16 Fevereiro 2022
Ironicamente, aqueles que defendem a discriminação contra as pessoas LGBTQ em instituições católicas muitas vezes o fazem apelando para a liberdade religiosa e para o seu direito ao livre exercício da religião.
A opinião é de Daniel P. Horan, franciscano estadunidense, diretor do Centro de Espiritualidade e professor de Filosofia, Estudos Religiosos e Teologia no Saint Mary’s College, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 09-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Igreja tem vergonha e remorso legítimos por algumas coisas que a instituição fez, opiniões que adotou e ensinamentos que ministrou ao longo dos séculos. Isso inclui as Cruzadas e a sua islamofobia adjacente, a justificação da escravidão, a cumplicidade no colonialismo, a proibição da liberdade religiosa, a imagem e o tratamento das mulheres, e a sua história de antissemitismo, entre outros.
Ao longo do tempo, passamos a reconhecer que essas atitudes e comportamentos são indefensáveis. E eu acredito que, com o tempo, a história também julgará a discriminação e o tratamento dado às pessoas LGBTQ por parte da Igreja e de muitos de seus membros como igualmente repreensíveis.
Recentemente, vários sinais sugerem que a minha intuição está correta. Tomemos, por exemplo, a declaração ousada e direta do cardeal luxemburguês Jean-Claude Hollerich, que lidera a conferência pan-europeia dos bispos católicos. De acordo com um artigo recente, ele disse que considerava errada a avaliação da Igreja sobre as relações homossexuais como pecaminosas.
Pedindo uma reforma substancial do ensino da Igreja sobre esse assunto, ele acrescentou: “Eu acredito que o fundamento sociológico-científico desse ensino não está mais correto”.
Admitidamente, o aguçado senso de perspectiva e de crítica direta de Hollerich a esse ensino problemático da Igreja representa uma espécie de “visão minoritária” entre as lideranças eclesiais de hoje. No entanto, essa não foi a primeira vez que a visão minoritária ostensiva chegou a prevalecer, no fim das contas, contra alguma perspectiva teológica ou convenção social aparentemente de longa data.
Basta olharmos no século passado para o caso do teólogo jesuíta John Courtney Murray que defendeu a congruência da “experiência americana” de liberdade religiosa como um direito humano básico e o ensino da Igreja, que na época a proibia. Antes do Vaticano II, ele foi silenciado e punido pelas suas opiniões. Depois do Concílio, seus pontos de vista se tornaram a doutrina oficial e autorizada da Igreja, conforme articulada na declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae.
Ironicamente, aqueles que defendem a discriminação contra as pessoas LGBTQ em instituições católicas muitas vezes o fazem apelando para a liberdade religiosa e para o seu direito ao livre exercício da religião.
Além do desenvolvimento do ensino sobre a liberdade religiosa, lembro-me de outra situação do século XVI, a do frade dominicano Bartolomé de las Casas e da sua defesa da dignidade e do valor inerentes aos povos originários do Hemisfério Ocidental, contra uma argumento teológico e civil predominante que rejeitava os direitos das comunidades indígenas na época da colonização espanhola do chamado “Novo Mundo”.
O já clássico confronto teológico dentro da Igreja da Espanha entre Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda sobre esse tema ficou conhecido como o “Debate de Valladolid”, em referência à cidade em que ele ocorreu entre 1550 e 1551. Estava em jogo o status antropológico e moral das recém-encontradas populações indígenas das Américas.
A lógica colonial da época, moldada por uma antropologia aristotélico-tomista defendida por Sepúlveda e outros, sustentava a hipótese de Aristóteles de que certos povos são “escravos naturais” e que, na realidade, seria do seu interesse serem escravizados, por causa da sua suposta inferioridade inerente.
Sepúlveda também argumentava que, como “pagãos”, os povos nativos e suas tradições violavam a lei natural divinamente ordenada, o que justificava ainda mais a sua subjugação pelas mãos dos conquistadores.
O caso defendido por Sepúlveda reinou como a justificação necessária para a continuidade do projeto de colonização espanhola. E o ensino da Igreja da época foi usado para justificar essa atrocidade.
Muitos milhares de indivíduos foram abusados e assassinados como resultado disso, tanto em nome da Coroa quanto em nome de Cristo.
Representando a clara visão minoritária da época, Las Casas rejeitava a premissa dos “escravos naturais” e a inferioridade inerente. Ao contrário de Sepúlveda, que nunca havia visitado o “Novo Mundo”, Las Casas falava a partir da experiência vivida e com conhecimento da realidade das comunidades cuja identidade, valor e direitos estavam sendo debatidos na Europa. Para muitas pessoas, especialmente as lideranças civis e religiosas na Espanha, o argumento era meramente teórico.
Mas Las Casas entendia por experiência própria o que os defensores dos maus tratos aos povos nativos não podiam imaginar: aquelas mulheres e homens indígenas, cujas vidas e modos pareciam estranhos e “incivilizados” aos colonizadores e aos teólogos continentais, eram inerentemente bons, merecedores de igual dignidade e respeito, e deviam ser reconhecidos como filhos de Deus. Os maus-tratos, a escravidão e o assassinato contra eles não podiam ser justificados e eram pecaminosos.
Séculos depois, com a clareza moral e histórica que vem com o tempo, nenhum cristão poderia justificar a posição de Sepúlveda e da Igreja da sua época. É claro que Las Casas estava certo, e a sua defesa se justificava, enquanto a visão colonial então predominante sobre a população nativa é reconhecida hoje como abominável.
Menciono esse caso histórico não porque eu deseje fazer uma falsa equivalência entre a escravidão, os maus-tratos e o assassinatos dos povos indígenas no século XVI e a discriminação e o tratamento a indivíduos LGBTQ hoje.
No entanto, acredito que há pelo menos três pontos dignos de nota para o nosso tempo e para este caso contemporâneo. Primeiro, o ensino da Igreja se desenvolve e, de fato, muda. Isso não ocorre com frequência, mas o ensino mudou e deve mudar quando percebemos que a remota possibilidade de erro em um ensino não infalível é descoberta. A visão da Igreja sobre a escravidão e a liberdade religiosa são apenas dois dos muitos exemplos em que isso ocorreu. E é provável que as visões institucionais atuais sobre o tratamento a indivíduos LGBTQ não apenas devam, mas também irão mudar.
Em segundo lugar, pode ser difícil, no atual momento histórico do debate, entender qual resposta está correta. Devemos resistir a manter o status quo simplesmente porque “sempre foi assim”. É bem possível que a forma como tem sido esteja correta e deva ser mantida, mas também é muito provável que haja algo seriamente errado que precise mudar.
Mas a única maneira de sabermos a resposta certa nesse caso é nos engajando em pesquisas teológicas e em diálogos que levem a sério as experiências dos indivíduos LGBTQ de uma maneira análoga à seriedade com que Las Casas levou as experiências dos indígenas americanos.
Enquanto isso, todas as pessoas devem ser libertadas da discriminação com base na orientação sexual ou de gênero nas instituições católicas e nas comunidades religiosas.
Em terceiro lugar, há uma longa e crescente lista de mulheres e homens que foram demitidos de instituições católicas por causa de seu status ou relacionamentos LGBTQ. Embora possa ser difícil para algumas pessoas verem isso agora, especialmente aquelas em posições de poder e autoridade eclesiásticos, acredito que a história julgará a Igreja com severidade pelo modo como suas instituições e lideranças trataram os indivíduos LGBTQ.
Com o tempo, assim como com as Cruzadas, a colonização e a escravidão, a própria Igreja também verá essa injustiça pelo que ela é: uma discriminação aberta e uma desumanização efetiva das nossas irmãs e irmãos em Cristo, filhos amados de Deus, merecedores de igual respeito, amor e proteção.
O jornalista britânico Christopher Lamb sugeriu recentemente na revista The Tablet, de Londres, que várias declarações papais e novas inclusões de organizações e comunidades anteriormente marginalizadas podem sinalizar que “a Igreja está mudando a sua abordagem em relação aos católicos LGBTQ”.
Vários defensores LGBTQ responderam a essa avaliação aparentemente otimista com cautela e incredulidade. Onde há ceticismo, ele se baseia no reconhecimento da lentidão da mudança necessária e das consequências deletérias que se seguem da manutenção de políticas, práticas e ensinamentos desumanizantes.
A Igreja pode e deve fazer melhor, e a hora é agora. Eu espero que os coirmãos bispos do cardeal Hollerich, especialmente o bispo de Roma, aceitem o chamado do Espírito Santo para fazerem a coisa certa mais cedo ou mais tarde.
O atual processo sinodal é uma dessas oportunidades providenciais para alinhar o ensino da Igreja sobre as pessoas e os relacionamentos LGBTQ com a realidade fundamentada no melhor da pesquisa médica e psicológica.
Não apenas a história julgará o tratamento passado e atual da igreja em relação às pessoas LGBTQ, mas, mais importante, Deus também está julgando a Igreja.
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A história julgará a Igreja com severidade pelo seu tratamento às pessoas LGBTQ. Artigo de Daniel Horan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU