21 Julho 2017
O jornal L'Osservatore Romano, 17-18-07-2017, reproduziu o artigo abaixo publicado pela revista Luoghi dell’Infinito. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Se 10,3 milhões desses inimigos tivessem sido mortos, então teríamos cumprido o nosso dever. Não posso dizer qualquer outra coisa, esta é a verdade. Por que negar?". Isso foi dito publicamente por Adolf Eichmann sobre os judeus, na Argentina, sem se importar com o fato de que parte do mundo o estivesse caçando, mas certo de que outra parte tivesse todo o interesse em protegê-lo visto as muitas informações inoportunas que ele conhecia.
Vivendo no anonimato na América do Sul depois da guerra como muitos outros nazistas criminosos de guerra, o planejador do Holocausto havia se refugiado na Argentina sob o nome de Ricardo Klement fazendo trabalhos simples, como de criador de coelhos. Mas na realidade, o Obersturmbannführer das SS, ex-chefe da temida Seção IV B4 Assuntos Judeus do Escritório Central de Segurança do Reich (Reichssicherheitshauptamt), não estava absolutamente arrependido por suas ações e não tinha perdido a arrogância do passado.
A mesma que mostrava diante dos membros do círculo de nostálgicos nazistas e simpatizantes do qual ele se cercou e com quem ele se reunia periodicamente para discutir os velhos tempos, mas também para planejar um futuro que trouxesse de volta as ideias do nacional-socialismo. Do esconderijo, Eichmann dava entrevistas sobre sua vida, escrevia seus pensamentos, registrava notas inequívocas nas margens de livros e artigos sobre o nazismo e o Holocausto, enquanto para os companheiros autografava orgulhosamente fotografias com nome e posto.
No entanto, o Eichmann que se sentou no banco dos réus em Jerusalém após a captura pelo Mossad, que aconteceu em Buenos Aires em 10 de Maio de 1960, não só era um total desconhecido para a maioria, mas principalmente parecia outro homem: um homem que conseguiu enganar a todos se apresentando como uma "pequena engrenagem na máquina de extermínio nazista", um soldado que se limitou apenas a executar ordens. Em suma, a personificação daquela "banalidade do mal" teorizada por Hannah Arendt, e que ficou registrada na narrativa sobre aquele funcionário nazista aparentemente aposentado, mas que há alguns anos não é mais tão convincente assim.
E, provavelmente, jamais tinha sido completamente, se é verdade que já há anos algumas vozes críticas, como a de Saul Friedländer, tinham se levantado, mas talvez muito timidamente. No entanto, quem reabriu a discussão foi Bettina Stangneth, filósofa alemã que se focou no estudo dos anos de fuga do ex-nazista. Seu livro Eichmann vor Jerusalém: Das unbehelligte Leben eines Massenmörders, lançado em 2011 na Alemanha e em 2014 nos Estados Unidos, despertando grande interesse, foi agora traduzido para o italiano com o título La verità del male. Eichmann prima di Gerusalemme (A verdade do mal. Eichmann antes de Jerusalém, em tradução livre, Roma, Luiss University Press, 2017, 604 páginas, € 24).
É um trabalho muito minucioso, apoiado por uma impressionante quantidade de notas, no total 1215. A pesquisadora procurou em trinta arquivos internacionais, consultou milhares de documentos, incluindo mais de 1.300 páginas de memórias manuscritas e notas, bem como transcrições de longas entrevistas - 25 horas de gravações - divulgadas em 1957 por Eichmann ao jornalista holandês Willem Sassen, ex-nazista que se transferiu para Buenos Aires.
Entre os muitos detalhes inéditos, a carta aberta, conservada nos arquivos do governo alemão, o antigo hierarca do Terceiro Reich escreveu em 1956, ao Chanceler da Alemanha Ocidental, Konrad Adenauer, com a proposta de seu retorno à sua terra natal para ser julgado e poder informar os jovens sobre o que realmente tinha acontecido durante o governo de Hitler.
Seguindo os rastros deixados pelo ex-SS durante sua vida no anonimato e através do estudo das cartas argentinas e das entrevistas de Sassen, Stangneth quer revelar as maquinações engenhosas de Eichmann. A intenção é mostrar como a imagem de burocrata apagado, inepto e pouco inteligente - que convenceu Hannah Arendt deixando-a como legado durante décadas - tivesse realmente sido estudada e arquitetada pelo próprio Eichmann.
O homem que na Argentina não hesitava em definir o Holocausto, e em particular a deportação de judeus húngaros mesmo depois de perdida a guerra, como a sua "obra-prima", em Jerusalém apresentava-se como "uma figura despretensiosa, desprovida do crepitante carisma que geralmente atribui-se a Satã. O Obersturmbannführer da SS que havia semeado pânico e terror e, acima de tudo, causado milhões de mortes, causava bocejos com suas frases quilométricas e com o refrão de ter agido sob ordens e ter prestado juramento de lealdade".
Como manipulador hábil conseguiu até mesmo a desmentir e tornar inofensivos, portanto não provas de acusação, mesmo os poucos documentos argentinos que chegaram ao julgamento e que poderiam tê-lo desmascarado por aquilo que ele sempre foi: um nazista convicto, consciente e orgulhoso de seu papel no extermínio de judeus. O objetivo do acusado era salvar a sua vida. Ele não escapou da forca, mas conseguiu no intento de perpetrar o terrível engano. Por pelo menos meio século.
A autora reporta-se diretamente ao estudo da colega Arendt, reconhecendo-lhe méritos, mas não a poupando de críticas. "Leu com mais rigor do que ninguém as atas do julgamento e os interrogatórios. Mas - explica - foi justamente por essa razão que ela caiu na armadilha, porque Eichmann em Jerusalém foi pouco mais que uma máscara. Ela não percebeu isso, apesar de ter ficado claro para ela não ter sido capaz de compreender o fenômeno como gostaria".
O que lhe faltava, e faltava para todos os que assistiam ao julgamento, eram os anos na Argentina. Aqueles que Stangneth ao contrário esmiuçou, procurando evidências "espalhadas em diversos arquivos, como as peças de um quebra-cabeça monstruoso". Um quebra-cabeça que mostra uma verdade inconveniente. "De um lado estavam as vítimas e os caçadores de nazistas, que queriam a todo custo o assassino de milhões de pessoas, e este ou aquele governo, pelo outro, havia aqueles que queriam evitar a todo o custo que, juntamente com aquele homem, retornasse do exílio também o passado", escreve a estudiosa.
Alguns documentos revelam a relutância dos agentes da inteligência da Alemanha Ocidental - que estavam, aparentemente cientes do esconderijo de Eichmann, já em 1952 - para trazer à justiça ele e outros ex-líderes nazistas. História narrada agora também no filme O estado contra Fritz Bauer, o tenaz procurador-geral que o perseguiu durante anos e que, no fim, em vista dos obstáculos internos, decidiu entregar Eichmann aos israelenses para que o capturassem, na esperança de um pedido de extradição, que jamais foi proposto.
"A história de Eichmann antes de Jerusalém traz à luz uma série de oportunidades perdidas de virar a página, mantendo o processo na Alemanha» explica Stangneth, acrescentando que "é um escândalo que ainda hoje as autoridades alemãs mantenham sob custódia ciosamente os atos sobre Eichmann que não são acessíveis ao público, porque seu conteúdo poderia perturbar a opinião pública. Aceitar Adolf Eichmann, o Obersturmbannführer das SS fora de serviço, como um capítulo da República Federal é um ato devido há tempo".
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O mal não é banal. Eichmann antes do processo de Jerusalém - Instituto Humanitas Unisinos - IHU