20 Outubro 2021
Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa afirma que casos de prisão como o da mulher que furtou miojo e Coca-Cola mostra “falta de empatia do Judiciário que move essa máquina de moer gente”.
Cartaz de protesto contra Jair Bolsonaro em maio de 2021. (Daniel Arroyo | Ponte Jornalismo)
Em seu livro de Geografia da Fome, de 1946, Josué de Castro sentenciou: “Metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come”. 75 anos depois pode-se afirmar que a situação do Brasil está pior do que cravou o cientista social pernambucano. Atualmente mais da metade dos lares brasileiros, 55,2% de acordo com o estudo Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, convivem com a insegurança alimentar.
Dentro dessa parcela da população, existem 19 milhões de pessoas que estão passando fome, e que, em atos de desespero, podem ser levados a praticar crimes de baixo potencial ofensivo para saciar a necessidade mais básica entre os humanos. A frase de Castro ganha mais peso na atualidade quando se verifica que juízes declaram em suas sentenças a necessidade de segurança da sociedade para justificar a prisão daqueles que cometem os chamados furtos famélicos.
“O momento impõe maior rigor na custódia cautelar, pois a população está fragilizada no interior de suas residências, devendo ser protegidas pelos poderes públicos e pelo Poder Judiciário contra aqueles que, ao invés de se recolherem, vão às ruas com a finalidade única de delinquir”, escreveu a juíza Luciana Scorza em sua decisão de prender uma mãe de cinco filhos que furtou miojo e Coca-Cola.
Uma das justificativas mais usadas pelos magistrados em casos como este, a reincidência dos réus, deixa de lado o fator que quem sente fome, a sente por muitas vezes e não só em um único dia. O medo dos que comem está nas palavras do desembargador Julio Caio Farto Salles, relator do mesmo caso que negou pela segunda vez a liberdade da mulher de 41 anos presa pelo furto de macarrão instantâneo.
“Fosse a dificuldade financeira, por si só, suficiente para delinear o estado de necessidade, a maior parte da população receberia um bill de indenidade [garantia de impunidade] voltado à prática dos mais diversos delitos, algo temerário”, descreveu em seu despacho.
Hugo Leonardo, advogado criminalista e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), defende que as prisões por crimes famélicos não passam de uma perseguição do Estado contra as pessoas em maior vulnerabilidade social. Em entrevista à Ponte, Leonardo afirma que o direito penal não serve para inibir essas condutas e que juízes teriam por obrigação trancar os processos quando recebessem casos desse tipo.
A entrevista é de Gil Luiz Mendes, publicada por Jornalista Ponte, 19-10-2021.
O que é furto famélico?
O furto famélico não se enquadra como um delito propriamente, haja vista que essas pessoas praticam formalmente o que seria um crime levado por uma situação de desespero absoluto. Isso tecnicamente não pode ser visto como um crime por várias razões, dentre elas, pelo fato de que a gente só pode considerar crime aquela conduta que seja absolutamente insuportável, algo que o Direito precisa reprimir. Estamos vendo um número crescente de pessoas que vivem abaixo da linha da miséria.
E o que seria o crime de bagatela?
É um crime que dada a sua pequena repercussão à luz da tutela penal não deve ser considerado crime e não deve ter consequência jurídica, seja de prisão ou de processamento. A gente nem deve mobilizar a máquina judiciária para perseguir esse tipo de conduta. É exatamente nesse ponto que se circunscreve um caso como o dessa mulher presa por furtar miojo. É um absurdo um caso como esse, e qualquer juiz, na minha opinião, tem a obrigação de trancar o processo e colocar em liberdade essas pessoas. A gente deve levar em conta o que representa o aparelho estatal. Estamos diante de valores completamente contraditórios, em se tutelar uma ação jurídica em uma ambiente onde as pessoas estão morrendo de fome, revirando lixo para procurar comida.
Os juízes têm apoiado suas decisões de prisão em casos de furtos famélicos na reincidência dos autores. Como você enxerga essa atitude dos magistrados?
Eu considero esse tipo de postura uma perversidade e acho que o que há de reincidência é a fome e não o crime. É essa reincidência que o Estado deve buscar coibir antes de qualquer coisa.
Como você analisa o valor do que é furtado por essas pessoas diante do custo que o Estado vai ter para deixar essa pessoa presa?
Esse número é subjetivo porque varia entre os estados, mas vamos pegar por um dos valores mais baixos, que é de R$ 1.500 por mês por preso. A gente pega o custo da movimentação da máquina judiciária, com juízes, promotores, defensores públicos e toda a estrutura burocrática e relaciona isso com um suposto dano sofrido por ente privado, no caso o supermercado. Veja que por todos os ângulos que a gente analisa essa situação, nós estamos completamente distantes de um interesse, ainda que formal, do Estado em perseguir esse tipo de conduta. Esse tipo de caso deveria funcionar muito mais, depois de resolvido na esfera penal, para chamar a atenção do próprio do próprio aparelho burocrático do quanto estamos distantes da causa desses problemas.
Então o direito penal é falho neste sentido?
O direito penal não serve para inibir esse tipo de conduta. Ele só deve incidir quando aquela situação é completamente insuportável à convivência. E manutenção de prisão então é apenas para aqueles crimes considerados gravíssimos ou quando a pessoa demonstra interesse de continuar delinquindo em condutas graves ou violentas. Jamais para este tipo de caso. O direito penal não se presta em nenhuma das faces que a gente analisa essa situação.
Por que tantas pessoas são presas por esse tipo de delito até hoje?
O que acontece é uma falta de empatia do poder judiciário com as pessoas. O nosso poder judiciário vive num tal nível de encastelamento que produz uma falta de empatia monocórdica. A falta de empatia é o que gira essa máquina de moer gente de uma forma absolutamente irracional. Eu acrescentaria ainda os absurdos que são processados e julgados com condenações mantidas na justiça criminal para além dos furtos famélicos. Eu colocaria nesse balaio aqueles furtos de pessoas que estão em situação de rua, que nem chega a ser furto de alimento, que são pegas com sucatas e fios usados para vender, e a polícia detém essas pessoas quando perguntam a origem desse material. Ora, essas pessoas nem casa tem. Elas vivem desse escambo subhumano e são levadas ao cárcere. Muitas vezes a Justiça, para zombar da nossa cara, fixa fiança para essas pessoas obterem a liberdade. Isso é muito comum e revoltante.
Há quem defenda no meio jurídico que punir pessoas reincidentes por furtos famélicos como exemplo para que mais pessoas não cometam o mesmo ato e venhamos a ter uma convulsão social. O que você acha disso?
Essas teorias foram propagadas em alguns momentos históricos. Teoria da prevenção, seja ela geral ou especial, era uma tese que dizia respeito a inibir que o sujeito praticasse o delito, seja inibido pela punição em si ou a punição a terceiros. Todas essas teorias já foram afastadas por grandes estudiosos penais. Isso é uma grande mentira. O direito penal não tem esse efeito simbólico que as pessoas pensam que ele tem. Esse é um tema mal discutido na sociedade e no meio jurídico. Isso na verdade é um grande escamoteamento para o Estado continuar fazendo esse papel de perseguidor das pessoas vulneráveis.
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Furtar por fome não pode ser visto como crime, diz jurista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU