02 Mai 2022
Não existe uma única Europa. Existem interesses específicos de cada país que são diferentes uns dos outros e conflitantes entre si. Nesse horizonte, o único elemento unificador da União Europeia são os Estados Unidos, que tentam encontrar uma mediação possível de fato entre os interesses conflitantes de cada Estado europeu.
A opinião é do sinólogo italiano Francesco Sisci, em artigo publicado por Settimana News, 29-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há sentimentos muito diferentes sobre a guerra na Ucrânia na Europa, e, na realidade, os Estados Unidos não são o pivô nem o impulso principais contra a Rússia.
Os países mais próximos do front, os do antigo império soviético, como os três países bálticos (Lituânia, Estônia e Letônia), a Polônia, a Eslováquia, a Moldávia e a Romênia estão fortemente comprometidos contra a Rússia e talvez até gostariam de ir à guerra ao lado da Ucrânia.
Do outro lado, está a Alemanha, o único país que mais se beneficiou desde o fim da Guerra Fria na Europa.
A Alemanha se reunificou, colocou países como a Polônia ou os bálticos sob o seu guarda-chuva econômico e afastou a ameaça geoestratégica russa com uma nova linha de aliados da Otan e com uma linha de países “tampão”, como Bielorrússia e Ucrânia. Além disso, também contava com a fidelidade de Moscou como seu maior fornecedor de dinheiro, o bem de que a Rússia mais precisava.
Porém, a conquista russa da Crimeia em 2014 e o substancial golpe de Estado pró-Rússia na Bielorrússia em 2020 reduziram o espaço de segurança alemão. Uma eventual queda da Ucrânia completamente sob a égide russa aproximaria perigosamente Moscou de Berlim.
Então, hoje a Alemanha tem que fazer as contas com o fracasso da sua política de comprar a benevolência da Rússia, contratando dela 60% das suas importações de gás e, por isso, deve repensar todo o seu planejamento energético, e aqui há enormes custos econômicos a serem considerados.
Mas, em um país bem consciente do drama de ter sido dividido em dois até 30 anos atrás, com uma parte ocupada de fato pelos russos, o avanço agressivo na Ucrânia é o retorno de um pesadelo.
De outro lado, ainda existem países como a Itália e talvez até a França, onde o conflito parece quase distante e remoto, e onde os seus custos são hoje a única coisa clara. Portanto, o aumento do gás nos boletos é um elemento fortemente divisivo.
Nessa situação, fica claro que Moscou quer/deve jogar o velho princípio do “divide et impera”, colocando de um lado os interesses da Polônia, de outro os interesses alemães, e de outro ainda os da Itália ou da França. Assim, a Rússia poderia facilmente estender sua influência política sobre todo o continente e depois pressionar para extrair vantagens estratégicas, mas também econômicas, de cada país separadamente.
Nessa situação, portanto, não existe uma única Europa. Existem interesses específicos de cada país que são diferentes uns dos outros e conflitantes entre si.
Nesse horizonte, hoje, assim como depois da Segunda Guerra Mundial, o único elemento unificador da União Europeia são os Estados Unidos, que tentam encontrar uma mediação possível de fato entre os interesses conflitantes de cada Estado europeu.
O “front único” europeu hoje quer sanções contra a Rússia como escolha mediana entre franceses e italianos, que gostariam de fazer pouco, e poloneses e bálticos, que gostariam de fazer muito em relação à Ucrânia.
Em outras palavras, hoje, assim como depois da Segunda Guerra Mundial, se não fossem os Estados Unidos, a Europa estaria em guerra internamente entre os aliados da Rússia e seus inimigos, e entre eles, com polarizações de geometria variável.
Hoje, assim como há 80 anos, os Estados Unidos “fazem” a Europa. Os europeus deveriam estar conscientes disso e se comportar consequentemente em relação com os Estados Unidos.
Os Estados Unidos, longe de serem o foco da guerra na Europa, são a verdadeiro contenção contra a extensão do conflito no continente. A política agressiva do presidente russo, Vladimir Putin, de fato, faz a Europa voltar ao seu passado ancestral, atormentado por massacres entre vizinhos por milhares de anos.
Porém, se os europeus se esquecerem desse horizonte amplo, que eles assumiram como evidente por 80 anos, mas que não é nada evidente, então a guerra na Ucrânia chegará até o seu quintal. Para a Itália, na prática, uma Rússia mais agressiva poderia fomentar novamente divisões nos Bálcãs, que ameaçariam diretamente todo o Adriático, de Trieste para baixo.
Isso não significa que os Estados Unidos sejam perfeitos e que as suas relações com a Europa como um todo e com cada país europeu sejam isentas de defeitos, pelo contrário. Mas serve para lembrar a todos o horizonte dentro do qual nos movemos.
Por um lado, há um retorno de fato a uma política do século XIX que mede tudo com o metro do espaço vital, um conceito que não admite um fim e, portanto, leva a uma série de guerras infinitas.
Por outro lado, há uma ideia diferente de basear as relações entre os Estados em um crescimento econômico social comum. Esse crescimento também não é uma panaceia e tem mil problemas, mas pelo menos limita em princípio o recurso à violência, mesmo que os Estados Unidos tenham sido os primeiros a entrar em guerra muitas vezes.
Se a Rússia quisesse combater a presença e a influência estadunidenses na Europa de forma positiva, deveria ter proposto aos Estados europeus um modelo mais pacífico, mais liberal, mais aberto do que o estadunidense.
Na realidade, a agressividade estadunidense real ou presumida teve como resposta uma atitude ainda mais agressiva, menos pacífica, menos liberal e menos aberta.
Por que os europeus, então, deveriam escolher a Rússia aos Estados Unidos hoje? Os países europeus podem escolher a Rússia em prol de vantagens econômicas de curto prazo, por medo da sua ira, porque, no fim, Washington assusta menos, é mais bondosa, mais tolerante.
Além disso, em nome da paz, e, precisamente em nome de um princípio de liberdade e abertura, é oportuno tentar “dar a outra face” política. Então, é preciso encontrar uma solução que minimize os danos das batalhas e leve a um cessar-fogo o mais rápido possível, evitando degenerações progressivas.
Mas isso não significa nem deve significar não entender o horizonte em que estamos nos movendo. No front da Igreja, por exemplo, os ortodoxos estão tentando há mais de um mês declarar uma espécie de guerra santa na Ucrânia. A essa guerra santa dos russos, alguns ucranianos ou poloneses talvez gostariam de responder com a sua própria “contra-guerra santa”.
Seria uma loucura, um retorno à Idade Média, e a sábia resposta do papa é rejeitar o conflito de um contra o outro, abençoando tanto russos quanto ucranianos. O papa também buscou e busca um diálogo com o Patriarca Kirill.
No entanto, esses árduos esforços de paz não devem nos fazer perder de vista que, gostemos ou não, Kirill quer a guerra santa, enquanto o papa não a quer. Os dois não são a mesma coisa, mesmo que, em nome da paz, o papa provavelmente não queira dizer isso.
A atual política pró-europeia dos Estados Unidos, além disso, tem custos enormes em casa. Uma parte dos estadunidenses, com razão ou não, estão cansados de pagar a conta dos europeus que, depois, no fim, nem ficam agradecidos.
O instinto de alguns estadunidenses de extrema direita teria sido o de dividir a Europa com Putin, o que levaria ao fim definitivo da União Europeia.
Nesse sentido, talvez seja dever dos países europeus, por conta da sua própria independência política e econômica, tentar auxiliar certas políticas estadunidenses e não se opor a elas. Se Washington mudasse de atitude, Moscou chegaria ao quintal deles.
Talvez seja justo que os russos dominem o Mediterrâneo, mas isso mudaria 80 anos de um status quo que funcionou, trouxe desenvolvimento e maior paz.
A oferta russa, por sua vez, está bem distante da oferta estadunidense, para ser generoso.
Em que horizonte a China pode e deve estar aqui? A ideologia que move as ações de Putin e as de uma certa direita estadunidense e europeia deveria assustar Pequim até a morte.
São ideias profundamente racistas, que defendem um velho supremacismo branco e ocidental contra tudo aquilo que é diferente.
Essa ideia leva inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, a um conflito existencial da China com um Ocidente racista. Hoje, o contraste com o governo da China está nos valores de liberdade, de mercado, não religiosos e raciais. O fato de Pequim parecer hoje aliada dos supremacistas brancos russos contra os liberais dá a impressão de que talvez também aqui, como no caso da Ucrânia, tenha havido um erro de avaliação.
O mesmo erro que a Europa e a Itália não podem se dar ao luxo de cometer.
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EUA e Rússia: a encruzilhada europeia. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU