Na programação do Ciclo Decálogo Sobre o Fim do Mundo, Anselm Jappe profere hoje a palestra “A guerra e sociedade da autodestruição”, em que retoma crises da Modernidade ainda não superadas que, hoje agudizadas, podem colocar a humanidade em marcha ao seu fim
“A miséria e o desemprego se espraiam pelo mundo afora e se difunde, cada vez mais, a sensação de que vivemos numa época de crise contínua e aguda.” A frase é do filósofo Anselm Jappe e parece que foi dita hoje, um pouco mais cedo. Mas, não, ela é de 2005 e está no artigo “Pensar outras Formas de Produção e Consumo”, assinado por ele no Caderno IHU em Formação, número 5, publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Quando ele formula essa reflexão, o mundo ainda discutia a globalização e já percebia esgotamentos de muitas das perspectivas modernas que pareciam ser a garantia da perpetuação da humanidade na terra.
Hoje, ainda não resolvemos aqueles problemas e sequer pensamos outras formas de produção de consumo. Pelo contrário, somos solapados por uma crise do mundo do trabalho originada numa revolução tecnológica que não acompanhamos, que por sua vez necessita de mais e mais recursos naturais e assim vai nos tragando para uma crise ambiental, chegando a lógicas e ideologias que, por incrível que pareça, nos levam à iminência de mais uma guerra de escala global. E tudo isso ainda logo depois de termos experimentado uma pandemia global, que coaduna crises causadas por desequilíbrios ambientais, econômicas e sociais.
Talvez não seja por acaso que Jappe atualiza sua reflexão e pontua que, desse jeito, estamos vivenciando “A guerra e sociedade da autodestruição”. Aliás, esse é o título da sua palestra, que ocorre logo mais, às 10 horas, dentro da programação do Ciclo de Estudos Decálogo do Fim Mundo. A atividade é uma iniciativa do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e é transmitida ao vivo no formato live.
Nesse mesmo artigo, publicado pelo IHU em 2005, é possível perceber ainda outros elementos que revelam por onde o filósofo pensa caminhos para os estados de crise. “O importante seria uma produção voltada para a satisfação das necessidades sociais, e não para satisfazer a cega necessidade do sistema baseado sobre o valor, sobre a mercadoria e sobre o dinheiro de crescer continuamente.”
Como não enfrentamos isso e sequer olhamos para esse caminho, parecemos estar numa verdadeira espiral de crises. Houve um tempo no qual achamos que o caminho realmente era esse, mas ainda não ousamos trilhar por ele. O que não se percebeu é que estávamos na curva baixa da crise, ainda nessa espiral, e não fora dela. Bastaram alguns anos para nos tornarmos ainda mais reféns desse tal de mercado e de um capitalismo predatório, em que subimos para a curva alta da crise. E pior: ainda rancorosos e intolerante por não termos vivido aquele sonho que ousamos cogitar como possível de sonhar.
Imagine um sujeito com um apetite voraz, capaz de devorar tudo, absolutamente tudo que o cerca. Esse foi Erisícton, o rei da Tessália que, segundo a mitologia grega, não tinha limite quando o assunto era saciar suas vontades. Sem respeitar nenhum sujeito, deus ou divindade da terra, destrói o que pode para sua saciedade. Até que viola um bosque consagrado e provoca a ira de Deméter, deusa da agricultura. Enfurecida, a deusa aciona Éton, a divindade que personifica a fome, que coloca um estômago gigante em Erisícton. Sua sentença é comer, comer e comer até que nada reste e começa a se autodevorar.
O mito pode dizer muito de nós mesmos e nossa necessidade de produção e consumo que coloca o planeta em colapso. Teríamos nós o mesmo fim do rei glutão? Essa metáfora é justamente o que serve a Anselm Jappe para analisar o que chama de “pulsão de morte do capitalismo”, o que para ele é uma explosão de violência extrema gerada pela perda de sentido e pela negação dos limites, características de uma sociedade regida pela mercantilização. Essa análise é o cerne de seu livro “A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição” (Elefante Editora, 2021).
de Jappe, “A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição” (Elefante Editora, 2021) (Foto: divulgação)
Para Jappe, num flerte com a psicanálise, essa pulsão de morte do capitalismo é capaz de acabar não só com as demais formas de vida do planeta, mas com a própria humanidade, ou pelo menos grande parte dela. Afinal, produzimos e vendemos até bombas. “O produtor de bombas produz bombas não porque ele é insensível moralmente, mas porque ele é submetido a essa lógica fetichista. A imoralidade pode ser acrescentada, mas ela não é o motor. E, de resto, na sociedade capitalista, esse fetichismo atinge também os operários. Aqueles que fabricam bombas não querem perder seus empregos. Todos participam dessa realidade, pois todos estão submetidos ao fetichismo da mercadoria e do valor”, observa Jappe, em artigo reproduzido pelo IHU em 2021.
O filósofo ainda observa esses movimentos que compreendemos como fruto de uma ideia de Modernidade, aquela que via o progresso e desenvolvimento como um ideal maior que a sanha do rei Erisícton, pondo sujeitos em trabalhos uberizados, queimando florestas e matando índios, além de promover guerras e disputas para satisfazem sua fome de consumo.
“A questão que eu me propus no meu livro foi a de saber se essa mudança representou, no final das contas, um progresso. Sem partilhar as visões de autores como Lasch e Dufour, que podem conduzir a consequências reacionárias, deve-se levar seus diagnósticos críticos a sério. Pois, se, por um lado, essa evolução para a liberdade individual é evidentemente positiva, por outro lado, o diabo, tendo saído pela porta, entrou novamente pela janela. É preciso constatar que o indivíduo que resultou desta evolução é fundamentalmente ainda mais fraco, justamente por causa da fraqueza de seu superego. Ele é presa das pulsões do consumo de mercadorias. E, de fato, assiste-se a uma grande reversão. O ‘partido da desordem’, anteriormente aquele dos revolucionários, tornou-se o do sistema capitalista.” Ansel Jappe
Voltando ao artigo de Jappe de 2005, é possível observar o lugar do Estado numa sociedade em crise. Para ele, “Estado não pode ter outra função que a de garantir o mínimo de coesão sem a qual esta sociedade, baseada sobre a concorrência, se dissolveria imediatamente numa guerra de todos contra todos”. Mas a que Estado, ou Estados, chegamos? No Brasil, um Estado que se retira do público e defende interesses privados de uma elite, desmontando todo e qualquer tipo de equalização em prol de uma sociedade igualitária. Na Europa, estados irmãos, ou pelo menos parentes, se matam para assegurar poder no mundo e impedir avanços de outros Estados que podem lhes fazer sombra.
Jappe: “Estado não pode ter outra função que a de garantir o mínimo de coesão" (Foto: Divulgação)
Realmente, parecemos ter muitas lições a serem revistas e revisitadas. Nesse sentido, a fala de Jappe pode ser um caminho para nos inspirar a retomar a longa estrada que, quem sabe, nos leva para longe dessa espiral de crises que podem decretar nosso fim. “A estrada da emancipação social não pode passar pela tomada do poder ou a conquista do Estado. Este, de qualquer modo, se reduziu quase que inteiramente a uma carcaça vazia. A emancipação social deve passar por uma longa estrada, feita de múltiplas experiências de auto-organização e de reapropriação direta dos recursos materiais e imateriais, lá onde vale a pena” resume o filósofo, no artigo de 2005.
Filósofo e ensaísta nascido na Alemanha, fez seus estudos na Itália e na França. Além de inúmeros artigos na revista alemã Krisis, é autor do livro Guy Debord, sobre a vida e a obra do pensador e ativista francês (publicado no Brasil pela editora Vozes).
Também publicou o livro As Aventuras da Mercadoria (pela Editora Antígona, de Lisboa) que reconstrói a trajetória filosófica e política da crítica do valor. Outras publicações recentes de Jappe são os títulos Violência, mas para quê? e Crédito à morte, ambos construídos com ensaios publicados por ele em revistas francesas. Esses títulos foram publicados em português, no Brasil, pela editora Hedra.