15 Junho 2022
"Os ataques aos povos indígenas são diretamente estimulados pelo discurso de ódio de Bolsonaro [2]. Quando o Jair Bolsonaro assumiu a presidência, declarou que nem um centímetro de terra seria demarcado para os povos indígenas e que tentaria reverter as demarcações que já foram feitas".
O artigo é de Lucas Ferrante e Philip M. Fearnside, publicado por Amazônia Real, 14-06-2022.
Em 06 de outubro de 2021 foi publicada na prestigiosa revista Die Erde (“A Terra”, em alemão) a versão em inglês do seguinte texto sobre a violação de direitos indígenas e o que poderia induzir uma mudança (disponível aqui). Leia a seguir a versão em português.
Lucas Ferrante é doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Manaus, AM. Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia.
Philip Martin Fearnside É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 700 publicações científicas e mais de 600 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui.
O atual governo no Brasil implementou uma agenda legislativa que visa enfraquecer as proteções dos povos indígenas, em consonância com um discurso ideológico e a participação direta das Forças Armadas nesse processo. Essa agenda possibilitou invasões de terras indígenas e uma taxa de mortalidade por COVID-19 muito maior para os povos indígenas quando comparados aos não indígenas. Um projeto de lei recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados visa extinguir todas as terras indígenas estabelecidas pelo governo brasileiro a partir de 1988. Este projeto de lei representa a abertura oficial para violação dos direitos dos povos indígenas pelo governo Bolsonaro e facilita a invasão de terras indígenas. Os múltiplos esforços do presidente para enfraquecer ou negar a proteção desses povos, usurpar suas terras e negar seus direitos de consulta sobre projetos que os afetam precisam ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil, pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, pela Comissão Interamericana Direitos Humanos (CIDH), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Tribunal Penal Internacional
Invasão das terras indígenas do Brasil aumentou dramaticamente após a posse do Presidente Bolsonaro [1-3]. Isso é uma resposta à retórica e às políticas do Presidente que impedem as ações dos órgãos governamentais que deveriam conter essas invasões, além da promoção do governo de grandes projetos de infraestrutura, ignorando o direito dos povos indígenas impactados à consulta, conforme estabelecido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) Convenção 169 [4-8]. Enquanto outros governos presidenciais também violaram os direitos indígenas, o governo Bolsonaro tem se destacado, especialmente no uso da retórica [9]. O governo presidencial de Jair Bolsonaro está implementando uma agenda “ruralista” que visa a abertura de terras indígenas para a entrada do agronegócio, mineração e hidrelétricas (por exemplo, [10]). Os “ruralistas” do Brasil são grandes proprietários de terras e seus representantes que formam uma parte fundamental da base política de Bolsonaro [4]. Bolsonaro mentiu para o mundo sobre o desmatamento e as queimadas na Amazônia, culpando os indígenas quando as verdadeiras causas são os “ruralistas” que se beneficiam do desmonte das políticas ambientais [6].
A frequência de ataques contra povos indígenas mais que dobrou durante o governo do presidente Bolsonaro [11]. Os garimpeiros são uma fonte importante de ataques, como um ataque de maio de 2021 que incendiou as casas de lideranças Munduruku [12]. No mesmo mês, mineradores ligados a o Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa que lidera o tráfico de drogas no Brasil, atacou aldeias Yanomami no estado de Roraima [13]. Os ataques aos povos indígenas são diretamente estimulados pelo discurso de ódio de Bolsonaro [2]. Quando o Jair Bolsonaro assumiu a presidência, declarou que nem um centímetro de terra seria demarcado para os povos indígenas e que tentaria reverter as demarcações que já foram feitas [4]. Em 11 de janeiro de 2019, apenas 10 dias após a posse do presidente Bolsonaro, o discurso do presidente foi explicitamente citado por grileiros como justificativa quando invadiram a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau no estado de Rondônia, alegando que os indígenas não tinham mais direitos sobre suas terras agora que Bolsonaro era presidente, além de ameaçar decapitar todas as crianças da aldeia se o povo tentasse reaver suas terras [14, 15].
Empresas de biocombustíveis, como a Millenium Bioenergia, estão consolidando uma cadeia produtiva de biocombustíveis e produtos alimentícios em terras indígenas amazônicas. Isso tem o potencial de desencadear novas pandemias como resultado de saltos zoonóticos devido à degradação ambiental e à presença de suínos, bovinos e outros animais domésticos [16]. No dia 20 de agosto de 2020, o Vice-Presidente (General Hamilton Mourão) reuniu-se com o setor sucroenergético, onde um dos temas do encontro foi o programa Renova Bio [17], que tem grande potencial para estimular um novo ciclo de desmatamento [18, 19].
Grupos de garimpeiros ilegais visando terras indígenas na região amazônica têm usado explosivos que só podem ser usados por militares brasileiros [20], levantando duas hipóteses:
1) esses explosivos foram desviados por militares corruptos, ou
2) isso é uma ação deliberada com a cumplicidade das forças armadas. Durante a ditadura militar brasileira (1964 a 1985) o exército brasileiro usou explosivos e armas automáticas contra os índios Waimiri-Atroari para permitir a construção da BR-174 (Manaus – Boa Vista), ato que está sendo investigado como genocídio pelo Ministério Público Federal [21, 22].
Em 2020 e 2021 as forças militares brasileiras distribuíram cloroquina e outros medicamentos ineficazes para o tratamento da COVID-19 aos indígenas [23, 24]. Uma das preocupações com a militarização do meio ambiente que tem sido a marca do atual governo presidencial [25, 26] é o registro de direitos humanos das forças armadas brasileiras recentemente documentado no extenso relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos [27].
Cientistas que defendem o meio ambiente e denunciaram a “agenda da morte” do presidente Bolsonaro sofreram ataques, ameaças de morte e assédio, inclusive o primeiro autor deste artigo [28]. A retórica do Presidente e um fluxo constante de postagens para apoiadores nas mídias sociais têm efetivamente incentivado atos como esses (por exemplo, [29]. Antes de sua candidatura e eleição como presidente, o então deputado federal Bolsonaro declarou que uma guerra civil era desejável e que cerca de 30.000 pessoas precisavam morrer no Brasil [30]. [31]
[1] CIMI (Conselho Indigenista Missionário) 2019. Nota do Cimi sobre o extermínio dos povos isolados: ao menos 21 terras indígenas estão invadidas. CIMI, 12 de novembro de 2019.
[2] HRW (Human Rights Watch) 2019. Rainforest mafias: How violence and impunity fuel deforestation in Brazil’s Amazon.
[3] ISA (Instituto Socioambiental) 2019. Invasores produzem maior desmatamento em Terras Indígenas em 11 anos. ISA, 13 de dezembro de 2019.
[4] Ferrante, L. & P.M. Fearnside 2019. Brazil’s new president and ‘ruralists’ threaten Amazonia’s environment, traditional peoples and the global climate. Environmental Conservation 46(4): 261-263,
[5] Ferrante, L. & P.M. Fearnside 2020. Amazon’s road to deforestation. Science 369: 634,
[6] Ferrante, L. & P.M. Fearnside 2020. Military forces and COVID-19 as smokescreens for Amazon destruction and violation of indigenous rights. Die Erde 151(4): 258-263.
[7] Ferrante, L. & P.M. Fearnside 2020. Brazil threatens Indigenous lands. Science 368: 481-482.
[8] Ferrante, L., M. Gomes & P.M. Fearnside 2020. Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319. Land Use Policy 94: art. 104548.
[9] de Carvalho, S., D.R. Goyes & V.V. Weis 2021. Politics and Indigenous victimization: The case of Brazil. The British Journal of Criminology 61(1): 251–271.
[10] Rocha, J. 2020. Bolsonaro sends Congress bill to open indigenous lands to mining, fossil fuels. Mongabay, 07 de fevereiro de 2020.
[11] Cruz, M.T. 2020. Violência contra povos indígenas aumentou 150% no primeiro ano do governo Bolsonaro. Congresso em Foco, 30 de setembro de 2020.
[12] Alves, M. & E. Farias 2021. Garimpeiros atacam aldeia e incendeiam casa de liderança Munduruku. Amazônia Real, 26 de maio de 2021.
[13] Brasil, K., E. Costa & E. Farias 2021. Garimpeiros ligados ao PCC atacam aldeia Yanomami. Amazônia Real, 10 de maio de 2021.
[14] Arrais Neto, G. 2019. Organização criminosa invade Terras Indígenas em Rondônia. –Revista IHU On-Line, 17 de janeiro de 2019.
[15] Thomas, J.A. 2019. Invasores de terra indígena em Rondônia ameaçam matar crianças -Discurso anti-indígena do novo governo teria motivado o aumento das agressões. Veja, 11 de fevereiro de 2019.
[16] Ferrante, L., R.I. Barbosa, L.H. Duczmalz & P.M. Fearnside 2021. Brazil’s planned exploitation of Amazonian indigenous lands for commercial agriculture increases risk of new pandemics. Regional Environmental Change 21: art. 81.
[17] FIEG (Federação das Indústrias do Estado de Goiás) 2020. Fieg discute setor sucroenergético com vice-presidente Hamilton Mourão. FIEG.
[18] Ferrante, L. & P.M. Fearnside 2018. Amazon sugarcane: A threat to the forest. Science 359: 1476,
[19] Ferrante, L. & P.M. Fearnside 2020. The Amazon: Biofuels plan will drive deforestation. Nature 577: 170.
[20] Raquel, M. 2021. Exército é o único vendedor de bombas utilizadas por garimpeiros para atacar indígenas. Brasil de Fato, 11 de junho de 2021.
[21] Farias, E. 2019. Waimiri-Atroari sobreviventes de genocídio relatam ataques durante obra da BR-174. Amazonia Real, 06 de março de 2019.
[22] Fearnside, P.M. 2018. O genocídio dos Waimiri-Atroari: Um possível reconhecimento histórico. Amazônia Real, 12 de março de 2018.
[23] Montel, A.L. 2021. Governo Bolsonaro entope aldeias indígenas com cloroquina. Amazônia Real, 19 de julho de 2021.
[24] Portal Roraima 2020. Militares distribuem cloroquina para indígenas de Roraima em ação contra coronavírus. Portal Roraima, 01 de julho de 2020.
[25] Astrini, M., S. Araújo & C. Angelo 2020. O “Plano Mourão”: Um rascunho para a militarização da Amazônia. Observatório do Clima, 16 de novembro de 2020, 14 pp.
[26] Teixeira, M. 2020. Gilmar cita genocídio de índios e volta a criticar excesso de militares no Ministério da Saúde. Folha de S. Paulo, 14 de julho de 2020.
[27] IACHR (Inter-American Commission on Human Rights) 2021. The situation of human rights in Brazil. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 9, IACHR, 12 de fevereiro de 2021. 203 p.
[28] The Intercept Brasil 2021. Como um cientista na Amazônia se tornou alvo de perseguição e ameaças. The Intercept Brasil, 16 de março de 2021.
[29] Severo, V.S. 2019. Jair Bolsonaro traz discurso de ódio como fala oficial da presidência. Carta Capital, 06 de agosto de 2019.
[30] Jornal da Cultura 2021. Jornal da Cultura, 29 de março de 2021.
[31] Este texto é traduzido de: Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2021. Brazilian government violates Indigenous rights: What could induce a change? Die Erde 152(3): 200-211.
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Governo viola direitos indígenas: Retórica presidencial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU