Traditionis custodes, entre princípio, exceções e descuidos: é legítimo criar “reservas indígenas” do anticoncílio? Artigo de Andrea Grillo

Foto: Lumen roma | Wikimedia Commons

25 Fevereiro 2022

 

A lógica feudal do “privilégio” concedido a alguns sujeitos, grupos, associações ou fraternidades pode ser um sistema útil para gerir as fases de transição. Não para instituir mundos paralelos. Com a liturgia hoje não se brinca. Foi o Concílio Vaticano II que fez dela uma “linguagem comum” da qual não se pode abusar.

 

O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 24-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

A lógica do motu proprio Summorum pontificum foi elevar a nível universal tanto a “forma ordinária” quanto a “forma extraordinária” do rito romano. Essa forma de procedimento “geral” pensava em resolver a questão do “conflito ritual” tornando vigentes, ao mesmo tempo, no mesmo espaço-tempo, duas lógicas rituais profundamente diferentes. A confusão decorrente desse procedimento, que se baseava em uma argumentação sistemática sem fundamento racional nem histórico, mas apenas emotivo, foi muito grande.

 

A lógica do motu proprio Traditionis custodes recém-restituiu uma coerência ao desenvolvimento orgânico da liturgia, que não pode suportar nem sistematicamente nem pastoralmente a coexistência de dois ritos contraditórios entre si. A contradição vem do fato de que o segundo foi elaborado para superar os limites e as distorções do primeiro. Por isso, restabelecer uma “única lex orandi vigente” foi, acima de tudo, a retomada do bom senso e um ato de clareza elementar.

 

É evidente que, vindo depois de 14 anos de desenvolvimento descontrolado da “dupla lex orandi”, o Traditionis custodes encontrou um panorama complicado de usos, abusos, pertencimentos, apegos. Desde o início, ficou claro que, em vez de um regime “generalista” de dupla lex orandi, haveria uma única forma vigente, com a possibilidade de conceder, a sujeitos ou lugares individuais, a exceção à regra, para conservar algumas diferenças e circunstâncias que mereciam uma exceção à regra. Isso é razoável.

 

O decreto com o qual se concede que a Fraternidade de São Pedro possa fazer uso da “lex orandi” vigente antes da reforma – não só para o missal, mas para toda a experiência litúrgica – consiste em uma passagem que mostra os limites intrínsecos da solução fornecida pelo Traditionis custodes. Cujo valor permanece indubitável, mas cuja aplicação pode degenerar no momento em que se permite que uma fraternidade inteira celebre integralmente como se o Concílio Vaticano II não tivesse ocorrido.

 

Certamente, superamos a crise que havia tornado possível, até mesmo para cada paróquia, ter, em seu interior, um “grupo resistente”. Agora, isso não é mais possível. Não ouviremos mais cardeais dizerem: “O papa quer que em cada paróquia se celebre também com o Missal de 1962”.

 

Mas, com esta solução introduzida pelo Traditionis custodes, que é radicalmente diferente e certamente melhor, falar de “comunhão eclesial” para comunidades em que cada ato ritual é exatamente idêntico ao realizado naquelas outras “fraternidades” que perderam a comunhão com Roma assume um efeito totalmente paradoxal. Quando a regra comum muda, as exceções são possíveis, mas somente se limitadas e temporalmente definidas.

 

Se for decidido que todos dirigirão pela direita, algumas exceções para a “direção pela esquerda” serão possíveis, desde que seja delimitada pessoal e espacialmente. Se a direção pela esquerda se torna uma prerrogativa subjetiva, que pode ser estendida à vontade para qualquer lugar, isso se torna mais uma forma de ameaçar a comunhão do tráfego.

 

Quem acredita profundamente na virada do Concílio Vaticano II e na reforma litúrgica que dele surgiu não pode, de modo algum, admitir estruturalmente e sine die que se possa celebrar com o rito pré-conciliar, sem participar da responsabilidade de construir “reservas indígenas” do anticoncílio que possam ostentar uma proteção papal. Isso certamente é diferente de um desígnio geral de contestação da Reforma, como ele havia derivado do uso intemperante do Summorum pontificum, que foi corretamente bloqueado.

 

Mas mesmo essa solução diferente levanta inevitavelmente uma questão sistemática, antes que pastoral. Se uma “fraternidade” inteira pode fazer diferentemente de todos os outros irmãos e pode fazer isso sem limites que não sejam pessoais ou espaciais, que tipo de comunhão é essa que é aqui preservada?

 

No nível sistemático, antes que litúrgico, a exceção se torna não apenas uma regra paralela, mas também uma Igreja paralela. Parece-me difícil poder justificar isso teologicamente. E é difícil contestar que se trata de um problema não só de disciplina, mas também de doutrina.

 

Observo mais um detalhe, singularmente dissonante: no Decreto, por um descuido evidente, deixou-se uma das expressões mais infelizes do Summorum pontificum, que estabelecia, como critério geral, que todo padre fosse habilitado a celebrar a “missa sem povo” indiferentemente em uma ou em outra forma. Essa lógica torna a relação com “livros litúrgicos” diferentes uma prerrogativa inquestionável do sujeito clerical. Exatamente o contrário daquilo que o Traditionis custodes diz, quando afirma que os únicos livros em vigor são aqueles que surgiram do Concílio Vaticano II.

 

Ora, no Decreto, de modo limitado a quem pertence à Fraternidade de São Pedro, prevê-se que eles só podem celebrar nas igrejas e nos oratórios privados, enquanto em outros lugares devem obter o consentimento do Ordinário local, exceto para a celebração da “missa privada”. Portanto, pelo menos no que diz respeito à missa privada dos membros da Fraternidade de São Pedro, todo bispo perde a possibilidade de orientar e disciplinar a liturgia na sua diocese.

 

Essa lógica feudal do “privilégio” concedido a alguns sujeitos, grupos, associações ou fraternidades pode ser um sistema útil para gerir as fases de transição. Não para instituir mundos paralelos. Não estamos mais nos tempos em que o papa podia conceder a uma nação inteira o “privilégio de uma dispensa de certas obrigações do jejum quaresmal”. Com a liturgia hoje não se brinca. Foi o Concílio Vaticano II que fez dela uma “linguagem comum” da qual não se pode abusar.

 

Pensar que, por ser membro de uma determinada “fraternidade”, se possa ostentar o direito, garantido por um privilégio papal, de poder celebrar a “missa privada no rito pré-conciliar”, sem importar onde e sem que ninguém possa levantar a mínima objeção, isso é, de fato, um recuo geral para uma forma ecclesiae que só pode ser compatível com o pré-Concílio, e que um papa “filho do Concílio” não pode consentir de modo algum.

 

Se a exceção pode ser permitida apenas provisoriamente, essa “liberdade da missa privada” em lugares não controláveis deve ser necessariamente proibida. O descuido do Decreto merece uma correção imediata a posteriori, pois não foi corrigido antes pelos órgãos competentes. A correção é necessária pelos motivos teológicos e sistemáticos, eclesiais e espirituais que foram bem expressados pelo Traditionis custodes e pela carta que o acompanhou. Para que não se diga que as palavras do Traditionis custodes são “palavras ao vento”.

 

Anexo aqui o texto do Decreto:

 

DECRETUM

 

Sanctus Pater Franciscus, omnibus et singulis sodalibus Instituti vitae consecratae “Fraternitas Sancti Petri” nuncupati, die 18 iulii 1988 erecti et a Sancta Sede pontificii iuris declarati, facultatem concedit celebrandi sacrificium Missae, sacramentorum necnon alios sacros ritus, sicut et persolvendi Officium divinum, iuxta editiones typicas librorum liturgicorum, scilicet Missalis, Ritualis, Pontificalis et Breviarii, anno 1962 vigentium.

 

Qua facultate uti poterunt in ecclesiis vel oratoriis propriis, alibi vero nonnisi de consensu Ordinarii loci, excepta Missae privatae celebratione.

 

Quibus rite servatis, Sanctus Pater etiam suadet ut sedulo cogitetur, quantum fieri potest, de statutis in litteris apostolicis motu proprio datis Traditionis Custodes.

 

Datum Romae, Sancti Petri, die XI mensis Februarii, in memoria Beatae Mariae Virginis de Lourdes, anno MMXXII, Pontificatus Nostri nono.

 

Franciscus

 

Decreto

 

O Santo Padre Francisco, a todos e a cada um dos membros do Instituto de Vida Apostólica “Fraternitas Sancti Petri”, fundado em 18 de julho de 1988 e reconhecido pela Santa Sé com a condição jurídica “de direito pontifício”, outorga a permissão para celebrar o sacrifício da Missa, o ritual dos sacramentos e outros ritos sagrados, assim como recitar o Ofício Divino segundo as edições típicas dos livros litúrgicos vigentes em 1962, a saber, o Missal, o Ritual, o Pontifical e o Breviário Romano.

 

Poderão usar essa faculdade em suas próprias igrejas ou oratórios; em outros lugares, no entanto, somente com o consentimento do Ordinário do lugar, exceto para a celebração privada da Missa.

 

Sem que obste ao que foi dito anteriormente, o Santo Padre sugere que, na medida do possível, também se reflita sobre o estabelecido no motu proprio Traditionis Custodes.

 

Dado em Roma, junto a São Pedro, em 11 de fevereiro, memória de Nossa Senhora de Lourdes, do ano de 2022, nono do meu Pontificado.

 

Francisco

 

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