30 Junho 2022
O corpo do indígena Guarani Kaiowá Vítor Fernandes, de 42 anos, assassinado por policiais militares na última sexta-feira (24), foi enterrado no final da tarde desta segunda-feira (26), dentro da área de retomada Tekoha Guapoy Mirim Tujury, em Amambai, em Mato Grosso do Sul, sob forte emoção. Ao menos 2 mil pessoas participaram do velório e do enterro, segundo lideranças Guarani Kaiowá ouvidas pela Amazônia Real. A mobilização pela retomada do território, ocupada por uma fazenda, continua nesta terça-feira, com cerca de mil pessoas presentes no local. O clima na área continua tenso. Apesar dos ataques terem cessado, outras cerimônias estão sendo realizadas ao longo do dia.
A reportagem é de Marcio Camilo, publicado por Amazônia Real, 28-06-2022.
O enterro de Vitor Fernandes aconteceu no próprio terreno do Tekoha Guapo´y (Tekoha é o termo que os Guarani Kaiowá se referem às retomadas de seus territórios tradicionais, hoje ocupadas por fazendas), e foi resultado de um acordo feito entre o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União e a empresa VT Brasil Administração e Participação Ltda, proprietária da Fazenda Borba da Mata, cujo imóvel é reinvidicado pelos indígenas.
Conforme o termo de ajustamento, os familiares de Vitor terão direito a visitar o túmulo, mas o documento não reconhece a área como “propriedade indígena” e que “tal autorização tem cunho eminentemente humanitário”. Para os Guarani Kaiowá que participam da retomada, contudo, o território é tradicional, e a mobilização vai permanecer.
Vitor foi morto durante uma operação policial para expulsar os indígenas, mesmo sem decisão judicial de reintegração de posse. Além da morte, ao menos nove pessoas ficaram feridas, incluindo mulheres e adolescentes. Três pessoas, após terem alta médica, foram levadas para a delegacia de Amambai onde teriam sido intimidadas para “confessar” envolvimento criminal, segundo relatos de lideranças.
“Aqui em Amambai a situação segue extremamente tensa. É uma tradição de nosso povo plantar nossos mortos onde tombaram. No caso do nosso querido Vitor, vítima do crime da polícia no Massacre de Guapoy”, diz trecho da nota da Aty Guasu, principal organização do povo Guarani Kaiowá, divulgada nesta segunda.
O professor da Universidade Federal de Grande Dourado (UFGD) e liderança Guarani Kaiowá, Eliel Benites, disse à reportagem que a retomada é “muito antiga” e que foi reiniciada recentemente por indígenas da Reserva Amambai. Eliel esteve no enterro de Vitor e descreveu como foi o clima do funeral.
“As emoções foram muito fortes, ficamos muito sentidos. Muitas emoções. O que aconteceu na sexta-feira foi um massacre. Houve uma atuação ilegal da Polícia Militar. Não teve respaldo da justiça. Foi uma iniciativa da própria polícia. E o mais grave é que tentaram considerar os indígenas como criminosos. Colocaram essa narrativa de que os indígenas estavam fazendo tráfico de drogas. Distorceram para legitimar uma ação ilegal e a morte de uma liderança”, disse Eliel Benites.
Outro líder da etnia, que pediu para nao ter seu nome identificado por ser ameaçado de morte, disse que na aldeia Amambai, vizinha à retomada, moram mais de 10 mil indígenas, e que há muitos anos eles pedem que outras áreas de seu território tradicional sejam reconhecidos como pertencente aos Guarani Kaiowá.
“É território tradicional e os indígenas já estão pedindo essa demarcação há muito tempo. Agora, o Ministério Público tem que pedir pra demarcar essa terra. Tem que regularizar para acabar com o problema”, disse a liderança.
Ele salientou que, com o assassinato de Vitor, os indígenas que estavam na aldeia foram para a retomada do território Guapoy e se somaram aos que ja estavam na mobilização. Diante disso, a liderança teme uma nova ofensiva das forças de segurança do Estado.
“Tudo pode acontecer de novo. Porque a comunidade Amambai tem mais de 10 mil, e agora já estão envolvendo milhares de indígenas. Antes era bem menos. Com essa morte, mobilizaram mais [para a retomada]. Então, tudo pode acontecer. Pode acontecer muito massacre, muitas mortes novamente”, enfatiza.
A terceira tentativa de retomada do Tekoha Guapoy Mirim Tujury começou na noite de quinta-feira (23), com cerca de 30 indígenas. Na madrugada de sexta (24), a tropa de choque da PM de Amambai, composta por cerca de 100 homens, chegou para expulsar os Guarani Kaiowá do território, a mando dos fazendeiros locais. Um helicóptero também foi utilizado na ação.
“Não foi um confronto. Foi covardia. Foi um massacre. A Polícia Militar foi lá para matar”, relatou Matias Penno Rempel, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Mato Grosso do Sul.
A organização Aty Guasu publicou uma nota, chamando o caso como “O Massacre de Guapoy”, além de classificar como “covarde a ação da PM e do Estado de Mato do Sul” contra os indígenas.
“As imagens do Massacre falam por si e são de fazer doer a alma do mais duro dos seres humanos. Tiros em jovens desarmados, violações a pessoas rendidas, disparos de helicóptero, tudo isso inclusive com uso de munição letal, deram o tom da covardia levada a cabo por um corpo policial que atuou sem mandado de reintegração de posse”, denuncia a organização.
Imagens e vídeos que registraram a ação policial foram divulgados pelo Instagram oficial da organização Aty Guasu. Um dos vídeos mostra o helicóptero utilizado na operação, sobrevoando a área, enquanto os indígenas – inclusive mulheres e crianças – correm desesperados para se proteger. Já em outro vídeo é registrada a chegada da tropa de choque da PM no território. Nas imagens, é possível ver que os policiais rendem um Guarani Kaiowá, que não oferece resistência. Outras fotos mostram uma menina ferida na região do abdômen, o indígena morto, além de um menino entubado no hospital.
Nesta segunda-feira, após denúncia das lideranças indígenas e pedido da Defensoria Pública da União (DPU) e da Defensoria Pública do Estado, a Justiça Estadual do Mato Grosso do Sul mandou soltas os Guarani Kaiowá presos.
Em nota, a DPU disse que “a violência policial, que resultou em prisões e na morte de um indígena, ocorreu durante ação da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, para desocupação de área reivindicada pelos indígenas”. O órgão informou que “o caso é de interesse da coletividade indígena e o processo deveria correr na Justiça Federal, e não na Justiça Estadual, já que a demarcação de terras indígenas é de competência da União”.
A Amazônia Real apurou que os indígenas detidos, mesmo feridos, teriam sofrido tortura psicológica na delegacia. “Intimidaram eles. Perguntavam quem mandou entrar, quem tinha arma. Eles estavam sendo acusados de serem traficantes de armas, de drogas. Foi um discurso para criminalizar os indígenas. Começaram a indagar como se a iniciativa nao fosse do movimento indígena. Retiraram eles do hospital mesmo feridos. O médico deu alta e levaram eles presos, no camburão, sem ordem judicial. Deixaram eles na delegacia por três noites”, relatou uma liderança à Amazônia Real.
Nesta segunda-feira, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denunciou o ataque aos Guarani e Kaiowá aos peritos da Relatoria Especial para os Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU). O caso também foi encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
“É imperioso lembrar que este fato não é isolado. A polícia militar de Mato Grosso do Sul têm histórico de atuar, sem ordem judicial e sem observar as determinações legais, como verdadeira milícia privada dos fazendeiros da região”, destaca trecho do documento da Apib enviado à ONU.
Matias Penno Rempel, coordenador do Cimi de Mato Grosso Sul, afirma que os Guarani Kaiowá estão há quatro décadas lutando de forma mais intensa pela retomada de seus territórios, que foram reduzidos e fragmentados pelo antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão criado em 1910 e substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1967, entre os anos de 1914 e 1940.
Nessa época, o SPI criou oito reservas indígenas com objetivo de confinar o povo em um espaço diminuto, em que os Guarani Kaiowá sentiram muitas dificuldades de reproduzir seu modo tradicional de vida. “O plano do governo era esse, de restringi-los ao espaço das reservas. Mas, entre as décadas de 1970 e 1980, grupos da etnia começaram a sair das reservas em busca do Tekoha, recuperando os primeiros territórios tradicionais”, afirma Rempel.
O Tekoha, explica Matias Penno Rempel, é o estado pleno do modo de ser dos Guarani Kaiowá. “A palavra, no idioma deles, significa ‘o local onde podemos viver nossa cultura’, ou seja, sem estar nesse local, os indígenas não se sentem eles mesmos”.
No caso do território Guapoy, Rempel destaca que a área da Fazenda Borda da Mata está no contexto do Tekoha, da luta dos Guarani Kaiowá pela retomada de seu território fragmentado.
De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), até 2003, 16 Tekoha foram retomados, totalizando 24 áreas ocupadas pelo Guarani Kaiowá, “superando os oito Postos Indígenas que até então existiam”.
Reportagem do site De Olho nos Ruralistas afirma que a fazenda Borba da Mata pertence a Waldir Cândido Torelli, que em 2018 moveu uma ação contra a Funai e os Guarani Kaiowá. A Amazônia Real não conseguiu contato dos representantes da fazenda.
Logo após a operação policial, na madrugada do dia 24, o secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública, Antonio Carlos Videira, convocou uma coletiva de imprensa para comentar o caso. Disse que a operação não se tratou de uma reintegração de posse, mas sim de uma “ocorrência contra o patrimônio e crime contra a vida na Fazenda Borda da Mata”.
Videira afirmou que os policiais foram recebidos a tiros pelos indígenas e, durante a ação, três agentes das forças de segurança foram feridos nas pernas e braços.
A Amazônia Real procurou a Polícia Civil, a Polícia Millitar e a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, para falar sobre outros assuntos desta matéria, mas os órgãos nao responderam às perguntas enviadas.
O MPF, por meio da assessoria de imprensa, disse que um procedimento preparatório foi aberto pelo órgão após a primeira retomada entre o final de maio e junho. Segundo a assessoria, “o procedimento é para investigar se houve excesso das partes (indígenas e fazendeiros) envolvidas no confronto primeiro confronto”.
Diante desse novo ataque, o MPF informa que “instaurou uma Perícia Antropológica, que se inseriu no Procedimento Preparatório do final de maio” para “averiguar violações de direitos entre as partes envolvidas (indígenas e forças de segurança pública do Estado)”.
“O documento também determina a requisição de informações aos órgãos e entidades direta e indiretamente envolvidos no conflito, a fim de apurar os fatos e prevenir, reprimir e punir possíveis delitos de atribuição/competência federal, além de fazer o devido encaminhamento de eventuais crimes de âmbito estadual”, diz a nota do MPF.
A Amazônia Real também questionou se o órgão abriu algum procedimento para atender a demanda de demarcação do território tradicional do Guarani Kaiowá, mas o MPF não respondeu. (Colaborou Elaíze Farias)
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Indígena Guarani Kaiowá assassinado por policiais é enterrado em área de retomada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU