17 Junho 2021
"[O papa] do fim do mundo, trouxe para o centro do palco sua voz calada e calcada pela guerra e a violência, pela pobreza e a fome. Rasgou o tênue véu das aparências e da hipocrisia, demonstrando que milhões de seres humanos só se tornam visíveis através do naufrágio e da tragédia, na hora da morte. Outros, aos milhares, tragados pelas águas ou pelas areias, ficarão para sempre esquecidos, sem nome nem rosto, apenas frios números e estatísticas", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM.
No dia em que foi eleito à cátedra de Pedro, o Papa Francisco brincou que tinham escolhido como pontífice alguém que “vinha do fim do mundo”. A brincadeira, porém, não comportava qualquer exagero. Desde logo, mudava-se o “lugar social” a partir do qual o chefe máximo da Igreja Católica passava a se manifestar. Mudava-se o “ponto hermenêutico” a partir do qual interpretar suas palavras, gestos e documentos. Alguma coisa se transformava no interior da Igreja, seja do um ponto de vista eclesiológico, seja do ponto de vista da tomada de decisões. Deslocava-se para a periferia o centro de onde haviam governado os seus antecessores. O eurocentrismo eclesial cedia alguns passos em favor de uma descentralização cujo caminho acabava de descortinar-se. Certo, a cátedra de Pedro permanecia em Roma, mas seu ocupante trazia na bagagem novas formas de interpretar a Palavra de Deus, a tradição judaico-cristã, a doutrina da Igreja e a própria função não como poder, mas serviço.
De igual maneira que o outro Francisco, o de Assis, quase um milênio antes, Jorge Bergoglio também resolveu despir-se de uma atitude que remetia aos séculos solenes e pomposos de uma Igreja aliada aos senhores do dinheiro e do poder. Despojou-se de alguns símbolos visivelmente associados à casta principesca, apresentando-se desde o início como servo dos servos. E mais, inclinou a cabeça e pediu ao povo preces e bênçãos. Líder não é aquele que conduz as massas, e sim aquele que se deixa conduzir por elas – lembraria o filósofo italiano Antonio Gramsci, ao cunhar o conceito de “intelectual orgânico”. Este torna-se porta voz da classe social na medida em que é capaz de ler e interpretar seus pesares e anseios mais profundos.
O novo Papa não somente vinha do fim do mundo, de um país do Sul e da periferia do planeta. Trazia desse recanto, ademais, clamores silenciados e silenciosos, bem como uma nova chave hermenêutica para lê-los e interpretá-los. O pastor da grande Buenos Aires conheceu de perto e na pele, entre outros gritos saídos dos subterrâneos da ditadura militar, a dor das Mães da Praça Maio. Sabia da teimosia dos movimentos sindical, estudantil e popular, além das organizações não governamentais (ONGs). De mais próximo ainda, acompanhou a prática das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), cuja pedagogia eclesial vinha iluminada pela Teologia da Libertação (TdL). Havia participado das Assembleias Episcopais da América Latina e do Caribe.
Essa longa experiência logo o conduziu a gestos, viagens e palavras desconcertantes. Sacudiu e despertou a sonolência de uma Igreja que dava sinais de acomodar-se a um formalismo ritual e litúrgico de sacristia. Com voz altissonante fez ver que as mudanças profundas e radicais não nascem no centro, mas se originam na periferia. Somente quando esta última pressiona, através do movimento de vozes, grupos e massas mobilizadas, então o centro pode deixar-se interpelar e tomar decisões inovadoras. A Boa Nova vem do não lugar: melhor lugar para lançar as raízes do novo lugar. O fruto só cai da árvore quando está maduro. Decretos e transformações são fruto das bases que cultivam a semente e do tempo faz crescer a espiga.
A experiência profética de Bergoglio, entretanto, fez mais, muito mais! Jogou luz sobre rostos antes desconhecidos e invisíveis, como é o caso dos migrantes e refugiados. Do fim do mundo, trouxe para o centro do palco sua voz calada e calcada pela guerra e a violência, pela pobreza e a fome. Rasgou o tênue véu das aparências e da hipocrisia, demonstrando que milhões de seres humanos só se tornam visíveis através do naufrágio e da tragédia, na hora da morte. Outros, aos milhares, tragados pelas águas ou pelas areias, ficarão para sempre esquecidos, sem nome nem rosto, apenas frios números e estatísticas. O Papa fez questão de marcar presença nas ilhas de Lampedusa (Itália) e Lesbos (Grécia), bem como na dramática fronteira entre México e Estados Unidos, encruzilhadas de travessias, onde ilusões e desilusões de mesclam e se fundem. Vozes e rostos que chegam de longe, do fim do mundo, para nos recordar que a fé e a esperança seguem vivas, apesar dos ombros encurvados, dos joelhos vergados e dos olhos no chão.
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Francisco e migrantes: vozes que chegam do fim do mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU