“Estamos vivendo em 2021 uma nova etapa da fase extraordinária da aventura humana onde culmina o paradoxo da onipotência humana e da impotência humana”, escreve o sociólogo e filósofo Edgar Morin, em artigo publicado pelo Le Monde, 08-07-2021. A tradução é de André Langer.
Antes de considerar a crise que vivemos desde 2020 e supurar suas consequências, vamos tentar situá-la na fase extraordinária da aventura humana que começou há setenta e cinco anos e que conheceu imprevistos, eles próprios extraordinários. É uma época de enorme crescimento do poder humano, ao mesmo tempo que, de forma não menos inédita, da impotência humana.
Em 1945, a bomba de Hiroshima anunciava a possibilidade da aniquilação de quase toda a humanidade, uma possibilidade que aumenta posteriormente com a proliferação de armas nucleares, especialmente em Estados com hostilidades mútuas. No caso de uma guerra nuclear mundial, apenas algumas ilhas de sobreviventes subsistiriam. Essa explosão de poder nos reduz à impotência.
Em 1972, o relatório Meadows advertia a humanidade sobre o processo de degradação do planeta tanto em sua biosfera como em sua sociosfera. Os cinquenta anos seguintes viram sua deterioração contínua. A consciência dessa ameaça cresce muito lentamente e permanece insuficiente, pois a devastação continua na atmosfera, nos rios, nos oceanos, nas terras esterilizadas pela agricultura industrializada, nos alimentos, nas cidades poluídas e na vida humana.
A partir de 1980, o movimento transumanista, nascido na Califórnia, espalhou-se entre as elites da tecnologia e da economia. Ele prevê uma metaumanidade dotada de imortalidade e uma metassociedade harmoniosamente regida pela inteligência artificial. Animado pela consciência das possibilidades de novos poderes tecnocientíficos que tornam possível conceber a extensão da vida humana e um homem aumentado em seus poderes, o transumanismo retoma e desenvolve o mito ocidental do domínio ilimitado do mundo exterior e da utopia de uma sociedade harmonizada pelo uso gerencial da inteligência artificial eliminando desordens e, portanto, as liberdades. Ele anuncia, de fato, uma metamorfose da humanidade individual e social em pós-humanidade ou super-humanidade.
Em 1989-1990 ocorreu a invasão do capitalismo na ex-União Soviética e na China Comunista, juntamente com a difusão mundial dos meios de comunicação imediata. Esta mundialização ou globalização cria uma comunidade de destino para os seres humanos em todos os continentes, diante de perigos comuns (nucleares, ecológicos e econômicos). Esta comunidade de destino torna possível vislumbrar a possibilidade de uma metamorfose não transumanista, mas panhumanista, indo na direção não de um homem aumentado, mas de um homem melhorado em uma Terra-pátria que abrangeria sem suprimir de forma alguma nossas pátrias nacionais – isso na condição preliminar de que apareça um novo pensamento político humanista.
No mesmo período, ocorreu na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos o que poderíamos chamar de revolução neoliberal, que não só defendia a economia de mercado para resolver todos os problemas sociais, mas também elogiava a privatização e a comercialização dos serviços públicos, incluindo os hospitais, reduzindo o Estado ao papel de polícia.
Esta revolução está se tornando global e, consequentemente, em todo o mundo, o poder do dinheiro domina e é desencadeado. Agrava uma crise de democracias corrompidas por esse poder, bem como uma crise do pensamento político, esvaziado de todo conteúdo e arrastado para trás da economia, ela própria submetida ao neoliberalismo.
Vivemos, portanto, hoje uma formidável dinâmica científico-técnico-econômico-política determinada pelo desenvolvimento descontrolado das ciências e das técnicas, sob o impulso desenfreado das forças econômicas e esta, não menos desenfreada, da vontade de poder.
Essa dinâmica contribui para uma enorme regressão político-social em que os chamados chefes de Estado “populistas” aparecem em todo o planeta por serem demagogos, regimes neoautoritários com fachada parlamentarista, enquanto se multiplicam os meios que permitem uma sociedade de domesticação e de vigilância por reconhecimento facial, controle das telecomunicações, satélites ou drones espiões – essa já é a realidade chinesa. A “bigbrotherisação” está em andamento.
É nestas condições, pontuadas por revoltas em todo o mundo, todas reprimidas e algumas com extrema ferocidade, é nesta fase de perigos e transformações que surge a crise provocada pela pandemia de Covid-19, que se tornou quase instantaneamente planetária, multidimensional e da qual não saímos.
É quando se revela a fraqueza de uma ciência outrora considerada onipotente. O alerta da Aids em 1983 já havia corroído a crença em uma ciência onipotente que eliminaria bactérias e vírus. Mas a certeza do domínio do inimigo microscópico permaneceu. Ora, aqui está um vírus cujas moléculas constituintes podem ser analisadas, mas cuja origem ainda é desconhecida, e que talvez seja o microscópico produto de um médico Frankenstein chinês escapando de seu criador, e tendo o comportamento aberrante de um vírus louco, atingindo diversamente suas vítimas, às vezes de maneira fatal.
Saberemos mais tarde se a busca por uma vacina retardou a busca por uma cura, se certos remédios não foram descartados sob pressão de poderosos consórcios farmacêuticos a ponto de parasitar as autoridades sanitárias. O importante é reconhecer que, por maiores que sejam as vitórias das mais refinadas técnicas científicas, vírus e bactérias jamais serão eliminados, até porque parte do mundo bacteriano é vital, principalmente para o nosso intestino; até porque são capazes de se modificar e superar os antibióticos e antivirais, o que ao mesmo tempo afeta o sonho da imortalidade do transumanismo. Assim, manifesta-se a nós a fraqueza de uma ciência tão poderosa.
Ao mesmo tempo, o caráter multidimensional e planetário da crise, a multiplicidade de inter-retroações entre seus componentes como entre o local e o global, tudo isso revela a fragilidade de um pensamento tão poderoso mas incapaz de conceber a realidade humana, e particularmente nas épocas de crises, porque incapazes de integrar os conhecimentos dispersos e compartimentados nas disciplinas. Ao mesmo tempo, manifesta-se também a insuficiência de um pensamento tão poderoso no cálculo e na algoritmização dos dados existentes, mas cego para o que é o próprio caráter da história humana: o surgimento do inesperado e a presença permanente das incertezas, que se agravam em tempos de crise e principalmente em uma crise gigantesca como a nossa.
Estamos, portanto, vivendo em 2021 uma nova etapa da fase extraordinária da aventura humana onde culmina o paradoxo da onipotência humana e da impotência humana.
A debilidade não advém apenas da fragilidade humana (o infortúnio, a morte, o inesperado), mas também dos efeitos destrutivos da onipotência científico-técnico-econômica, ela própria impulsionada pelo crescente excesso da vontade de poder e da vontade de lucro.
Este pensamento humano, capaz de criar as máquinas mais formidáveis, é incapaz de criar a menor libélula. Essa inteligência capaz de lançar foguetes e estações espaciais no cosmos, capaz de criar uma inteligência artificial capaz de todos os cálculos, é incapaz de conceber a complexidade da condição humana, do devir humano. Essa inteligência capaz de cortar a realidade em pequenos pedaços e de processá-los lógica e racionalmente é incapaz de reunir e integrar os elementos do quebra-cabeça e de processar uma realidade que requer uma racionalidade complexa concebendo as ambivalências, a complementaridade de antagonismos e limites da lógica do terceiro excluído.
Quando saberemos que tudo o que é separável é inseparável?
Quando saberemos que tudo o que é autônomo depende do seu ambiente, desde a autonomia dos seres vivos que devem renovar suas energias alimentando-se para viver e com informações para agir, até a minha autonomia presente no meu computador, que depende da eletricidade e da Wi-Fi?
Devemos, portanto, compreender que tudo o que emancipa técnica e materialmente pode ao mesmo tempo escravizar, desde a primeira ferramenta que se tornou ao mesmo tempo uma arma, até a inteligência artificial passando pela máquina industrial. Não esqueçamos que a crise formidável que vivemos é também uma crise do conhecimento (onde a informação substitui o entendimento e onde os conhecimentos isolados mutilam o conhecimento), uma crise da racionalidade fechada ou reduzida ao cálculo, uma crise do pensamento.
O futuro: sabemos bem que toda futurologia é fútil e que mais uma vez o futuro humano será rico em surpresas e incertezas. Mas podemos considerar a provável continuação dos grandes processos em andamento no planeta.
Façamos já a única previsão possível: o que vai acontecer obedecerá à dialética tornada decisiva entre todos os poderes humanos e todas as impotências humanas, e também, como já dissemos, à inseparável relação conflituosa entre Eros, Polemos e Thanatos.
Os conflitos humanos sempre ativos correm o risco de se intensificar: todas as crises trazem o risco de exasperar as violências, delírios e cegueiras, mais do que favorecer a conscientização e os sobressaltos salvadores.
Em primeiro lugar, o cenário da guerra nuclear permanece como uma espada de Dâmocles sobre o futuro humano e pode até ter a virtude benéfica de um Memento mori [“lembre-se que você vai morrer”].
O agravamento da devastação da nossa biosfera terrestre provocará múltiplos desastres naturais, inundações, desertificações, mudanças climáticas que já estão engendrando migrações e conflitos, especialmente pela posse da água e pela distribuição dos recursos energéticos e alimentares.
O processo de regressão política e de neo-totalitarismo tem todas as possibilidades de continuar, salvo alguns sobressaltos ou reações que parecem estar começando (no Chile e, muito moderadamente, nos Estados Unidos).
Finalmente, a metamorfose do homem aumentado em super-humano pode se desenvolver entre as elites do poder político e econômico, criando uma divisão entre os super-humanos e os humanos, eventualmente reduzidos ao apartheid ou à esterilização. A metamorfose do homem melhorado é uma possibilidade que só deixaria de ser utópica se a humanidade mudasse de via e seguisse na direção indicada no meu livro que leva este título [É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2021].
Esses quatro processos, todos possíveis, seriam ao mesmo tempo ambivalentes, paralelos, concorrentes, antagônicos e comportariam enormes incertezas em suas interações e retroações.
Por fim, não descartemos a hipótese de um profeta ou visionário ou iluminado inesperado anunciando a nova religião planetária e modificando a aventura humana.
Para examinar o passado, o presente e o futuro que estão ligados, mas não de forma linear, precisamos armar a inteligência para o reconhecimento e o tratamento do complexo, precisamos de um conhecimento e de um pensamento relevante, de uma ampla tomada de decisão, de decisões conscientes e responsáveis, de uma estratégia sempre em movimento.
No que me diz respeito, dedicarei minhas últimas energias a observar, trabalhar e refletir sobre o nosso presente e o nosso futuro, permanecendo no partido que transcende todos os partidos, o do Eros.