19 Abril 2022
Os bispos críticos ao Caminho Sinodal alemão repetem, mais uma vez, uma compreensão da Escritura e da Tradição como duas realidades completamente a-históricas, suspensas em um limbo de sacralidade imunitária (para preservar a ideia de Igreja que os signatários da carta têm, mas que não é aquilo que a Igreja deve ser em nome do Evangelho, e certamente não é a ideia de Igreja do Papa Francisco).
A opinião é do teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 13-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois da carta aberta dos bispos poloneses e da dos bispos dos países nórdicos, chegou a terceira carta aberta sobre o Caminho Sinodal alemão – assinada por um grande número de bispos atuais e eméritos [disponível em inglês aqui]. Trata-se do texto mais duro, porque repudia totalmente o processo sinodal da Igreja Católica alemã, no qual não haveria nada de bom ou de evangélico; mas também do texto mais contraditório em si mesmo.
Porque, talvez, mais do que no conteúdo da carta, a mensagem está nos signatários (74 ao todo, neste momento). Uma espécie de “quem é quem” dos difamadores estadunidenses do Papa Francisco: de Burke a Chaput, de Cordileone a Kagan. A esmagadora maioria dos que assinaram é, justamente, estadunidense (47 prelados); envolveu, quase inteiramente, o corpo episcopal da Tanzânia (14 bispos) – e a África é a segunda área de origem dos signatários (18 bispos).
Entre os cardeais não estadunidenses, podem ser lidas as assinaturas de Arinze (Nigéria), Napier (África do Sul) e Pell (Austrália). Há quatro bispos canadenses, enquanto quem mantém elevada a honra do Velho Continente europeu (o único) é Dom Camisasca – emérito de Reggio Emilia.
Se levarmos em conta a oposição militante contra Francisco, levada adiante pela grande maioria dos signatários de forma explícita ou sorrateira, a primeira contradição que salta aos olhos é a acusação geral dirigida à Igreja alemã: na qual “os atos empreendidos pelo Caminho Sinodal, deixando de se pôr à escuta do Espírito Santo e do Evangelho, minam a credibilidade da autoridade da Igreja, incluindo a do Papa Francisco…”.
É difícil sustentar com credibilidade esse ponto da correção fraterna quando, há anos, não se faz mais nada além de minar abertamente a autoridade do atual pontífice.
Os outros seis pontos da crítica dirigida ao Caminho Sinodal alemão dizem respeito: à ausência de Escritura e da Tradição nos trabalhos e nos textos, que seriam inspirados em análises sociológicas e ideologias do momento; uma compreensão errônea da liberdade cristã no sentido de autodeterminação, e não como capacidade de fazer o que é certo; a ausência total da alegria do Evangelho; a dimensão substancialmente burocrática e, portanto, antievangélica, com uma submissão ao mundo e às ideologias; a concentração na questão do poder, que estaria “em contraste com a natureza real da vida cristã” – a Igreja, de fato, não seria simplesmente uma “instituição, mas uma comunidade orgânica; não igualitária, mas familiar, complementar e hierárquica”.
A última acusação movida contra o Caminho Sinodal é aquela definida como “terrivelmente irônica”, pelo fato de ele ser um “exemplo destrutivo que poderia levar alguns bispos, e levará muitos leigos católicos, a desconfiarem da própria ideia de sinodalidade – impedindo assim ainda mais a necessária conversação da Igreja sobre o cumprimento da missão de converter e santificar o mundo”.
Mesmo deixando de lado o autoritarismo dessas palavras, nas quais não se entende de onde os signatários tiram a certeza do fato de que muitos leigos desconfiarão da sinodalidade por causa do Caminho Sinodal alemão (enquanto os bispos se salvam dessa deriva por meio de um subjuntivo), não se compreende (na medida em que não é explicado) como e por que o Caminho Sinodal gera, em si mesmo, uma crise da sinodalidade.
Muito mais do que as outras, esta carta aberta está imbuída de ideologia – que tem a mesma estrutura daquela que os signatários pensam encontrar no Caminho Sinodal alemão (sem, porém, jamais se referir por uma única vez a algo de concreto presente nos textos, nas deliberações ou nas discussões da assembleia).
Tudo é tão genérico e sem referência que é difícil compreender como tal carta pode contribuir para o desejado realinhamento do Caminho Sinodal com a doutrina católica. Provavelmente porque a única solução possível vista pelos bispos que assinaram a carta é a da aniquilação do Caminho Sinodal como tal. Acima de tudo e de forma explícita.
Porque o verdadeiro objeto da disputa, aquele ao qual os signatários realmente visam, parece não ser tanto o Caminho Sinodal alemão, mas sim o Sínodo sobre a Sinodalidade da Igreja universal – como legado eclesiológico do Papa Francisco.
É nesse âmbito que nada deveria ocorrer, pois qualquer coisa que não seja a repetição do já existente estaria fora da Tradição (e qualquer coisa que não seja automaticamente atribuível à Escritura não seria correspondente ao Evangelho).
Repete-se, mais uma vez, uma compreensão da Escritura e da Tradição como duas realidades completamente a-históricas, suspensas em um limbo de sacralidade imunitária (para preservar a ideia de Igreja que os signatários da carta têm, mas que não é aquilo que a Igreja deve ser em nome do Evangelho, e certamente não é a ideia de Igreja do Papa Francisco).
Mas, por trás dessa função imunizante e anestésica da Tradição e das Escrituras, está o verdadeiro problema desse modo de entender o catolicismo e a sua instituição: no qual uma certa ideia de Deus predetermina a sua realidade (com a ideia superior ao real, por um lado, e com a posse humana da ideia como instância normativa da própria realidade de Deus, por outro).
O Caminho Sinodal tem todas as suas limitações – e textos como essa carta aberta não ajudam a evidenciá-los construtivamente, acabando por dispersar também aquilo de bom que se poderia e se deveria encontrar nas cartas dos bispos poloneses e nórdicos.
Mas essa carta da resistência estadunidense ao pontificado de Francisco mesmo tem as suas limitações: custa terrivelmente a aceitar um Deus que se faz carne; pelo contrário, tenta de todos os modos salvá-lo de ser precisamente assim e não de outra forma.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Sínodo alemão: mais uma carta aberta contrária. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU