09 Dezembro 2021
Aonde foi parar a misericórdia, feita de discernimento benevolente, de franqueza, de confiança, de correção fraterna, de discrição, de sinceridade e de respeito na busca da verdade e da justiça?
A opinião é de Gérard Daucourt, bispo emérito de Nanterre, na França, e autor do livro “Preti spezzati” [Padres despedaçados]. O artigo foi publicado em Settimana News, 07-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O arcebispo Michel Aupetit, de Paris, entregou o seu cargo nas mãos do papa, e este aceitou a sua renúncia nos dias que se seguiram. Ninguém pode reivindicar que tem todos os meios para avaliar objetivamente essas duas decisões e, assim, poder fazer um juízo sobre elas.
Sobre as causas desse duplo acontecimento, a maioria dos meios de comunicação não teve escrúpulos em fazer resumos nem em dar uma versão mutilada das razões que eles acreditavam conhecer sobre essa renúncia e a sua rápida aceitação. Não vamos pedir que as mídias (até mesmo todas as mídias católicas ou de inspiração católica, infelizmente!) façam com que a verdade e a misericórdia caminhem juntas.
Por outro lado, devemos interrogar os métodos de quem fez acusações contra Michel Aupetit e as comunicaram anonimamente ao semanário Le Point, sabendo que seriam tornadas públicas. Dados os seus métodos, é difícil dar crédito a esses informantes de que querem servir à unidade e à verdade. Eles podem considerar que um arcebispo não governa bem a sua diocese e até que deveria renunciar, mas os meios que eles utilizaram são contrários ao Evangelho e à vida da Igreja.
Aonde foi parar a misericórdia, feita de discernimento benevolente, de franqueza, de confiança, de correção fraterna, de discrição, de sinceridade e de respeito na busca da verdade e da justiça?
Essas mesmas pessoas encontraram, assim, no passado da vida privada do arcebispo, algo a acrescentar – sempre de forma anônima –, uma “revelação-acusação” sobre a sua saída. Isso funcionou! A mídia se interessou por isso principalmente, senão exclusivamente. Dom Aupetit se explicou sobre o vínculo que tinha com uma mulher quando era padre.
Essa história não me interessa, não me diz respeito. Michel Aupetit tomou as medidas para pôr fim a isso. Se isso teve um aspecto pecaminoso, ele deve ter pedido perdão ao Senhor e retomado o caminho da fidelidade aos seus compromissos.
Como é possível que esse tipo de aventura interesse também a ponto de parecer imperdoável? A hipocrisia não está tão longe... A ordenação presbiteral não suprime as emoções nem as pulsões, e a consciência e a vontade nem sempre são suficientes para dominá-las. É normal que um padre ou um bispo encontre afeto e conforto em uma relação clara. É normal que um padre “se apaixone”. Às vezes, ele precisará de tempo para reencontrar a fidelidade aos seus compromissos ou até para renunciar a eles após longas reflexões e, muitas vezes, às custas de grandes sofrimentos.
Em uma Igreja de misericórdia, é contra o Evangelho ir remexer no passado negativo dos irmãos e das irmãs para encontrar algo para condenar hoje (exceto, evidentemente, no caso de uma injustiça não ter sido reparada).
Esperamos que o atual caminho sinodal contribua para converter as mentes e os corações, e a não visar apenas a uma mudança das estruturas.
Em uma realidade completamente diferente e que não tem nada a ver com o caso de Paris, a misericórdia é, na minha opinião, muitas vezes esquecida. Ela tem o seu lugar no horrível drama dos abusos sexuais de menores. Ela se expressa francamente (finalmente!) em relação às vítimas, mas e os culpados?
Sejamos claros como o Papa Bento XVI: “A misericórdia não substitui a justiça”. Os culpados devem ser denunciados, julgados, condenados e impedidos de ferir novamente. Mas, para que eles se convertam, a Igreja tem o dever de exercer a misericórdia.
Há um surpreendente silêncio, quase permanente, sobre as declarações das autoridades da Igreja. Sem dúvida, isso se deve ao fato de que, às vezes, elas ficam paralisadas pela mídia e temem que as vítimas e uma parte da opinião pública as repreendam por perdoarem muito rapidamente e por darem a impressão de minimizar uma tragédia.
A fidelidade ao Evangelho exige que anunciemos com atos a esperança da salvação para todos, incluindo os maiores pecadores.
É preciso reafirmar que o discernimento se impõe quando se trata de acolher um pecador que se arrepende nas nossas comunidades? Os padres culpados de crimes de pedofilia podem ter uma personalidade perversa, despedaçada. As contribuições de psicólogos e psiquiatras são indispensáveis.
Quando o risco de reincidência é considerado importante, não é possível confiar novamente um ministério. Para outros tipos de personalidades, talvez seja necessário recorrer a um serviço eclesial limitado e bem enquadrado.
Para ambos, as portas da misericórdia estão sempre abertas, e nós devemos manifestar a esperança que Deus deposita neles, chamando-os à conversão. Quando virá, por parte de todos os cristãos, a misericórdia para todos?
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Vidas duplas, abusos... E a misericórdia? Artigo de Gérard Daucourt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU