28 Outubro 2021
"Imaginemos o amor, o respeito, a equidade social, a solidariedade e a paz como sementes. É altamente recomendado cultivá-las em todos os tempos, para o que se requer um preparo permanente dos terrenos", escreve Dirceu Benincá, professor de Humanidades na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Com diferentes enfoques, a parábola bíblica do semeador é narrada por três evangelistas (Mt 13, 1-9; Mc 4, 3-9; Lc 8, 4-8). Também pelo evangelho apócrifo de Tomé (9). Ela continua muito oportuna e inspiradora. Terrenos ótimos, bons, ruins e péssimos como referidos na parábola, seguem existindo. Semente de qualidade muito boa, transgênica, envenenada e vencida, igualmente. Tipos de semeadores há uma variedade enorme. Nos terrenos bons, qualquer tipo de semente pode vingar. Vai depender dos/as cultivadores/as permitir que prosperem ou não. Já nos terrenos pedregosos e áridos, embora se lance semente da melhor qualidade, pouco ou nada produzirá, exatamente porque o terreno é ruim. Quanto às colheitas, sabe-se que elas nunca fogem da natureza das sementes.
Da metáfora para a realidade humana, tudo a ver. Imaginemos o amor, o respeito, a equidade social, a solidariedade e a paz como sementes. É altamente recomendado cultivá-las em todos os tempos, para o que se requer um preparo permanente dos terrenos. Entretanto, embora não se queira, há muita semente péssima que emerge de forma espontânea, mas que também é lançada e cultivada. E o pior é que muitos o fazem obcecadamente, inclusive em nome de Deus, da fé e da religião. Semeiam, adubam e comemoram a expansão das sementes do ódio e da intolerância.
O ódio e as agressões virtuais e presenciais racham famílias e relações de amizade. Criam verdadeiros apartheids domésticos e sociais. A situação a que chegamos em nível mundial e, especialmente no Brasil, assume configurações inéditas - Dirceu Benincá
TweetVivemos num país em que milhões são excluídos dos direitos e das condições básicas de sobrevivência. A concentração da renda e da riqueza segue em escala geométrica. Segundo o Relatório sobre Riqueza Global (2021), publicado pelo Banco Credit Suisse, no Brasil o 1% mais rico concentra 49,6% de toda a riqueza do país. Assim, retornamos ao criminoso mapa da fome e da miséria. Uma realidade de pernas para o ar, na qual “quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo. Uns não dormem por causa da ânsia de ter o que não têm, outros não dormem por causa do pânico de perder o que têm” (Eduardo Galeano). Nessa ordem, vigora a desordem associada e multiplicada pela pandemia e pelos pandemônios.
O ódio e as agressões virtuais e presenciais racham famílias e relações de amizade. Criam verdadeiros apartheids domésticos e sociais. A situação a que chegamos em nível mundial e, especialmente no Brasil, assume configurações inéditas. Para tentar compreendê-la será necessário a ajuda de todas as ciências. Entre elas, a psicanálise, a neurociência e a psiquiatria terão papel fundamental. Por que é que o ódio passou a pulsar tão forte e insaciável nos humanos, sem qualquer escrúpulo, inclusive nas ditas “pessoas de bem”? Alguns estão afirmando que, por vias obscuras e fakenianas (falseadas), instalou-se na sociedade uma verdadeira Síndrome de Estocolmo coletiva, na qual se verifica uma paixão cega dos torturados por mitos torturadores, até identificados como autores de crimes de lesa humanidade.
Por que é que o ódio passou a pulsar tão forte e insaciável nos humanos, sem qualquer escrúpulo, inclusive nas ditas “pessoas de bem”? - Dirceu Benincá
TweetEm um tal cenário de discriminação e violência generalizadas, vale recordar uma vez mais a famosa declaração do presidente da África do Sul (1994 – 1999) e Prêmio Nobel da Paz (1993), Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. O grande líder Mandela combateu o bárbaro regime do apartheid (na “terra brasilis”, ele vigora há séculos) com as “armas” da paz.
Diante dessa safra gigantesca da cultura do ódio, da destruição do outro e da natureza, da desigualdade, da exclusão e da fome, podemos ter basicamente três atitudes: a) Juntarmo-nos a estes/estas cultivadores/as e seguir produzindo a barbárie; b) Ficarmos indiferentes, que é o mesmo que dar vitória ao time que está ganhando; c) Fazer a diferença por meio da prática do diálogo, do amor e do respeito interpessoal, da solidariedade, etc. Embora as atitudes pessoais sejam essenciais, elas não são suficientes. É preciso mais. Para problemas sistêmicos, nacionais e globais são necessárias medidas, políticas e programas estruturais e continuados. As questões são muitas e complexas. Mas, a questão das questões está no tipo das sementes a serem semeadas. Ou não?