"A verdadeira tarefa que temos hoje é repensar todas as nossas comunidades 'territoriais' para adaptá-las, sim, às nossas exigências como mulheres e homens contemporâneos, sem, contudo, privá-las daquele valor adicional que é precisamente o fato de não serem uma pura emanação dos nossos instintos do momento".
A opinião é de Riccardo Larini, teólogo italiano e ex-monge da Comunidade de Bose, da qual fez parte durante 11 anos. O artigo foi publicado em Rocca, n. 10, 15-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O que é a comunidade? Normalmente, esse termo alude àquelas formas de agregação constituídas por grupos de pessoas que convivem em um território bastante limitado e que se reconhecem por uma mútua dependência e por um conjunto relativamente amplo de características comuns.
A comunidade, portanto, é uma agregação primária, porque vem antes da sociedade, tanto em sentido temporal quanto no sentido de que a sociedade representa uma espécie de evolução e complexificação inevitáveis dela.
De fato, a sociedade é composta por relações mais complexas e articuladas, envolve uma certa divisão do trabalho e uma consciência social, ou seja, o desenvolvimento de elaboradas ideias morais, religiosas, jurídicas, econômicas, políticas, estéticas e de outras formas mais complexas de conhecimento e de pensamento.
O primeiro estudioso a enfocar a diversidade e a possível conflitualidade entre essas duas formas de organização social, como sabe qualquer pessoa que tenha feito estudos em Sociologia, Psicologia Social ou Ciência Política, foi o sociólogo Ferdinand Tönnies (1855-1936), em seu ensaio “Comunidade e sociedade”, de 1887. Nele, o estudioso alemão estabelecia desse modo entre as duas realidades uma contraposição geradora de tensões constantes e potenciais: a teoria da sociedade diz respeito a uma construção artificial, a um agregado de seres humanos que apenas superficialmente se assemelha à comunidade, na medida em que, também nela, os indivíduos vivem pacificamente uns ao lado dos outros.
Porém, enquanto na comunidade os seres humanos permanecem essencialmente unidos, apesar dos fatores que os separam, na sociedade eles permanecem essencialmente separados, apesar dos fatores que os unem.
Grande parte das nossas reflexões sobre a política e o sentido do nosso ser social gravita, de fato, em torno da percepção que temos de sociedade e comunidade, muito além de outras categorias aparentemente mais consolidadas, como as de direita ou esquerda, de conservação ou mudança.
Por um lado, há quem acredite que é melhor privilegiar a sociedade sobre a comunidade, porque, embora seja em muitos aspectos incontrv olável e distante do calor das relações primárias, ela parece permitir, no entanto, uma certa libertação das angústias de lugares mais restritos e notáveis oportunidades os para nossos desejos individuais de autonomia, expansão e crescimento. Nesse sentido, a sociedade é o lugar por excelência do indivíduo liberal e ainda do indivíduo libertário, mas também o é paradoxalmente para quem considera, como os pensadores socialistas, que apenas em um determinado tipo de sociedade, na qual prevalecem determinadas relações e ideias jurídicas e econômicas, é que a liberdade humana se torna verdadeiramente possível.
Por outro lado, prefere a comunidade quem considera fundamentais os valores humanos permitidos pela participação em uma entidade social mais circunscrita, valores que se teme que sejam minados, postos em perigo ou colocados em segundo plano pela civilização (industrial, tecnológica ou de qualquer outro tipo), como a solidariedade, a segurança, o calor que só seria possível encontrar na humanidade permitida por relações mais “primitivas”, primordiais, naturais.
Foram aliados na defesa da comunidade, embora aqui um pouco paradoxalmente, personagens e correntes de pensamento muito diferentes, como Nietzsche, que retomou com entusiasmo as teorias de Tönnies, o movimento de 1968, que, no rastro de Jean-Jacques Rousseau, pregava um retorno à liberdade da natureza contra as correntes impostas pela sociedade, e todos os conservadorismos que consideram cada nova ideia emergente na sociedade como uma ameaça à tradição veiculada pela comunidade, único depósito de verdadeira humanidade.
À primeira vista, a primeira abordagem, de quem prefere a sociedade, parece mais otimista. Em alguns aspectos, é otimista nas teorizações (muito em voga nos anos 1960) de figuras como Talcott Parsons, sociólogo estadunidense fundador da análise estrutural-funcionalista, segundo o qual as sociedades evoluiriam para formas cada vez mais refinadas, em cujo topo se encontram as modernas sociedades ocidentais, nas quais as comunidades primárias e os agrupamentos sociais, como a família, encontrariam uma natural realização dos seus valores.
Mas também é otimista nas “realistas” teorias da educação de um contemporâneo de Tönnies, outro grande fundador da sociologia moderna, o francês Émile Durkheim, que foi um dos primeiros a defender a criação de currículos para definir as matérias a serem ensinadas, os programas a serem abordados, os conhecimentos a serem alcançados, os valores a serem absorvidos.
Desse modo, dado que a sociedade tem determinadas regras e valores, se obteria, por um lado, que quem recebe uma educação aprenderia tais regras e valores e seria integrado ao mundo dos adultos, e, por outro lado, se evitaria uma retaliação dos costumes contra o sujeito, quase certa – segundo Durkheim – se a escolarização ocorresse em completa abstração da realidade social.
Acho decididamente interessante, mas também um pouco inquietante, que, no atual panorama cultural, prevalecem muitas vezes leituras desse tipo, como testemunha, por exemplo, a distinção entre matérias escolares “úteis” e “inúteis”, ou a acolhida fortemente acrítica (e, portanto, totalmente sofrida e não negociada) de qualquer transformação introduzida pelo uso da rede.
O problema, entretanto, é que há aspectos da comunidade que não podem ser sacrificados, exceto para aceitar uma humanidade reduzida. E, para falar deles, gostaria de retomar a ideia de comunidade própria de outro grande pensador contemporâneo, o antropólogo escocês Victor Turner (1920-1983).
Para Turner, é próprio da communitas o fato de ser não estruturada, um lugar em que pertencimento e solidariedade estão no primeiro lugar e em que vigora uma “situação sem tempo, um eterno ‘agora’, um ‘momento fora do tempo’ ou um estado em que a categoria de tempo não é aplicável”.
E é precisamente em virtude dessas suas características que a comunidade, além de ser uma agregação importante nas sociedades humanas, pode se tornar um lugar decisivo não tanto ao se contrapor aos valores da sociedade, mas onde a comunidade é liminar, isto é, onde vive e se desenvolve nos espaços de fronteira, de crise da sociedade.
Então, a comunidade tem fortes capacidades “performativas”, ou seja, de intervenção e de transformação das relações sociais, também em escala mais global.
Alguns sociólogos italianos, como Carlo Bordoni, tentaram aplicar a análise de Turner às novas “comunidades virtuais”, defendendo que elas são precisamente a resposta à nossa necessidade humana de comunidade e que, de fato, representam um exemplo de grande eficácia performativa, porque cada de nós, ao contrário do que nos era permitido pela ideia “territorial” de comunidade própria do passado, pode pertencer, por meio da rede, a muitas comunidades e, portanto, encontrar respostas para todas as necessidades individuais possíveis. “Hoje a comunidade é um laço fraco, mas capaz de grandes performances”, escreve o sociólogo de Carrara.
Eu gostaria de poder concordar com Bordoni, mas, na realidade, existem dimensões claramente insubstituíveis da comunidade “territorial”, circunscrita, da qual todos nós, de uma forma ou de outra, sentimos uma forte nostalgia, dimensões que, quando negligenciadas, levarão (e já estão levando) ao desenvolvimento de fortes desconfortos psicológicos e sociais.
Para falar da primeira dimensão, acho que basta compartilhar uma experiência ou, melhor, um contraste entre experiências, que eu pude viver nos últimos 12 meses.
Por um lado, a pandemia me levou naturalmente a aumentar o recurso às várias comunidades virtuais às quais pertenço, muitas vezes obtendo conforto e benefícios a partir da minha “pluricomunidade de sentido”. Além disso, ao mesmo tempo, vivi a experiência muito mais “física” representada por acompanhar o meu sogro nos últimos meses da sua vida, até proferir o seu discurso fúnebre para o círculo próximo dos seus íntimos, momento que me ofereceu muito mais sentido e foi motivo de profunda reflexão a respeito de todo o restante.
Ao mesmo tempo, apesar de ser um homem bem acostumado à solidão, sentia falta não tanto de ocasiões de convívio (também delas, é claro!), mas sim daqueles encontros amplos com amigos e parceiros de associação que só a presença física em um mesmo lugar, prolongada no tempo, consegue garantir.
Mas a dimensão mais importante da comunidade territorial talvez nem seja a da “fisicidade”, embora cara a muitos de nós. As comunidades virtuais certamente permitem satisfazer em boa medida o nosso desejo de comunicação, elemento primário do nosso desejo de comunidade. E fazem isso tornando-nos mais livres dos vínculos às vezes não agradáveis da experiência tradicional de comunidade, ou seja, a sensação de sermos prisioneiros de relações e de vínculos.
Nas comunidades virtuais, sempre podemos “escolher” com quem estar e quem deixar, quando fazer isso ou não, sem grandes sentimentos de culpa ou de responsabilidade. Precisamente por isso, porém, as comunidades virtuais levam a privilegiar as emoções sobre a racionalidade, as sensações do momento sobre os caminhos de aprofundamento e de verificação do fundamento daquilo que habita as nossas mentes e os nossos corações.
Em outras palavras, sem os inconvenientes incômodos constituídos pelo compromisso de “permanecer” em alguma medida fiéis a um grupo ou a uma comunidade por um tempo superior ao de uma nossa eventual mudança de humor, acabamos pondo em perigo ou pelo menos despotencializando todos aqueles processos que, a partir do surgimento de emoções, ideias e sensações, levam a desenvolver caminhos de conhecimento e de pensamento, possíveis apenas quando se deixa que o daimon, a inspiração ou a sensação do momento, sejam postos em discussão pela ineliminável e constante presença do outro, ao nosso lado e dentro de nós.
Por isso, não só acredito que seja possível manter formas de pertencimento em comunidades tradicionais, embora revendo em profundidade e criticamente as regras e mecanismos de pertencimento, mas também acredito que seja vital, justamente para fazer com que se desenvolvam lugares liminares de transformação da sociedade, como diria Turner.
E, embora seja sempre útil, possível e enriquecedor recorrer também às muitas comunidades virtuais disponíveis para satisfazer as nossas necessidades de liberdade, expansão e desenvolvimento e para definir novas identidades mais globais, é fundamental repensar os grupos territoriais como as associações, partidos, paróquias e comunidades de todos os tipos, funcionais a objetivos de curto, médio ou longo prazo, ou simplesmente lugares primários de um pensamento comum e, portanto, de sentido e de humanidade profunda e em 360 graus.
A verdadeira tarefa que temos hoje, portanto, é repensar todas as nossas comunidades “territoriais” para adaptá-las, sim, às nossas exigências como mulheres e homens contemporâneos, sem, contudo, privá-las daquele valor adicional que é precisamente o fato de não serem uma pura emanação dos nossos instintos do momento.
De fato, aquilo que podemos pensar e realizar vinculando-nos aos outros por um trecho significativo do caminho é tanto um complemento importante para o potencial de escolha e de liberdade que nos é oferecido pelas comunidades virtuais, quanto uma fonte de sentido e um recurso interior de longo prazo que estas últimas muito dificilmente conseguem nos oferecer.
Os muitos sociólogos arautos da humanidade “pós-social”, como o francês Alain Touraine, acreditam que a comunicação entre culturas só será possível se os sujeitos tiverem se desvinculado previamente da comunidade. Desse modo, porém, além de combater uma exigência que habita indelevelmente cada um de nós, corre-se o risco de querer construir modelos de comunicação que só são possíveis pela eliminação das diferenças.
Mas não creio que nenhum ideal de sociedade valha tanto sacrifício, nem creio que a eliminação das comunidades territoriais em detrimento da sociedade global jamais será possível.