29 Julho 2021
O jogo “Heal Hitler” levanta polêmica, mas ironia e paródia sempre afetaram o histórico cenário do Mal absoluto.
O comentário é de Fulvio Abbate, filósofo e escritor italiano, em artigo publicado em L’HuffingtonPost.it, 28-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hitler pode ser contemplado como objeto de paródia? A pergunta é absoluta e, ao mesmo tempo, essencial: pode-se ironizar um monstro criminoso da história ou, melhor, do calibre teratológico de Adolf Hitler? O jogo “Heal Hitler”, à venda na plataforma Steam, está causando polêmica.
A engenhoca virtual funciona assim: o jogador veste o jaleco de psicólogo e, marcadamente, trata precisamente de Hitler. O “Reich Milenar” ainda parece distante, é apenas 1925, os camisas pardas ainda se encontram principalmente na cervejaria, Leni Riefenstahl ainda está por vir com as suas reuniões oceânicas a serem postas finalmente na película.
O objetivo, neste momento, é unicamente submeter o Führer a uma meticulosa “psicoterapia”, a fim de evitar em perspectiva a Shoah, a guerra, as ruínas...
O nome se deve a um trocadilho com a saudação nazista, “Heil Hitler”. As instruções: “Você é o psicólogo de Hitler em 1925. Você deve diagnosticar os seus complexos usando a psicoterapia junguiana e freudiana, e tentar curá-lo. E obter sucesso, evitando a guerra”.
Segue-se uma nota: há um “novo cliente, Herr Hitler, que reclama de um distúrbio, a ‘raiva’. Você vai utilizar técnicas psicanalíticas para diagnosticar a fonte do seu trauma, que poderia desencadear o seu ódio”, acrescenta o texto.
O desenvolvedor do jogo, Jon Aegis, afirma que aprofundou cada detalhe, para não determinar ambiguidades. Hitler não poderá ser eticamente “salvo” das suas responsabilidades criminais por parte de nenhum jogador.
Em vez disso, Daniel Kennedy, estudioso da Shoah, objeta, pois acha “incrivelmente de mau gosto” um jogo que, pelo menos aos seus olhos, banaliza o homicídio de seis milhões de judeus: “Toda a premissa do jogo é de tão mau gosto eu só posso supor que tenha sido deliberadamente projetado para ofender”.
Destacando, acima de tudo, que a variante lacaniana não foi contemplada entre as possíveis terapias e acrescentando de modo igualmente necessário que a posição de “jogador” não dá direito de acesso ao saber freudiano, resta sobretudo a condenação ética ao imperdoável nazismo, mas também a dúvida sobre o profissionalismo dos participantes. Cabe acrescentar, porém, que, desde sempre, a ironia, o paradoxo, o sarcasmo, a paródia afetam também o histórico cenário do Mal absoluto.
Alguém certamente se lembrará da extraordinária propaganda apócrifa da Mercedes, em que precisamente Hitler menino acabava sendo atropelado pelo carro, e, sobretudo, no momento do impacto, dos gritos de desespero da mãe. Pelo seu “pequeno” e indefeso Adolf, ali brincando no ambiente da infância em Linz, na Áustria. Também nesse caso o sarcasmo, a ironia, o paradoxo da virtual execução preventiva contribuíam para um necessário Nuremberg adicional, ainda que fílmico, literário, fantasmagórico ou como se quiser chamá-lo.
Além disso, é preciso mencionar o romance “Ele está de volta” (Ed. Intrínseca), do escritor alemão Timur Vermes, que deu origem ao filme homônimo; na Itália, ele foi recriado até substituindo Mussolini pelo homólogo germânico, que havia sido seu “aluno” político. Também neste caso, como um rosto de capa, Hitler volta a si mesmo e, inversamente, à reflexão sugerida pelo seu simples trânsito trágico e sangrento na história do “Século Breve”.
À margem, além disso, o outro caso de “A vida é bela”, de Roberto Benigni: também então, a despeito do Oscar, abriu-se uma querela, naquele caso não imprópria, sobre a banalização de um lugar de morte como Auschwitz.
Pensando nisso, até mesmo Russ Meyer, o lendário cineasta estadunidense ruidosamente anticonformista, no limite da pornografia, em “Up”, situa um sósia precisamente de Adolf Hitler no centro da cena, que, entre muitas outras coisas, tem o privilégio de ser sodomizado pelo protagonista travestido de lenhador. Em suma, a história é mais complexa do que qualquer tentativa de purificação.
Eu mesmo, em um romance, “Intanto anche dicembre è passato”, tentei imaginar um Hitler sobrevivente aos dias do Bunker, que acabava até em Palermo, hóspede dos meus avós, lidando com um trabalho de pintura do nosso apartamento. Uma pena que o incauto Adolf, uma vez na Sicília, terá a escassa perspicácia de entrar em um relacionamento com Lucilla, que trabalha como caixa e é cunhada de um chefão da máfia. Este último achará intolerável a história de uma ex-parente adquirida com um desconhecido senhor alemão, a ponto de decretar a sua morte por “incaprettamento”.
Uma pena que, ao cometer esse delito, os mafiosos não compreenderão que executaram um criminoso da história e que, no mínimo, mais mesquinhamente, suprimiram quem tinha se permitido violar um pacto conjugal e familiar. A ironia, evidentemente, não é para todos. Nem para os nazistas nem para os mafiosos.
Em todo o caso, o fetiche de Hitler continuará inspirando todos os teatros literários, com mais razão na ausência das coordenadas exatas da sua morte misteriosa e do seu próprio túmulo ausente a todo o olhar. A pergunta sobre o jogo, e em parte já se disse isto, deveria dizer respeito ao profissionalismo dos seus participantes: na realidade, quem nunca leu sequer uma simples linha de Sigmund Freud, sem falar até de Wilhelm Reich, poderá se considerar apto a desafiar o monstro e a suástica?
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Hitler no divã do psicanalista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU