24 Junho 2021
Economista e pesquisadora da área afirmam que cortes em políticas públicas agravaram essa situação.
A reportagem é de Luana Ely Quintana, aluna do curso de jornalismo da Unisinos, publicada por Beta Redação, 16-06-2021.
O Brasil, que havia saído do Mapa da Fome em 2013 com o amplo alcance de políticas públicas, volta a essa realidade na eclosão da pandemia da Covid-19. A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), como parte do projeto VigiSAN, realizou inquérito populacional visando analisar a Insegurança Alimentar no Brasil no contexto da pandemia da Covid-19. O inquérito baseou-se em amostra probabilística de 2.180 domicílios, representativa da população geral brasileira, considerando as cinco grandes regiões do país (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste) e a localização dos domicílios (áreas urbanas e rurais).
Segundo o levantamento, cerca de 19 milhões de brasileiros enfrentavam a fome. Como esperado, considerados os impactos da pandemia e a consequência da elevada desigualdade social que caracteriza o Brasil, a Insegurança Alimentar grave aumentou 19% nos domicílios onde algum(a) morador(a) havia perdido o emprego ou houve endividamento, ambos em razão da pandemia.
“Há, no Brasil, uma desigualdade social que é fruto de um modelo de desenvolvimento da sociedade”, afirma a professora no Programa de Pós-Graduação em Economia da Unisinos, Angélica Massuquetti, sobre o país, que é um dos países mais desiguais do mundo.
Além da desigualdade social, a pesquisadora doutora do Grupo de Pesquisa Júnior Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy, da Lateinamerika Institut/Freie Universität de Berlin, Eryka Galindo pontua que o desmonte nas políticas públicas contribui para essa volta da fome no país. “Josué de Castro já dizia que a fome é escolha política. Ao optar pelo caminho de desmonte das referidas políticas, os governos informam o grau de compromisso que têm com a promoção da segurança alimentar”, diz.
Segundo a organização Oxfam Brasil — que atua na busca de soluções para o problema da pobreza, desigualdade e da injustiça, por meio de campanhas, programas de desenvolvimento e ações emergenciais — , “Segurança Alimentar” é a garantia de todas as dimensões que inibem a ocorrência da fome (disponibilidade e acesso permanente de alimentos, pleno consumo sob o ponto de vista nutricional e sustentabilidade em processos produtivos). Já a “Insegurança Alimentar” é a consequência direta das mudanças climáticas, degradação dos solos, escassez hídrica, poluição, explosão demográfica, falhas de governança, crises sanitárias e socioeconômicas.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classifica o problema da fome em três níveis nomeados de “Níveis de Insegurança Alimentar”: leve — quando existe a preocupação com a quantidade, bem como com a qualidade, dos alimentos; moderada — quando a variedade e a quantidade de alimentos disponíveis ficam limitadas e prejudicam o consumo sob o ponto de vista nutricional; e grave — quando não é possível fazer nenhuma refeição durante um dia ou mais, sendo assim, há fome decorrente da real falta de alimentos.
Publicada em agosto de 2020, a Pesquisa de Orçamentos Familiares — POF (2017–2018): Análise da Segurança Alimentar no Brasil (IBGE) mostra que, de 68,9 milhões de domicílios particulares permanentes, 63,3% estavam em situação de Segurança Alimentar (SA), enquanto 36,7% estavam com algum grau de Insegurança Alimentar (IA). Sendo a IA grave a mais severa, baseado no estudo, 3,1 milhões de domicílios passaram por privação quantitativa de alimentos e isso atinge não apenas os membros adultos da família, mas também suas crianças e adolescentes.
Na pesquisa também é possível fazer um comparativo com anos anteriores e analisar as modificações ocorridas no Brasil entre 2004 e 2018. Após a tendência de aumento da Segurança Alimentar entre os anos de 2004, 2009 e 2013, os resultados obtidos pela POF mostram uma redução na prevalência de domicílios particulares brasileiros que tinham acesso à alimentação de seus moradores de forma adequada (quantitativamente e qualitativamente).
A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), como parte do projeto VigiSAN, realizou inquérito populacional visando analisar a Insegurança Alimentar no Brasil no contexto da pandemia da Covid-19. O inquérito baseou-se em amostra probabilística de 2.180 domicílios, representativa da população geral brasileira, considerando as cinco grandes regiões do país (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste) e a localização dos domicílios (áreas urbanas e rurais).
Segundo o levantamento, de 211,7 milhões de pessoas, 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar e, destas, 43,4 milhões contavam com alimentos em quantidade suficiente para atender suas necessidades (IA moderada ou grave). Cerca de 19 milhões de brasileiros enfrentavam a fome. Como esperado, considerados os impactos da pandemia e a consequência da elevada desigualdade social que caracteriza o Brasil, a IA grave aumentou 19% nos domicílios onde algum(a) morador(a) havia perdido o emprego ou houve endividamento, ambos em razão da pandemia.
A crise econômica aumentou em 2020 com o advento da pandemia, mesmo com a permanência de alguns programas sociais como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a criação do Auxílio Emergencial. A comparação dos níveis de SA/IA entre a POF de 2018 e o inquérito do VigiSAN (pág. 55 da pesquisa) mostra a gravidade da superposição da crise econômica e crise sanitária em todo o território nacional, sem uma adequada resposta advinda da política pública.
Como aponta a PENSSAN, este é um cenário que não deixa dúvidas de que a combinação das crises econômica, política e sanitária provocou uma imensa redução da Segurança Alimentar em todo o Brasil.
A pesquisa publicada pela Food for Justice: Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil em 2021 e realizada com 2 mil brasileiros aponta que 59,4% dos domicílios entrevistados declararam estar em uma situação de Insegurança Alimentar.
A partir do estudo, foi possível atestar as seguintes proporções de segurança alimentar nos domicílios situados nas cinco grandes regiões do Brasil. No Nordeste, por exemplo, a média nacional de 59,4% passa para 73% e no Norte para 67%. Ao passo que no Centro-Oeste, Sudeste e Sul cai em comparação com a média nacional.
A percepção da Segurança Alimentar foi mais frequente entre os que afirmaram viver em áreas urbanas, alcançando 44,3% dos domicílios entrevistados. Já entre os que vivem em área rural e urbana, a segurança alimentar foi menos frequente, chegando a 30,2%, sendo este número ainda menor entre os domicílios inseridos em áreas consideradas exclusivamente rurais, 24,8% das ocorrências.
Outro indicador importante é que esta situação é impactada pela renda. As famílias que têm renda per capita de até R$ 500 possuem grau muito maior de insegurança alimentar. Quando a renda média vai para R$ 1 mil por pessoa, o percentual baixa para 26%.
A pesquisa reforça que essa situação vem de antes da pandemia, a qual, por sua vez, agrava um quadro que já era gravíssimo. Desde a série histórica, medida a partir de 2004, com os dados coletados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o Brasil chegou aos patamares mais baixos da história em 2013/2014, em que o percentual de famílias em situação de Insegurança Alimentar grave foi de menos de 5%. A FAO considerou, então, que o Brasil estava fora do Mapa da Fome.
Segundo Eryka Galindo, pesquisadora doutora do Grupo de Pesquisa Júnior Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy, da Lateinamerika Institut/Freie Universität de Berlin, ao analisarmos as políticas de promoção da segurança alimentar no Brasil é possível perceber que, principalmente, a partir de 2016, elas assumem mudanças, a partir das ações implantadas pelo governo federal. “O fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário é um exemplo disso. Com o fim desse ministério veio uma sucessão de cortes orçamentários que afetaram as políticas de fomento à produção de alimentos saudáveis, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), política de assistência técnica e extensão rural, políticas de convivência com o semiárido”, expressa
Outro ponto importante destacado pela pesquisadora é que, em 2019, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) optou por intensificar os desmontes, mexendo no Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, extinguindo o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), entre outros canais de participação social, que vinham cumprindo o importante papel de monitorar, de forma descentralizada, as políticas nessa área.
"Josué de Castro já dizia que a fome é escolha política. Ao optar pelo caminho de desmonte das referidas políticas, os governos informam o grau de compromisso que têm com a promoção da segurança alimentar” , pontua a pesquisadora Eryka Galindo.
Para Galindo, o governo federal promover políticas públicas é essencial para que se reduzam as desigualdades sociais e econômicas. “Políticas que se orientem por políticas macroeconômicas de controle do preço dos alimentos e de abastecimento interno e que garantam acesso à comida de verdade — por meio do fomento à produção da agricultura familiar e dos equipamentos públicos de segurança alimentar, a exemplo dos restaurantes populares, bancos de alimentos — são caminhos efetivos para superar a insegurança alimentar e o flagelo da fome”, explica.
São várias as experiências dos movimentos sociais em torno do enfrentamento à fome no contexto da Covid-19, por exemplo, que podem ser destacados. Galindo salienta as ações de doação de alimentos da agricultura familiar, vindas de sítios e assentamentos da reforma agrária; as experiências de distribuição de cestas básicas desenvolvidas por grupos e movimentos de comunidades periféricas; a preparação de marmitas para a população de rua. “São inúmeras as iniciativas e reúnem o mérito de fortalecer elos de solidariedade num momento de baixo protagonismo do Estado no sentido de enfrentar os danos causados pela pandemia”, diz. A agricultura familiar também cumpre um papel fundamental para promover a segurança alimentar e nutricional no Brasil, e em várias partes do mundo.
É importante demarcar que o problema da fome, especialmente no país, não é por falta de comida. Existe comida suficiente para alimentar o mundo, entretanto, o acesso ao alimento saudável é desigual. “O sistema alimentar dominante reforça a noção de alimento como mercadoria, a favor dos interesses das corporações que comandam o mercado de alimentos”, diz a pesquisadora. “Criar novas relações que sejam social, ambiental, cultural e economicamente justas é o grande desafio, que também passa por transformações locais, mas vai além delas”, enfatiza.
Galindo destaca ainda que sob piores condições de acesso à renda as possibilidades de colocar alimentos saudáveis na mesa ficam mais comprometidas. “Ou seja, sem atacar as desigualdades socioeconômicas e sem políticas de promoção da segurança alimentar a fome continuará batendo à porta da população brasileira. É urgente que os governos e demais poderes públicos construam medidas de superação desta realidade”, finaliza.
Professora no Programa de Pós-Graduação em Economia da Unisinos, Angélica Massuquetti reforça que o aumento da fome no Brasil é consequência da condução da política macroeconômica brasileira desde o último governo. “Na fase atual, a busca pelas reformas político-econômicas e pelo crescimento econômico foram afetados pela pandemia global. No presente imediato, políticas de transferência de renda, como o Auxílio Emergencial, são ações necessárias para minimizar a situação de fome da população em situação de pobreza e de miséria no país”, diz.
Para Massuquetti, parte do aumento da fome está relacionado, de fato, à pandemia global em razão do desemprego causado pela redução da atividade econômica, que acaba impactando diretamente no mercado de trabalho formal e informal. Entretanto, a fome no Brasil não é uma realidade do momento atual. Está presente há décadas na sociedade brasileira.
“Há, no Brasil, uma desigualdade social que é fruto de um modelo de desenvolvimento da sociedade”, afirma a economista sobre o país, que ocupa o nono lugar no ranking mundial de desigualdades, segundo o IBGE em 2019. A redução nos investimentos em educação no país também reforça essas desigualdades, pontua a economista. “Redução da qualificação da mão-de-obra e, consequentemente, de uma menor inserção dos indivíduos no mercado de trabalho formal em posições com maior remuneração, menores externalidades sociais, como cuidados com saúde, justiça etc., também apontam essa desigualdade.”
“A crise ambiental e climática pode afetar a produção de alimentos. Contudo, a corrupção tem um poder ainda maior, pois tem o efeito de ampliar a desigualdade social no país”, diz a economista Angélica Massuquetti.
Por fim, Massuquetti reforça a importância de investir em educação no combate à fome no Brasil. “Sem o investimento em educação, não conseguiríamos romper com o ciclo de pobreza, de miséria e, portanto, de fome no Brasil. Pobreza, miséria e fome não são resolvidas apenas com renda”, finaliza.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Pesquisa aponta que 19 milhões de pessoas passaram fome durante a pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU