Pesquisa analisou amostras de sangue de 462 adultos; 75,6% deles tiveram resultados acima do limite de segurança estabelecido pela OMS.
A reportagem é de Rita Silva e Sandra Miyashiro, publicada por EcoDebate, 22-03-2022.
Estudo realizado pelo LEpiMol (Laboratório de Epidemiologia Molecular) da Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará), em parceria com a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e o WWF-Brasil, mostrou uma alta taxa de concentração de mercúrio (Hg) no sangue de residentes de áreas urbanas e ribeirinhas da bacia do Baixo Tapajós, no Estado do Pará.
Imagem: localização da bacia dos Tapajós | Fonte: WW-Brasil
O metal, que é utilizado em zonas de garimpo para separar e extrair o ouro, foi encontrado em todos os 462 participantes da pesquisa. Desse total, 75,6% evidenciaram exposição acima do limite de segurança de 10 µg/L estabelecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
Os resultados, que reúnem análises de 203 indivíduos da área urbana de Santarém (PA) e 259 participantes de comunidades ribeirinhas, estão em um artigo publicado na revista científica “International Journal of Environmental Research and Public Health”.
“É revoltante o quanto isso está se tornando cada vez mais grave e destruidor para nossas vidas”, comenta Juci Bentes, ativista ambiental e integrante do Coletivo Jovem Tapajônico. “O mercúrio vem sendo lançado no leito do rio e se transformando em material orgânico, assim ele passa a integrar a cadeia alimentar, contaminando os peixes que vivem no rio. Por isso, é urgente interromper as atividades garimpeiras ilegais na nossa região”, destaca.
Para a coordenadora do estudo, a professora Heloisa do Nascimento de Moura Meneses, da Ufopa, mesmo que os garimpos não estejam próximos ao Baixo Tapajós, os dados mostram que a população está exposta aos efeitos da contaminação mercurial que ocorre atualmente na Bacia Amazônica. “Assim como o garimpo, o desmatamento e as queimadas contribuem para a contaminação ambiental. Temos um conjunto de fatores que afetam o Rio Tapajós e, consequentemente, as pessoas que vivem às suas margens”, explica.
Para Raul Valle, Diretor de Justiça Socioambiental do WWF-Brasil, esse tipo de pesquisa deve ocorrer com mais frequência e em outros lugares da Amazônia, para que possamos ter clareza da dimensão do problema, que hoje é quase invisível.
“Isso pode ajudar a mudar a posição de muitos parlamentares da região que atualmente apoiam, de forma pouco consciente, projetos de lei que vão piorar esse problema, como é o caso do PL 191/20, que pretende abrir as terras indígenas para mineração e garimpo. Não são apenas as comunidades indígenas que serão afetadas, mas também as pessoas de grandes centros urbanos serão diretamente atingidas. Não se trata, portanto, de um problema local, mas de um grande problema regional”.
O PL 191/20 foi listado como prioritário pelo Governo Bolsonaro, que tenta agora aprovar a urgência para votá-lo apressadamente. Ele integra um conjunto de projetos de lei apelidado de “Pacote da Destruição”, que inclui ainda projetos que estimulam o roubo de terras públicas (grilagem), que fragiliza o licenciamento ambiental, impossibilita a demarcação de novas terras indígenas, dentre outros.
O trabalho de campo do estudo foi realizado entre 2015 e 2019, com coleta de sangue para análises dos níveis de mercúrio em laboratório. No total, participaram adultos com mais de 18 anos, moradores de 8 comunidades do Rio Tapajós, uma comunidade do Rio Amazonas e da área urbana de Santarém.
Imagem: localização de Santarém (PA) e da bacia do Rio Amazonas (em azul)
Para a coordenadora do estudo, os dados mostram que todas as pessoas que possuem um hábito frequente de consumir peixe estão sob risco de exposição ao mercúrio. “Isso não se restringe apenas às áreas ribeirinhas, mas também à zona urbana”, diz.
Apesar disso, Heloisa do Nascimento explica que o peixe tem uma grande importância do ponto de vista nutricional, econômico, cultural e até mesmo turístico, portanto, o consumo de peixes não deve ser restringido.
“A contaminação ambiental por mercúrio é silenciosa, sem cor e odor, mas seus efeitos podem ser de longo prazo, inclusive comprometendo o feto, o recém-nascido e a criança e podem ser confundidos com outras doenças”, explica a pesquisadora.
De acordo com o estudo, a prevalência da exposição de mercúrio foi maior na população ribeirinha (90%) do que naquelas que vivem em áreas urbanas (57,1%). Na área urbana, o nível médio de mercúrio era 33,6 ± 36,7 µg/L, enquanto um nível de 55,5 ± 65,7 µg/L foi registrado na área ribeirinha. Comparando as populações ribeirinhas, a prevalência de exposição de mercúrio na beira do rio Tapajós (59,5%) foi maior que a do rio Amazonas (40,5%).
Em resumo, o grupo de alta exposição (que exibiu níveis acima dos limites de segurança) apresentou concentrações quase 4 vezes maiores do que o limite de segurança: 77,1% tinham níveis de Hg no sangue variando entre 10 e 50 µg/L; 11,2% entre 51 e 100 µg/L; 6,9% entre 101 e 200 µg/L, e 4,9% exibiam níveis de Hg 200 µg/L. Surpreendentemente, o nível mais alto de Hg foi 296,5 µg/mL, detectado em uma mulher de 47 anos de idade morando em um local ribeirinho, quase 30 vezes maior do que o limite preconizado pela OMS.
No corpo humano, alta concentração de mercúrio pode causar danos principalmente ao sistema nervoso central, fígado, rins, os sistemas cardiovascular, gastrointestinal e imunológico também podem ser prejudicados.
O estudo também considerou a variante idade e sexo. O grupo de 40-60 anos exibiu concentrações de Hg no sangue relativamente mais altos do que os participantes de 21-40 anos, com os homens apresentando níveis mais altos do que as mulheres. A bioacumulação de mercúrio associada ao consumo de peixe pode explicar essa variação.
Diante dos resultados, Walter Kumaruara, que integra o Conselho da Juventude de Santarém (PA), diz que se preocupa com os pais, que vivem em uma das áreas analisadas na pesquisa. “Meu pai é pescador e eles dependem do peixe para se alimentar. A gente também come o que vem de lá. Não tem outro jeito, é uma questão de vida”, diz.
Das mulheres amostradas, 64,7% estavam em idade fértil (18 a 49 anos), e destas, 69,9% tinham níveis médios de mercúrio de 36,2 µg/L. Isto suscita preocupações, dado o maior risco de malformações congênitas em recém-nascidos, cujas mães foram expostas ao mercúrio durante a gravidez. O metilmercúrio pode atravessar a barreira placentária e hematoencefálica causando danos ao desenvolvimento do sistema nervoso central. Pequenas quantidades são suficientes para induzir problemas de desenvolvimento no feto.
A pesquisadora da Fiocruz, Sandra Hacon, lembra que a contaminação por mercúrio pela exploração do garimpo na Bacia Amazônica, especificamente no rio Tapajós, já acontece desde a década de 1980. De acordo com ela, os primeiros estudos publicados no início dos anos 1990, por instituições nacionais e internacionais, já apontavam elevados níveis do metal em peixes e nas populações indígenas. “Os resultados da atual pesquisa realizada em grupos populacionais ribeirinhos e urbanos confirmam a presença do mercúrio no ecossistema aquático e nos grupos analisados, o que representa uma grande preocupação ambiental e, consequentemente, um grave problema de saúde pública, considerando a propriedade neurotóxica e a capacidade de persistência e reciclagem do mercúrio na bacia Amazônica”.
Meneses, Heloisa d.N.d.M., Marcelo Oliveira-da-Costa, Paulo C. Basta, Cristiano G. Morais, Romulo J.B. Pereira, Suelen M.S. de Souza, and Sandra d.S. Hacon. 2022. “Mercury Contamination: A Growing Threat to Riverine and Urban Communities in the Brazilian Amazon” International Journal of Environmental Research and Public Health 19, no. 5: 2816. Disponível aqui.