06 Outubro 2021
“A mulher em seu corpo, como continuidade e símbolo da relação com a terra, revela uma espiritualidade de vida e fertilidade que tudo integra e envolve, passando por seu próprio ser. Uma relação que as leva sempre mais longe, estabelecendo uma irmandade que não se limita ao território, nem à família parental, mas inclui-as na irmandade universal de ser filhas da terra. Pertencendo à terra, como identidade primordial”, escreve María Eugenia Lloris Aguado, religiosa da Fraternidade Missionária Verbum Dei, missionária da Equipe Itinerante de BOLPEBRA (Tríplice Fronteira entre Bolívia, Peru e Brasil), em artigo publicado por Jesuítas da América Latina, 24-09-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
As anciãs das comunidades da Amazônia vivem uma conexão profunda com toda Criação. É admirável. Em Angoteros, falando com Walter – padre do atual Apu – de 75 anos, ao mostrar-lhe a imagem de Pachayaya, iniciou uma oração em quéchua com devoção. Mais que palavras, nos assombrou sua espontaneidade e seu semblante iluminado como se visse o Invisível.
Ou ao compartilhar com o xamã David, em Pucallpa, que nos mostrava um vídeo de algumas luzes que apareciam no meio da selva quando ele entoava os cantos que os xapiri o inspiravam: “Tudo é energia. Eles se revelam, são os espíritos de nossos antepassados se manifestando, entrando em comunicação”, afirmava.
Porém, não é uma prática restrita aos homens. A relação das mulheres com a natureza, especialmente com a Terra, possui um substrato simbólico vital, e inerente ao próprio corpo de cada uma delas: de fecundidade e de natalidade. Seu corpo, como prolongação da terra, que engendra, cuida, alimenta: a Pachamama.
A mulher Awà Guajá da imagem, ajoelhada, carregando nos braços a criança de seu ventre, alimenta o porquinho de monte que a natureza o ofereceu. Alimenta a criatura que perdeu sua mãe por alimentar o ser humano, talvez a família ou aos parentes e familiares da comunidade da mulher Awà Guajá. Uma relação de reciprocidade e integração, na espontaneidade da vida, que vai mais além das racionalizações. Imagem que muitos de nós talvez vimos em nossas visitas às comunidades.
A Mãe Terra, como aquelas mulheres e como tantas mulheres que carregam a vida no ventre, busca um espaço seguro para dar à luz e deixar brotar a vida que carrega dentro de si; ou simplesmente compartilhá-lo, amamentando quem humildemente o abordar, não em uma relação mercantil ou comercial, mas em necessidade e equilíbrio elementar com o ecossistema, como o bezerro ou o bebê que nasce. Uma conhecida expressão bíblica nos evoca ou simboliza: “A terra geme com as dores do parto” (Rm 8,32), para dar vida. E como podemos aprender com as mulheres!
O depoimento de Lorenza abre para nós uma janela para essa espiritualidade vivida por mulheres que vivem às margens de rios, longe dos cuidados médicos, mas que guardam em si a força da vida. Eles seguem seus instintos e mostram solidariedade entre si, apoiando-se mutuamente na defesa da vida de um ser vivo.
Sentada em um pedaço de árvore, enquanto uma minga é mantida em casa, a mãe de Geni, Lorenza, conta-nos sobre sua experiência como parteira. Uma conversa tranquila, quase sussurrada, já que os quéchua não levantam a voz. Prestamos atenção em suas sentenças quebradas, com o espanhol que ele maneja, e ele confirma que ajudou muitas mães a darem à luz agachadas. Explica que elas amarram uma corda na cruz da maloca (ou casa de madeira), e o marido ajuda prendendo as costas por trás. É interessante, também ouvirmos de outras mulheres da região, que continuam a dar à luz em suas próprias casas, e que são os maridos que cuidam de suas esposas diretamente nesses momentos. Estão “lado a lado” – como sugere Gênesis – na criação do homem e da mulher.
As mulheres desta região (Rio Napo, Peru) costumavam dar à luz em casa, contam suas experiências, e uma nos comenta que tinha dado à luz na cozinha, em uma casa de tábuas a vários metros do solo, e ela diz: “Como era noite e não havia luz, tive medo de que, na hora de nascer, o bebê escorregasse pelas fendas que se abriam entre as madeiras irregulares. Meu marido foi buscar ajuda e eu implorei: Venha já!”. Ao observar o espaço, e as condições, percebemos que as mulheres são muito corajosas e acreditam profundamente que a força da vida sempre vence. O bebê estava lá, correndo em nosso meio.
Contar experiências como essas não é destacar o exótico ou o diferente e curioso do que foi vivido, mas evidenciar a capacidade de defesa da vida. Um poder ancestral: dar vida em quaisquer condições. A história das parteiras e o poder da vida no corpo e nas mãos das mulheres são antigos. Temos referência não apenas na história desses povos, mas também na história de outros povos em outras partes do mundo, como sabemos por outros estudos, como o povo de Israel.
A primeira arte da terra é a das parteiras: dar vida, deixar viver os filhos, os nossos filhos e os dos outros. Todos os filhos de todos. Um ofício da Antiguidade e totalmente feminino. Quando essa primeira arte é eclipsada, a vida perde o primeiro lugar e as civilizações tornam-se confusas, doentes e decadentes. Sabemos que eles permanecem nas sombras, escondendo seu poder, sem que se fale delas.
Dizer não a tudo que põe em perigo o nascimento e dizer sim à vida, acima de qualquer lei, é expressão e símbolo do que prevalece: o valor da vida. Um valor que se perpetua há séculos e é um símbolo de resistência. Quantas mulheres unem forças pela vida, como parteiras, mães de leite, ou apadrinham os filhos de seus parentes, para além do círculo estritamente familiar, permitindo que a vida as irmane na unidade da família universal.
A mulher em seu corpo, como continuidade e símbolo da relação com a terra, revela uma espiritualidade de vida e fertilidade que tudo integra e envolve, passando por seu próprio ser. Uma relação que as leva sempre mais longe, estabelecendo uma irmandade que não se limita ao território, nem à família parental, mas inclui-as na irmandade universal de ser filhas da terra. Pertencendo à terra, como identidade primordial.
Na Amazônia, as matriarcas de famílias continuam lutando para preservar sua própria cultura, ensinando às netas tradições como artesanato, canções, tecidos etc. (Foto: Leyre Hualde | Reprodução | REPAM)
Seus corpos são uma casa que nos acolhe. Uma relação que experimentam no próprio corpo como continuidade de si, e que se revelam nas suas relações com os outros (iguais a si), com o outro (animal) ou com os bens (a natureza, os frutos que a terra nos oferece), trazendo constantemente nós para a vida: são parteiras.
Um corpo que fertiliza e se alimenta, como a própria terra. A terra é o útero de nossa existência, lar e casa. E as mulheres, como parteiras, ajudam-nos a romper as águas, ensinando-nos uma nova relação com os outros (iguais a elas) de fraternidade, com o outro (animais) de reciprocidade, e com os bens (a natureza e bens que a terra nos oferece) de cuidado. É essa espiritualidade o que as permite resistir no tempo, mais além das condições físicas ou geográficas. Perpetuar-se e perpetuar a espécie.
A espiritualidade indígena enriquece nossas próprias espiritualidades, ao nos indicar: a relação com a natureza e a criatura, como parte do nosso ser, integrando-o de forma natural. Cuidar da terra e dos outros seres é algo constitutivo de nós, porque somos corpos abertos à vida, dedicados a acolher a vida, cuidar dela e alimentá-la, porque na origem e no fim da existência: Somos terra!
Seria um sonho que como mulheres exerçamos o nosso poder ancestral, “ao lado” de Adão, como os quéchua assistem as suas mulheres: na igualdade e reciprocidade da diferença do ser.
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Mulheres na Amazônia: a espiritualidade dos corpos femininos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU