Humberto Guidotti não passará. Artigo de Ivânia Vieira

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22 Outubro 2021

 

"Pe. Humberto não passará. Eles passarão", escreve Ivânia Vieira, jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Comunicação, articulista no jornal A Crítica de Manaus, co-fundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas).


Eis o artigo.

 

Este texto tenta, em determinado número de linhas, geo-grafar parte da vida de Humberto Guidotti que se fez pássaro, no dia 11, e agora entoa ladainhas no céu. Um homem de gestos e palavras envolventes que nos contagiou pelo afeto e pela verdade.

Há um ser múltiplo em Humberto Guidotti. Somos desafiad@s a percebê-lo nessa multiplicidade. Tomara o façamos por ele, em espírito, e por nós mesmos, pela Amazônia, pelo Brasil, por Moçambique e outros tantos lugares à margem dos direitos.

Guidotti lutou, incansavelmente, desde os tempos de Iranduba vila, em 1974, e depois, quando elevada à categoria de município amazonense, em 1981. Naquele território, o missionário diocesano percorreu distâncias profundas em nome da organização das comunidades, dos agricultores e pescadores familiares. Enfrentou os desmandos e as ameaças do então prefeito do lugar, Nelson Maranhão. A poeira corria solta no ar e era tão forte que criava paredes impedindo manter os olhos abertos. Os de Guidotti estavam sintonizados e percebiam realidades de exploração de longo alcance. Transpôs as paredes e fez semeaduras.

Na pequena Igreja de Nossa Senhora Aparecida, onde atuou como primeiro pároco, os atos litúrgicos eram concorridos e o local transformado em ponto de encontro no rascunhar sonhos e no planejar a construção deles. Houve um agir coletivo. E um jeito diferente de evangelizar ganhava corpo. Crianças, jovens, adultos, idosos, católicos e não católicos, todos, juntos, teciam os fios da cidadania e da noção de liberdade;

No Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), em Manaus, o sacerdote pautou o debate sobre o tema e ajudou a compreender, entre tiros e agressões físicas, psicológicas, do que trata essa matéria. Aquele era um tempo em que os jornais, com o poderio que detinham, faziam de suas páginas policiais, uma base de apoio aos violadores dos direitos, desde secretários de segurança pública a policiais militares e civis, com apoio de parlamentares e de jornalistas convictos de que esse deveria ser o método: torturar e matar. Guidotti não silenciou e sofreu represálias, ameaças de morte e campanha pública difamatória, semelhante a essa que religiosos, a CNBB e o Papa Francisco sofrem hoje;

Reunia, em área da Igreja da Chapada, do Menino Jesus de Praga, muitos alcóolatras em situação de abandono. Cuidava deles, dos pés, das mãos, do corpo, do estômago, da mente. Dizia que quando uma pessoa perde a vontade tomar banho, de trocar a roupa suja por uma lavada, é porque a dignidade dessa pessoa a está abandonando. E nos convocava a exercer solidariedade e a lutar pela dignidade da vida humana;

Com as mulheres incentivou a formação e a defesa dos direitos humanos da mulher; a necessidade de lutar e reivindicar do Estado instrumentos legais de proteção; fundou e animou, no âmbito do Estado do Amazonas, o Movimento de Reintegração dos Hansenianos (MORHAN); como professor, no Centro de Estudos do Comportamento Humano (Cenesc), contemplava estudantes como aulas memoráveis, feitas dos ensinamentos retirados dos livros e das leituras da vida na Amazônia.

Com as/os jornalistas se colocou em escuta crítica e, como professor amoroso, ensinava sobre o valor e a beleza da profissão. Repetia que jornalistas são os apóstolos da modernidade e o caminhar apostólico exigia das/os jornalistas olhar com lupa as relações de poder, o poder, as realidades que nos cercavam, escrever e falar com ética e respeito sobre essas realidades. Nesses diálogos, Humberto explicava o porquê de o poder e os poderosos precisarem ser incomodados e os aflitos, os vulneráveis, os esquecidos necessitavam ser percebidos e consolados. O jornalismo, na perspectiva desse padre diocesano, é um dos lugares para fazer esse exercício. A comunicação e os comunicadores tinham em Guidotti atenção singular. Aos religiosos e fiéis alertava: é importante ler a bíblia e ler o jornal.

Pe. Humberto não passará. Eles passarão.

 

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