16 Dezembro 2021
“No Vaticano existem Sagradas Congregações para vigiar a Doutrina da Fé, para cuidar do clero, da liturgia, dos seminários, da Vida Religiosa, etc. Mas não há Congregação que cuide da fidelidade ao Evangelho. Felizmente, o Papa Francisco abriu uma janela de esperança para nós. Sua humanidade, sua simplicidade, sua proximidade com os pobres, os enfermos e as crianças, sua liberdade de dizer ao clero o que o clero não queria ouvir... Tudo isso nos faz pensar que o clero está se apagando. E isso, precisamente isso, acende a luz da esperança. A Igreja, que vive o Evangelho, tem futuro”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digital, 15-12-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A palavra “clero” não aparece nem sequer uma vez em todo o Novo Testamento. O termo “clero” vem do grego “kleros”, que significa “sorte”. E começou a se utilizar na Igreja durante o século III. Encontra-se em Tertuliano (Monogamia, 12) e mais tarde o retoma Cipriano (Epist. 14, 1). Generalizou-se a partir de Santo Agostinho (Enarratio in Ps. 67) (cf. A Forcellini, Totius Latinitatis Lexicon, vol. II, pág. 233; Henricus Spelthahn, Thesaurus Linguae Latinae, vol. III, 1340-1341; A Faivre, Lexikon für Theologie und Kirche, vol. VI, 131-133).
Mas foi o imperador Constantino que recompensou o alto clero cristão com privilégios adequados. Pois eram os clérigos (e não o cristão-médio), os especialistas em rituais; os que sabiam como executar o “culto do santo e celestial poder” (Carta de Constantino al obispo de Siracusa; Eusebio, Historia eclesiástica, 10. 3, 21, pg. 632. Cf. Peter Brown, Por el ojo de una aguja, Barcelona, Acantilado, 2016, pg. 99).
Historicamente compreende-se a aparição de alguns “privilegiados” que tiveram a “sorte” de ser eles – e somente eles – os que sabiam das leis, ritos e cerimônia tal como a Igreja (do século III ao VI) foi evoluindo, da transparência do Evangelho até a complexidade de uma Religião, que pretendia se impor sobre toda a Europa. Compreende-se que, naqueles tempos, em que o poder e o dinheiro eram os valores determinantes na sociedade, por isso mesmo se valorizava tanto a enorme “sorte” dos que mandavam. Eles – e somente eles – tinham a “sorte”, ou seja, eles eram o “clero”.
Mas, ao mesmo tempo, entende-se que a “sorte” do “clero” também foi uma “desgraça”. Uma desgraça fatal que só agora podemos compreender. Quando a sociedade, a cultura, a política, a economia e até os costumes mudaram, a presumível “sorte” representada pelo “clero” não é valorizada nem estimada. Por não ser mais valorizado, como era valorizado na Idade Média, a “sorte” então que tinham os “clérigos”. Hoje se valoriza a sorte dos capitalistas, dos políticos que triunfam, dos sábios, dos artistas. E mesmo na religião, aqueles que alcançam as posições mais altas que podem ser alcançadas na Igreja triunfam.
Duas consequências – dentre outras – de tudo isso:
1) Todos os dias há menos cidadãos que querem ser clérigos ou pertencer ao clero. Em outras palavras, o “clero” não é mais “sorte”. A sorte é para aqueles que detêm poder e dinheiro terem sucesso na sociedade de hoje.
2) O mais importante e o mais sério que aconteceu na Igreja é que a religião se impôs e o Evangelho foi marginalizado. O que quer dizer que a Igreja ficou desorientada. Porque a Igreja nasceu do Evangelho. E segundo o Evangelho, os apóstolos (e seus sucessores) receberam de Jesus o mandato de tornar o Evangelho presente em todo o mundo (Mt 28, 16-20; Mc 16, 14-15; Lc 24, 46-49; Jo 20, 30-31). E, na realidade, o que a Igreja faz de melhor, o que mais se preocupa e o que mais exige é manter e propagar, na medida do possível, a Religião que os “clérigos” ensinaram desde o século III até os dias atuais. E se formos honestos, temos que admitir que foi a religião que matou Jesus. Quem mais sentenciou a morte de Jesus? (Jo 11, 47-53).
E termino confessando esse fato estranhamente para mim: no Vaticano existem Sagradas Congregações para vigiar a Doutrina da Fé, para cuidar do clero, da liturgia, dos seminários, da Vida Religiosa, etc. Mas não há Congregação que cuide da fidelidade ao Evangelho.
Felizmente, o Papa Francisco abriu uma janela de esperança para nós. Sua humanidade, sua simplicidade, sua proximidade com os pobres, os enfermos e as crianças, sua liberdade de dizer ao clero o que o clero não queria ouvir... Tudo isso nos faz pensar que o clero está se apagando. E isso, precisamente isso, acende a luz da esperança. A Igreja, que vive o Evangelho, tem futuro. Para ela e para o mundo.
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O clero está se apagando, e isso, precisamente isso, acende a luz da esperança. Artigo de José M. Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU