela justa medida, de Leonardo Boff.
No livro O pescador ambicioso e o peixe encantado: a busca pela justa medida (Vozes, 2022, 176 p.), Leonardo Boff toma como fio condutor o conto do pescador ambicioso e o peixe encantado atribuído ao pintor Philipp Otto (1777-1810) e assumido posteriormente pelos Irmãos Grimm - para orientar os espíritos na busca da moderação e da autocontenção para fazermos frente às grandes ameaças que pesam sobre o destino da vida na Terra e de nosso futuro. Essa história, segundo Boff, “representa bem uma metáfora de nossa situação cultural, marcada pela ambição de querer mais e mais, crescer sem limites, alimentar a cobiça sem qualquer sendo de medida e de moderação, até chegar a expressões absurdas de pretender ser o pequeno deus na Terra” (p. 12). Consequentemente “esse excesso significa a perda da justa medida e da moderação, condições fundamentais para que a vida da natureza e as relações humanas pessoais e sociais tenham o mínimo de equilíbrio que garanta a sustentabilidade e o bem-viver” (p. 9).
Capa do livro O pescador ambicioso e o peixe encantado: a busca pela justa medida
Foto: Divulgação
Além da história do pescador ambicioso e o peixe encantando, esta obra é dividida em quatro partes:
1) A perda da justa medida e da falta de cuidado (p. 13-73),
2) Como viver a justa medida nas várias dimensões da vida (p. 75-124),
3) Viver a justa medida no nível interpessoal (p. 125-143),
4) Viver a justa medida no nível interpessoal (p. 125-168), recolhe outras histórias (p. 33-34, p. 44-48, p. 55-58, p. 62-63, p. 67-70, p. 93-95, p. 114-115), para poder iluminar o que significa ter a justa medida/a moderação de maneira que possamos viver mais iguais uns com os outros.
Na linha das provocações deste livro em estilo narrativo, Boff traz inicialmente o conto de Otto Runge (p. 15-20) para esclarecer melhor o que significa o excesso e a falta da justa medida, típicos de nossa cultura. Observa que esse conto revela a dinâmica do desejo humano: pescador quer sempre mais, expressando o caráter ilimitado do desejo e, por assim ser, o conto nos conclama a cuidar nossos desejos, de atendê-los dentro dos limites de criaturas com um comportamento que se rege pela justa medida, sem a arrogância e a cobiça desenfreada de possuir sempre mais; porém, sendo mais (p. 21-25). A consideração do triste fim do pescador ambicioso e a conscientização de nossas limitações naturais possibilita a tomada de consciência daquilo que subjaz às ameaças que nos assolam, ou seja, o tipo de relação agressiva contra o nosso entorno, contra a natureza, contra a Terra e uns contra os outros se revela no excesso de possuir, na opção pelo lado demente e pelo desejo desmesurado de conquistar, dominar as pessoas, classes, povos, a natureza, a vida e de acumular poder e bens materiais sem limites, como o ambicioso pescador. Tal opção de fundo-pessoal, social e cultural – constitui a raiz, talvez a causa principal, do inquietante mal-estar generalizado e dos dramáticos perigos que atemorizam a humanidade e a Terra inteira. Tudo dependerá do tipo de relação que mantivermos para com a natureza e para com a Mãe Terra (p. 26-31).
Frente a isso, convém perguntar e esclarecer: quando começou a falta de justa medida? (p. 32-48). Do que realmente precisamos? (p. 49-63). Sabedores de que toda a virtude tem o seu contrário: o excesso – que viram vícios (p. 64-73), o desafio pessoal, comunitário de toda uma cultura é permanentemente e nas condições sempre cambiantes, identificar a justa medida, a dose certa e o equilíbrio entre as partes dentro do todo (p. 73).
Tendo-se em conta a importância decisiva do valor da justa medida, do valor do caminho do meio, que evita todo o excesso; seja para mais, seja para menos, as reflexões da segunda parte esclarecem que essa diligência pressupõe o valor da autocontenção, o valor da humildade contra toda a arrogância, que distancia e rebaixa as pessoas. Os valores constituem o mundo das excelências, aquelas atitudes e relações que tornam minha vida e a vida dos outros algo precioso e apetecível e, por isso, digno de ser vivido. Sabedores que a sede dos valores reside na inteligência emocional e na razão cordial, torna-se urgente unir a inteligência racional e cordial, a analítica e a sensível, para nos tornarmos mais razoáveis e humanamente mais completos (p. 90-98), resgatar os direitos do coração (p. 99-101), viver a justa medida (p. 102-103), levar em conta os pressupostos da justa medida: a esperança como nosso motor interior e a renúncia de toda a arrogância (p. 104-107), criando a justa medida em todos os níveis da vida: no comer e beber com moderação (p. 108-109), na comunicação (p. 109-110), na convivialidade (p. 110-115), no manejo junto do dinheiro (p. 115-116), a vivência do tempo (p. 116-118), a justa medida entre trabalho e cuidado, entre a luta pela vida e o estar em casa (p. 118-121), na justa medida entre a dimensão animus/masculino e da dimensão anima/feminino (p. 121-124). Em suma, para viver a justa medida nas várias dimensões da vida o ideal a ser buscado é encontrar o meio-termo entre o vigor e a ternura, entre a sensibilidade e a razão, entre a cabeça e o coração, equilibrando um em outro, e assim ser ais plenamente humano, como homem e como mulher (p. 124).
A terceira parte concentra-se em pensar como encontrar a justa medida no nível interpessoal, mias especificamente a justa medida entre o tempo do trabalho e o tempo de vida (p. 127-129), entre as preocupações e a alegria de viver (p. 129-131), entre a religiosidade e a espiritualidade (p. 132-136), entre a satisfação das necessidades e a intervenção na natureza (p. 137-139), entre a preservação da natureza e o extrativismo (p. 140-141), entre o legal e o interesse geral (p. 141-143).
Na quarta parte Leonardo Boff destaca que dois homens foram enviados por Deus em momentos semelhantes de passagem de um mundo para outro: do feudal para o comunal; das nações para a Casa Comum. Foram enviados para sanar a criação, cuidar da vida e garantir a beleza, a integridade e a generosidade da Mãe Terra. Foi o caminho de Francisco de Assis (p. 147-155) e, atualmente, o caminho do Papa Francisco: “o caminho de alguém que veio do fim do mundo” (p. 156-168). Um e outro não rejeitaram os desafios de seus tempos. Souberam captar-lhes os anseios de fraternidade e de unidade de toda a criação (p. 168). Ambos propuseram o mesmo sonho: unificar a criação sob o signo da fraternidade universal como fruto da renúncia a todo poder-dominação e de um amor sem fronteiras, encarnando o protótipo e o arquétipo de um mundo que encontrou sua justa medida e o seu real equilíbrio. Sem esses valores não há fraternidade sem fronteiras, nem um amor universal, nem uma paz duradoura (p. 169).
Nesta obra Leonardo Boff alerta para o resgate e busca pela justa medida como uma das urgências de nosso tempo, uma vez que o verdadeiro humanismo somente se dá se ele se fundar na moderação, no caminho do meio, e na justa medida, como condição fundamental “para que a vida da natureza e as relações humanas pessoais e sociais tenham o mínimo de equilíbrio que garanta a sustentabilidade e o bem-viver” (p. 9).
As provocações desta obra tornam-se um convite para “cuidar de nossos desejos, e atendê-los dentro dos limites criaturas com um comportamento que se rege pela justa medida, sem a arrogância e a cobiça desenfreada de possuir sempre mais” (p. 25). Justa medida a ser buscada no âmbito pessoal, no exercício do poder, na condução de uma comunidade, na liderança política e mesmo nos embates de ideias. Buscar a justa medida representa um ato sapiencial...