24 Julho 2021
“O Antropoceno não é uma questão de especialistas e nossas classes dirigentes estão errando ao deixar de fora do debate aqueles que têm muito a contribuir. Para começar, deveríamos evitar o oximoro de que o ambientalismo freia o progresso. Muito pelo contrário, se continuarmos abonando o imaginário do progresso, estaremos obstruindo a possibilidade de que o futuro seja viável para todas e todos”, escreve Gabriela Merlinsky, socióloga da Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado por Infobae, 15-07-2021. A tradução é do Cepat.
Vivemos uma época de profundas transformações. Estamos longe daquele período em que as mutações do clima eram oscilações esporádicas e a referência a essa palavra, “ambiente”, era apenas uma denominação do ambiente humano.
Diferente desse longo interregno de mais de 10.000 anos denominado Holoceno, nesta nova era, o Antropoceno, as mudanças de origem humana superam o próprio papel das forças naturais-geológicas e são responsáveis por alterar profundamente o sistema terrestre.
Há muita discussão sobre as origens dessa grande transformação ambiental. Seriam os humanos os responsáveis por ter ultrapassado os limites biogeofísicos do planeta ou, muito mais, um sistema econômico, o capitalismo?
Partindo do pressuposto de que os humanos não modificam os sistemas ambientais enquanto espécie homogênea, mas como atores sociais, culturais e geograficamente diferenciados, é importante levar em consideração que são as relações sociais de produção e consumo que geram essas mudanças. E essa aceleração foi contemporânea à expansão do capitalismo em todo o planeta.
Daí a referência de Jason Moore ao “capitaloceno” para mostrar que o capitalismo não é só um sistema econômico, também é um modo fundamental de alteração ecológica que busca a exploração mundial das naturezas baratas para penetrar cada vez mais nas fronteiras de lucros potenciais.
Por outro lado, Donna Haraway destaca que se ultrapassamos os limites que garantem os marcos mínimos que permitem a vida no planeta, é importante considerar a natureza como alteridade significativa, uma subjetividade multiespécie que deveria levar outro nome: o Chthuluceno.
A pergunta mais importante é: somos conscientes da importância desses assuntos em nossa vida cotidiana? Percebemos que nos afetam de uma forma profunda? Se todos estes assuntos têm uma relevância política maiúscula, cabe também se perguntar se estão na agenda e nas prioridades das políticas públicas. Seriamos capazes de desenvolver uma nova subjetividade política para aprender a viver e morrer juntos, em uma terra ferida?
As notícias que nos chegam todos os dias apontam que não. Há um predomínio de uma racionalidade instrumental presa ao imaginário do progresso: são necessários recursos para sustentar a economia e será necessário deixar as urgências ambientais para outro momento, pois é necessário reativar o aparato produtivo.
É claro, por trás de tais afirmações, há interesses corporativos, mas também há algo muito profundo que marca um clima de época, uma crise civilizatória na qual o sentido do presente desconecta o futuro do passado e o coloca para além de qualquer sensibilidade histórica. Sem dúvida, são os movimentos socioambientais e os diferentes ativismos em todo o mundo que buscam colocar esses assuntos na agenda.
“Kristalina e Martín: Bem-vindos a Veneza!” é o título de uma reivindicação publicada na última sexta-feira, no jornal britânico The Financial Times, pela organização Avaaz. Em concomitância com o início da cúpula interministerial de finanças do G20, esta organização solicitou ao Fundo Monetário Internacional e ao governo argentino que incluam a figura da compensação ambiental nas atuais negociações sobre a dívida soberana.
A foto que acompanha a reivindicação é eloquente, pois se vê a foto modificada de Kristalina Georgieva e Martín Guzmán em uma mesma gôndola! A figura do bote salva-vidas – muito antiga nos tópicos ambientais –, desta vez, ganha um sentido adicional. Não só coloca no centro do debate o papel dos organismos internacionais na geração das brutais crises econômicas e recessões no Sul Global, mas inscreve o problema em termos de dívida ecológica e justiça climática.
Historicamente, as discussões sobre o intercâmbio desigual destacaram duas questões: o trabalho mal remunerado no Sul Global leva a exportações baratas e a uma deterioração da relação de intercâmbio. A noção de intercâmbio ecologicamente desigual mostra que há passivos gerados pelo Norte, a partir da extração intensiva de recursos naturais, o comércio injusto, o dano ambiental e o aproveitamento exclusivo do espaço ambiental como sumidouro de seus resíduos.
A dívida ecológica tem um aspecto intergeracional, já que a carga sobre o ambiente é muito difícil de neutralizar, implica uma descapitalização por esgotamento de recursos que seriam necessários no futuro e há processos que são irreversíveis (alterações do clima, degradação dos solos, danos à saúde) que implicam custos adicionais, a longo prazo.
Precisamos trazer estas questões ao debate público. O Antropoceno não é uma questão de especialistas e nossas classes dirigentes estão errando ao deixar de fora do debate aqueles que têm muito a contribuir. Para começar, deveríamos evitar o oximoro de que o ambientalismo freia o progresso. Muito pelo contrário, se continuarmos abonando o imaginário do progresso, estaremos obstruindo a possibilidade de que o futuro seja viável para todas e todos.
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