26 Janeiro 2022
É preciso reconstruir a confiança na relação onde a confiança foi brutalmente rompida pela violência da pandemia que nos obrigou a interromper as relações. É uma emergência psíquica: os objetivos “didáticos” da formação devem estar subordinados ao cuidado particular da relação.
A opinião é de Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona. O artigo foi publicado por La Repubblica, 24-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Existirá uma geração Covid? Os danos causados pela epidemia serão comparáveis aos de um trauma? Os nossos filhos estarão destinados a ser as vítimas das brutais feridas abertas pela pandemia? A compreensão inevitável da liberdade que tivemos que sofrer nesse tempo prolongado de emergência sanitária foi, sem dúvida, mais opressiva para eles do que para os adultos. Tudo isso deixará inevitáveis consequências psicopatológicas?
Já expressei a minha opinião em várias ocasiões públicas: não haverá nenhuma geração Covid, a menos que os adultos não favoreçam essa tétrica identificação. Mas isso absolutamente não significa negar que o mundo dos jovens esteja vivendo um momento extremamente difícil.
Sabem muito bem disso aquelas pessoas que, como eu, se ocupam diretamente do cuidado deles. Vimos e vemos o seu desconforto crescer e as suas manifestações mais radicais se acentuarem: automutilação, somatização, retraimento social, dependências patológicas, pânico e depressão. Também vimos e vemos crescer a sua desorientação e a sua raiva, junto com a angústia e a impotência.
Esse mal-estar generalizado deve ser interceptado e acolhido. Não só pelos psicoterapeutas, mas também pelas instituições. Penso sobretudo nas famílias e na escola. Que posição tomar diante desse mal-estar?
Em todo sintoma adolescente, é importante ler uma mensagem em busca do destinatário. É aquilo que muitas vezes ocorre também nas passagens para o ato de automutilação, na raiva que desencadeia a violência, no uso excessivo de substâncias ou nos distúrbios de aprendizagem. Todos esses sintomas de mal-estar são como gritos, invocações, mensagens, justamente, em busca de um destinatário capaz de recebê-los e decifrá-los.
Essa é uma tarefa que cabe às gerações mais velhas: é preciso tentar se situar como destinatários. Isso significa, em primeiro lugar, assumir a responsabilidade de responder. Os genitores sabem primeiro como isso é difícil. Mas os professores e os educadores também são abalados pelo drama desse apelo tão silencioso quanto urgente.
Esta é a maior urgência a que este momento traumático nos confronta: confirmar o recebimento, não fugir desse apelo, saber responder ao seu grito. Significa, em primeiro lugar, não deixar os nossos filhos sozinhos. Nas famílias, mas também na escola.
Trata-se de reconstruir a confiança na relação onde a confiança foi brutalmente rompida pela violência da pandemia que nos obrigou a interromper as relações. É uma emergência psíquica: os objetivos “didáticos” da formação devem estar subordinados ao cuidado particular da relação.
Porque a relação não é apenas o invólucro exterior do ensino, mas também o seu próprio fundamento. Cuidar da relação não significa de forma alguma atribuir a esta geração um destino fatalmente marcado pelas vivências traumatizantes da pandemia.
Muito pelo contrário: cuidar da relação significa tentar fazer com que a experiência avassaladora da Covid se torne uma experiência altamente formativa. É uma passagem de discurso necessária. Acima de tudo, devemos lembrar a nós mesmos disto: o obstáculo que se torna uma prova é o cerne de todo percurso de formação.
É o que também deve ocorrer hoje. Mas para que isso ocorra, os adultos também devem ter confiança nos recursos inestimáveis dos seus filhos. Não por acaso, foram justamente eles que deixaram as elucubrações antivacina aos intelectuais angustiados com a vacina e aos jornalistas de televisão que se improvisam como virologistas, mostrando que entenderam muito melhor do que as gerações mais velhas o significado profundo da vacinação em massa como instrumento fundamental para possibilitar, no menor tempo possível, um retorno coletivo à liberdade.
Nada de vivências conspiratórias, nada de suspeitas paranoicas, nada de divagações insensatas, nada de incertezas.
O impulso para que a vida volte à vida se revelou muito mais forte nas novas gerações do que o nosso medo. É algo que as gerações mais velhas deveriam sempre aprender com as novas: tirar as vestes do paternalismo e do julgamento moralista para aprender com a força inesgotável da primavera.
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Reconstruir a confiança no pós-pandemia. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU