24 Dezembro 2021
“Milhares de pessoas desconectadas trabalham em segundo plano para entregar pacotes que deveriam nos fazer sentir de alguma forma mais conectados. Mas em Nazaré, a 2 mil anos e milhares de quilômetros de distância do frenesi de compras da Amazon, nenhuma van de entrega ou rede de dados era necessária para que uma comunhão fosse formada”, escreve John T. Knowles, escritor sobre fé e cultura, residente em Irving, Texas, EUA, em artigo publicado por America, 22-12-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eu cresci na periferia de Houston. Eu passava as tardes de verão ao ar livre, no calor escaldante, jogando basquete. Canalizei as memórias da aula de educação física: a pressão de corpos em defesa voando para a bola de basquete, minha própria mão quando esbofeteava o couro da bola e dava o toco no outro que estava subindo. Mas na maior parte do tempo daquela rua deserta, eu estava sozinho.
O evento da polícia National Night Out era a única vez que realmente víamos nossos vizinhos. E a única vez, para mim, que pude usar a cesta de basquete em nossa garagem com as crianças de duas portas para baixo.
O calor do verão do hemisfério norte agora passou, e eu troquei os subúrbios de Houston da minha juventude pelos subúrbios de Dallas. Até recentemente, eu trabalhava em um depósito da Amazon e viajava para a zona vazia para além do aeroporto para pegar os pedidos. A Amazon tem quase 1,5 milhão de funcionários, mas ainda assim passei a maior parte dos meus dias sozinho.
Durante um turno no outono passado, duas horas se passaram antes de eu cumprimentar alguém que conhecia. Sozinho entre as coisas que eu estava, como sempre estive no depósito da Amazon. Vi as prateleiras cheias de mercadorias para aquecer e vestir o corpo, amassadas em suas embalagens plásticas individuais. Mas eu mal me vi, o único corpo vasculhando os destroços bem ordenados. Ao meu redor havia abstrações – sinais, ondas de rádio com bits e bytes de dados – até lâmpadas destinadas a simular a “luz do dia”. As roupas que enchiam demais meu carrinho iriam para alguém, eventualmente. Mas no momento – aquele único momento precioso que nos foi dado – ninguém mais estava lá.
Em casa não é muito melhor. Com uma exceção, não sei os nomes dos meus vizinhos. Eu conheço o carteiro, mas nunca conheci meus colegas de trabalho na Amazon que levam as caixas de nosso depósito até minha porta. Ainda não conheço bem meus colegas de quarto.
Milhares de pessoas desconectadas trabalham em segundo plano, para entregar pacotes que deveriam nos fazer sentir de alguma forma mais conectados. Mas em Nazaré, a 2 mil anos e milhares de quilômetros de distância do frenesi de compras da Amazon, nenhuma van de entrega ou rede de dados era necessária para que uma comunhão fosse formada.
A porta do coração de uma mulher estava aberta: Maria, uma menina de cerca de 14 anos. Ela “concebeu pelos seus ouvidos” no dia da Anunciação, como dizem os padres. Frase estranha, mas que nos chama a lembrar que um ouvido atento é, muitas vezes, a porta pela qual Deus entra. Um corpo vivo em crescimento – um menininho – que se aninhava em seu ventre.
O carteiro de Deus trouxe à Maria a pessoa do próprio Cristo. Ela o recebeu de boa vontade, e outra comunhão se formou: o Deus Altíssimo, a mãe e o filho: aquele que veio morar conosco, para nos dar e receber de nós, para morrer conosco e ressuscitar conosco na glória. Jesus, o Cristo, o amado de Deus: aquele com quem não estamos sós, que nos diz para não termos medo.
Estou tentado a ficar sozinho neste Natal: sair para a minha varanda em uma rua deserta, pegando caixas estampadas com um sorriso que só aprofunda minha carranca solitária. Fico tentado a me desesperar com o fato de não conhecer a pessoa que trouxe as caixas, muito menos se ela também tem ou não um sorriso no rosto. Eu saberei que estou provido; não posso dizer que não vou me sentir sozinho.
Mas se o Advento e o Natal nos ensinam algo é que há luz depois das trevas. Talvez eu seja o cara que vai organizar uma National Night Out quando o tempo esquentar novamente. Com o tempo, poderei conhecer as pessoas que moram perto de mim – começando pelos meus colegas de quarto. Posso descobrir onde realmente fica o parque de que todos estão falando e ir para lá com um amigo recém-conhecido. Um corpo próximo ao meu – um encontro pessoal. Onde dois ou mais estão reunidos, querendo não estar sós, Cristo se reúne conosco e reza: “que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti…”.
Nós, que esperamos pela segunda vinda de Cristo, clamamos na esperança de que sua primeira promessa para nós seja cumprida. Dói fisicamente ficar sozinho – e às vezes devemos estar sozinhos até virmos, de corpo e alma, para o céu. No entanto, Emmanuel, cujo próprio nome é Deus-conosco, promete isso: Ele nos toca neste Natal, nos chamando para a Eucaristia, clamando: “Venham comer do meu próprio corpo!”
E quando Cristo nos receber no final, como nós o recebemos no início, os mundos se tocarão. Divisões serão curadas. Nosso isolamento se dissolverá. Sim. Entre. Entre, Senhor Jesus.
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Eu trabalhei em um depósito da Amazon. Isso me ensinou sobre o Natal e sobre ficar sozinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU